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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.3  Salvador  2001

 

COMENTÁRIO

 

O pai e sua função na cultura

 

 

Gildete Lino de Carvalho*

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 

Sobre o livro de Joel Dor, “ O pai e sua função em psicanálise”. Rio de Janeiro, 1991, Jorge Zahar Editora.

 

O autor faz um estudo sobre a função do pai na psicanálise e ressalta a importância dessa função no nascimento da cultura e a distinção entre natureza e cultura, no homem. Descarta a priori o sentido comum que o pai se atribui, enquanto agente da paternidade comum.

Para a Psicanálise, o pai é visto como um operador simbólico, ahistórico, não sujeito a um ordenamento cronológico. O mais curioso, no entanto, é que ficando fora da história, paradoxalmente, sua inscrição está no ponto de origem de toda história. Exatamente, por se tratar de uma entidade essencialmente simbólica que ordena uma função.

Ao ser falante, para o seu ordenamento psíquico, na qualidade de sujeito, não há outra saída, a não ser, curvar-se ao que lhe é imposto por esta função simbólica paterna, que o assujeita numa sexuação.

Do pai, no real de sua encarnação, é exigido representar o governo do pai simbólico, encarregado de assumir a delegação desta comunidade estrangeira mãe-filho.

Não se pode desconhecer que o simbólico permanece, fundamentalmente, assujeitado à linguagem. E nessas condições, tal como um agente diplomático, desempenha melhor a sua função quando fala a língua do país onde está exercendo a sua função, o pai simbólico também o fará da mesma forma se praticar a língua do desejo dos protagonistas. Sem passar pela instância de pai imaginário, diz o autor, nenhum pai real poderia receber essa investidura de pai simbólico.

A instância de pai simbólico se define à lei da proibição do incesto, lei maior que legaliza as relações de trocas entre os sujeitos de uma mesma comunidade. A prescrição simbólica dessa lei impõe uma negociação imaginária prévia entre os diversos protagonistas familiares – pai, mãe, filho, reunidos sob a égide da triangulação edipiana. Sabe-se que essa triangulação, na sua dinâmica, está referida ao “falo”, o 4o elemento, que constitui o parâmetro fundador, suscetível de inferir a investidura do Pai simbólico, a partir do pai real pela via do imaginário.

Lacan, a partir da releitura de Freud, é quem vai insistir quanto à incidência desse 4o elemento na triangulação dos desejos recíprocos do pai, da mãe e do filho.

Porque a dimensão do pai simbólico transcende a contingência do homem real, não é pois necessário que haja um homem para que haja pai. Seu estatuto sendo o de puro referente, o papel simbólico do Pai é sustentado, antes de mais ada, pela atribuição imaginária do objeto fálico. Nessas condições, basta que um terceiro, mediador do desejo da mãe e do filho, dê argumentos a esta função, para que seja significada sua incidência legalizadora e estruturante.

Ora, tudo o que foi aludido até então serve de argumento para se inferir que a função paterna, por ter um estatuto simbólico, a priori problematiza a questão do conceito natureza – cultura no homem. A sua formulação só se fez há muito pouco tempo no campo da reflexão filosófica, sob a forma de uma dualidade. Tradicionalmente, o par natureza – cultura se apresenta como um par de entidades opostas. O cultural que, antes de mais nada, se refere ao adquirido, ao social, ao instituído, se oporia de saída a tudo o que dependesse da ordem do inato.

Para Levi Strauss, o problema se coloca de maneira absolutamente nova. Já que todo homem participa de uma cultura, a cultura só pode aparecer como a única natureza do homem. Levi Strauss evidencia que é nas regras que ordenam as trocas matrimoniais que aparece o substrato comum. Nessas regras há a lei universal que é a proibição do incesto. Logo ela constitui o critério rigoroso que permitirá separar a cultura da natureza. Por toda a parte onde se manifesta a regra, sabemos com certeza estar no estágio da cultura. Podemos dizer: tudo o que é universal no homem, depende da ordem da natureza e se caracteriza pela espontaneidade; e tudo o que tem relação com uma norma pertence à cultura e apresenta os atributos do relativo e do particular.

Admitamos a lei da proibição do incesto como aquilo que permite distinguir estritamente o cultural e o natural no homem.

A cultura é, pois, gerada pela expressão de uma falta. Porque o natural no homem é isomorfo à ordem edípica. A cultura se torna então, legitimamente a verdadeira natureza do homem, que nasce da proibição originária do incesto. Neste sentido a problemática natureza –cultura volta a centrar de pleno direito a questão do pai em Psicanálise, uma vez que, é precisamente, a partir dessa proibição originária do incesto que tenta dar conta o mito freudiano do pai primeiro, o pai da horda primitiva.

 

 

* Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia.

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