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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.4  Salvador  2002

 

GOZO E SEXUALIDADE

 

Sobre amor e gozo, há certas coisas que não sei dizer...*

 

 

Cibele Prado Barbieri**

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

A autora lança mão da poesia de Lulu Santos, Certas coisas, para relançar a questão da impossibilidade de recobrir pela linguagem os estados de paixão e gozo.

Palavras-chave: Amor, Desejo, Gozo, Outro gozo.


 

 


“Não existiria som se não houvesse o silêncio
Não haveria luz se não fosse a escuridão
A vida é mesmo assim, dia e noite, não e sim.
Cada voz que canta o amor não diz tudo que quer dizer
Tudo cala, fala mais alto ao coração
Silenciosamente eu te falo com paixão.
Eu te amo calado como quem ouve uma sinfonia
De silêncios e de luz
Nós somos medo e desejo
Somos feitos de silêncio e som
Têm certas coisas que eu não sei dizer...”

Certas coisas
(Lulu Santos)


Em se tratando de amor e de gozo, faço minhas as palavras do poeta, pois tem certas coisas que não se pode dizer mesmo. Por mais que o ser humano tente dar conta da sua existência pela via do amor, o desencontro prevalece e as palavras faltam.

A clínica, tanto quanto a cultura, nos oferece farto material sobre o amor, produzindo uma variedade de efeitos que gravitam em torno da busca incessante de um sentido para a vida. O amor proporciona esse revestimento de sentido, não apenas para a vida mas principalmente para o sexo; é um dos recursos do humano frente à falência da estrutura. Já que tomamos os versos de Lulu Santos como inspiração, lembramos que ele começa uma de suas músicas assim: “O seu amor me cura, de uma loucura qualquer...”

O amor permeia a significância tanto no plano sexual quanto no filosófico e religioso. Amar ao próximo como a si mesmo é o mandamento mais antigo e comum à maioria das religiões, permitindo pensar que essa insistência aponta para essa impossibilidade estrutural exigindo a reiteração1.

Compreendemos então que as religiões se fundem num tal mandamento, na medida em que só num registro de lei é possível conter os aspectos egoístas e mesquinhos do homem, para evitar que sob um argumento qualquer, odeie, explore ou destrua o próximo tanto quanto a si próprio. A formulação de Freud sobre a pulsão de morte aponta a maldade como algo de essência, como aquilo que é ao mesmo tempo o mais íntimo e o mais inapreensível ao próprio ser. E é essa maldade que é capaz de explicar os efeitos mais derrisórios e paradoxais que observamos ao longo da história da civilização, cuja tarefa é tentar abolir essa incompatibilidade constitutiva do sujeito humano com a própria vida. Lacan pontua a função do bem e do belo como anteparos à coisa extima que reside mais além de qualquer subjetividade e que na verdade carrega em si o potencial destrutivo do ser; tanto em relação ao próximo quanto a si mesmo2.

Recentemente assisti à decepção de alguém ao ler a resposta de Freud à carta de Albert Einsten (30 de julho de 1932) onde este pergunta textualmente se “Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça da guerra?” Percebe-se na resposta de Freud o embaraço que isto lhe causa, pois faz um longo rodeio para chegar a falar da disposição perversa e destrutiva do ser humano que não nos deixa muitas perspectivas. Este diálogo que permanece mais atual do que nunca, é tanto mais desconcertante quanto mais pensamos numa suposta evolução da civilização rumo à paz e o amor.

Freud trabalha esta questão principalmente em “O futuro de uma ilusão”(1927 c)3 e “O mal estar na Civilização”(1930 a)4 e Lacan a retoma no seminário da Ética, remetendo-nos à essa estrutura do humano como dividido entre dois desejos. O desejo que surge a partir do objeto causa, na via do princípio do prazer, e o “desejo puro, o puro e simples desejo de morte”5 , representante da pulsão de morte. Isto nos põe frente ao fato de que para viver, e mais ainda em comunidade, civilizadamente, o sujeito tem que abrir mão de certos gozos, - eróticos ou não.

Isto explicaria o mal estar do ser humano e seu recurso ao amor, enquanto ser falta e de desejo, essencialmente insatisfeito em sua busca de objetos, incapazes de trazer a satisfação plena.

Mas além disso, essa falta promove outros efeitos mais pois ela se inscreve como tal no próprio corpo de linguagem, fazendo do discurso um conjunto furado, incapaz de nomear tudo que acontece no ser e principalmente aquilo que diz respeito a essa coisa extima, que ex-siste à linguagem .
Nosso poeta não poderia melhor definir o humano quando diz que “somos medo e desejo, feitos de silêncio e som”.

Ele se serve destas imagens que trazem em si presença/ausência para tratar dessa difícil tarefa que é falar do amor e do seu mais além.

“Não existiria som se não houvesse o silêncio
Não haveria luz se não fosse a escuridão
A vida é mesmo assim, dia e noite, não e sim.”

O gênio do poeta está nessa façanha de captar verdades que não se sabe dizer. E ele nos leva a essa constatação de que a vida é feita de prazer e nada, de sentido e vazio, inclusive do contra sentido, na mesma linha de pensamento de Wittgenstein.

Enquanto o amor - na via do som e do desejo - infla o discurso, exacerba o laço social, promovendo o sentido, do outro lado, em seu avesso, jaz o corpo mudo, o medo e o silêncio, o não e a escuridão.

Assim, para nos situarmos frente a esse ser que somos é preciso antes ouvir o silêncio em seus efeitos, pois nessa ausência pode revelar-se algo no registro de um além das representações e das palavras. Algo que pode ser lido como um gozo, para além do sexual.

Aprendemos com Freud sobre o gozo sexual, nascente do amor em sua corrente libidinal que como dissemos vai produzir o rio do discurso caudaloso da poesia, das juras amorosas, da paixão com tudo de efeitos de sentido e de linguagem que ela abriga, além de toda a produção simbólica de que o homem é capaz, na vertente do princípio do prazer e da sublimação.

Lacan retoma essa questão designando sob o termo gozo 3 estados: o gozo fálico, que abrange tudo que gira em torno do sexual; o mais-gozar, que implica o objeto a, e o Outro gozo, que implica o significante da falta no Outro.
A paixão tem o dom de colocar em relevo esses 3 efeitos de gozo:

1. Ela carrega em si a marca do desencontro patrocinado pelo gozo fálico como gozo do Um, que determina a impossibilidade da relação complementar entre os sexos.

2. O objeto a é posto em relevo, destacando-se sobre o fundo que o objeto amoroso compõe. A paixão faz saltar desse objeto causa de desejo os seus efeitos mais densos no que ela se expressa como uma compulsão ao objeto e também no seu caráter de “satis- facere” – que em latim quer dizer fazer mais. O mais-gozar sediado pelo objeto a, na fronteira entre o fálico e o Outro gozo, põe em jogo a erogeneidade do corpo trazendo em si a face perversa polimorfa do sujeito. A parceria com o objeto da fantasia projeta um sujeito fascinado pela promessa de satisfação e de um prazer a mais. Entretanto, esse a mais de gozar mostra-se capaz de extrapolar da esfera do prazer às raias da exaustão e do aniquilamento do sujeito subsumido nos véus do objeto, pois ele está muito próximo, na fronteira mesmo com um outro gozo.

3. Quanto ao Outro gozo, o do Outro, este também deixa entrever seus efeitos na paixão revelando uma dupla face: arroubos de volúpia e de angústia. É aí que observamos o desaparecimento do sujeito frente ao Outro que goza de si. Aqui temos o sujeito fora de si. Numa posição limite que implica tanto a falta no Outro, como também a falta em si mesmo. Lugar de ex-sistência do sujeito.

Nasio6 nos dá uma visão bastante interessante quando toma estes 3 estados do gozar partindo do ponto de vista freudiano dos 3 destinos da energia psíquica. Para ele o gozo fálico corresponde ao estado em que a energia é dissipada promovendo um alívio relativo da tensão inconsciente através da descarga parcial.

O “mais-gozar, corresponderia ao gozo que, em contrapartida, permanece retido no interior do sistema psíquico, e cuja saída é impedida pelo falo”. Seria um “gozo residual” ancorado nas zonas erógenas, que as mantém em constante estado de excitação.

O gozo do Outro, ele o define como um “estado fundamentalmente hipotético que corresponderia à situação ideal em que a tensão fosse totalmente descarregada, sem o entrave de nenhum limite.” Segundo ele, este é um gozo suposto ao Outro, - sendo este Outro também suposto - que promoveria um estado ideal de felicidade absoluta, ou seja, de tensão totalmente descarregada. Sendo essa descarga total impensável, isto só poderia se projetar como ponto impossível no horizonte inalcançável da fantasia neurótica.
Neste mesmo vetor da felicidade Lacan propõe o Outro gozo, como gozo suplementar, próprio ao feminino, que permitiria pensar uma satisfação a mais na mulher e, solução para o famoso “enigma da feminilidade”7.

Mesmo que se tome a proposição de Nasio desse gozo como hipotético, inexistente, isto não resulta em que ele deixe de produzir efeitos.

Freud na conferência sobre a feminilidade diz assim: “Pero las cosas no son tan fáciles: ni siquiera sabemos si podemos creer seriamente em aquel poder enigmático, resistente al análisis, que tanto apasiona a los poetas.”8

E Lacan afirma que: “Há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser que o experimenta - isto ela sabe. Ela sabe disso, certamente, quando isso acontece.”9

Sem dúvida, poderíamos dizer que a clínica, tanto quanto a poesia, nos proporciona, algumas vezes, a oportunidade de ouvir esses efeitos. Tomamos esses versos como termo de comparação, pois eles nos falam de algo dessa ordem:

“Cada voz que canta o amor não diz tudo o que quer dizer
Tudo cala, fala mais alto ao coração
Silenciosamente eu te falo com paixão...”

Paixão é uma palavra que se emprega para referir a um estado emocional de exacerbação e arroubo. É um sentimento ou emoção que, segundo o dicionário,10 sobrepõe-se à lucidez e à razão, e pode referir-se tanto a um amor ardente quanto ao desgosto, mágoa e sofrimento. Pode referir-se também a um arrebatamento colérico, como disposição favorável ou contrária a alguma coisa e que ultrapassa a lógica.

A paixão como se pode ver convoca e afeta o corpo fora do sentido, silenciosamente, como emoção. Algo um tanto indefinido em relação à razão e à lógica que, sem nome ou forma, se experimenta. E é nesse ultrapassamento que essa emoção convoca o medo.

O parceiro silencioso do desejo é o medo quando a paixão coloca o sujeito fora de si.

Não há como dizer tais coisas quando este estado acomete o sujeito. Desta forma, o que a clínica pode nos dizer a respeito desse misterioso estado, na medida em que o sujeito dele não participa? Se não é o sujeito que aí goza, quem ou o quê goza, então?

Nada pode figurar eloquentemente esse estado entre ausência e presença, que chamarei, não por acaso, de “isso”, associando esse “silenciosamente eu te falo...” a um subtítulo do seminário 20 de Lacan onde se lê: “Aonde isso fala, isso goza, e nada sabe”11.

Isso não é cotidiano para nós falantes e seu ar enigmático se revela em tons de estranheza quando alguém, acometido por este estado de êxtase, se vê questionado. O sentido do estranhamento pode ser: “O que é que você tem? Parece que está nas nuvens?!!!”, ou ainda, “O que que é isso, companheiro? Calma, você está fora de si!!! É sempre surpreendente presenciar esse apagamento do sujeito quando da perda da razão. Por isso os crimes considerados passionais sofrem atenuantes.

Isso surge com alguma freqüência na clínica da histeria. Não digo da histérica, pois isto poderia limitar ao campo das mulheres, e isso ocorre também nos sujeitos masculinos em certas condições.

Isso parece ter duas faces. É algo que acontece sob o signo do amor irrealizável ou do ódio impotente; sob a condição de uma impossibilidade de realização. Como um encontro fortuito, pontual e evanescente, que coloca o sujeito “fora de si”. Assim é definido esse estado na maioria das vezes.

É algo rebelde à interpretação exigindo uma escuta focalizada no que eu chamaria de “esgarçamento” das palavras, que põe em cena o silêncio do indizível, como nos versos do poeta que acaba desistindo e concluindo não saber dizer.

Claramente diverge do silêncio da resistência, do não querer ou não poder dizer fruto da censura, da inibição ou do recalque, pois não é que o sujeito não fale. Ao contrário, a fala se estende e se torna reticente, repetitiva e exacerbada num esforço de encontrar palavra que defina, esticando, esgarçando as palavras, para encontrar ao menos uma que sirva para introduzir qualquer luz. Trata-se de um silêncio que reverbera em sombras, criando efeitos de enigma. O sujeito fala de algo que o ultrapassa.

De um outro modo ainda, podemos registrar esse estado de estranhamento e exclusão do sujeito nas chamadas crises de pânico, quando um sentimento de desamparo total faz emergir a angústia. Encontramos às vezes uma comparação entre essa situação e a anterior como correlativas ao mesmo estado.

O que a clínica nos revela, então, é bem parecido com o dizer do poeta:

“Nós somos medo e desejo, somos feitos de silêncio e som.”

Esse estar “fora de si” torna-se mais eloqüente no que aponta para um campo mais além do equívoco onde do silêncio do gozo surge o medo.

“De que temos medo? de nosso corpo. ... A angústia é justamente algo que se situa alhures em nosso corpo, é o sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de nos reduzirmos ao nosso corpo.”12. Reduzir-se ao corpo seria perder a condição de sujeito. A angústia, Lacan a define como “um medo do medo” e a situa como vertente do real sobre o campo do imaginário, como efeito da reverberação do gozo do Outro – J(A)13 . Esse gozo parassexuado próprio do corpo, excluído do caudaloso curso do discurso, que não acha palavras que o inscrevam para demovê-lo de sua impetuosidade, é feito de silêncio, mas se presentifica na devastação capaz de reduzir o eu à mortificação. Isso pode se expressar sob o prisma do medo da morte, tanto quanto do medo de enlouquecer.

Isso que aponta para uma felicidade absoluta, ao mesmo tempo se revela como algo mortífero. Parece ter essa dupla face, ou mesmo um tom furtacor que em seus arroubos de volúpia desprovida de limites, leva o sujeito à mortificação.

Encontramos este efeito paradoxal bem ilustrado nos escritos de Santa Teresa D’Ávila14, a monja espanhola. Penso que valeria a pena citar alguns trechos de seus escritos, para podermos ter uma dimensão do que se trata.

Na perspectiva da paixão, ela ensina a alcançar o gozo de Deus. Ela diferencia 4 graus de oração necessários para produzir na alma, primeiro um estado de união e depois um estado de arroubamento que visa os benefícios concedidos pelo amor de Deus. Ela descreve esse estado com as seguintes palavras:

“...Eu tinha começado a sentir às vezes, embora muito rapidamente, o que agora direi. Quando interiormente me figurava estar junto de Cristo,... ocorria-me de repente tal sentimento da presença de Deus, que de modo algum podia duvidar que o Senhor estivesse dentro de mim, e eu, toda mergulhada nele....
A alma fica suspensa de tal sorte que parece estar fora de si. A vontade ama, a memória, a meu ver, está quase perdida, o intelecto não raciocina, contudo, não se perde: entretanto, não age. ... Deus lhe dá a compreender que nada entende daquilo que Sua Majestade lhe faz ver e sentir.
15
“É como um agonizante que está com a vela na mão, pouco lhe falta para morrer e deseja a morte. Alegra-se naquela agonia com o maior deleite que se pode imaginar. Não conheço outros termos para o expressar ou declarar. Não me parece outra coisa senão um morrer quase totalmente a todas as coisas do mundo e estar na felicidade de Deus. ... É um glorioso desatino, uma celestial loucura... para a alma é maneira muito deleitosa de se regozijar.”
16

E então ela diferencia união e arroubamento:

“Desejaria esclarecer, com o auxílio de Deus, a diferença existente entre união e o que chamam arroubamento, rapto, vôo do espírito, arrebatamento, que é tudo um. Quero dizer que estes diferentes nomes designam uma só coisa, que também se chama êxtase. O arroubamento... “Tem grande vantagem sobre a união, alcançando efeitos bem maiores e vários outros benefícios.17
“É martírio tão duro quanto delicioso. ...só quer a Deus, e nele não ama em particular algum de seus atributos. A ele quer todo inteiro, e não sabe o que quer. Não sabe, digo, porque a imaginação nada lhe representa.”18
“Tal suplício nos põe certamente em perigo de morte. ... O desejo que o corpo e a alma têm de não se apartarem, é que lança o primeiro grito de socorro para tomar fôlego. ... Não sei ...como poderia expressar; mas, até onde posso atingir, é assim que acontece. ... A alma reparte com o corpo somente o sofrimento, e, padecendo, saboreia sozinha a felicidade e o contentamento que dá este padecer. Ignoro como pode ser isto, mas de fato acontece assim.”
19

Destas palavras retiramos um efeito não menos que paradoxal de felicidade e sofrimento supremos. Este gozar com Deus, produz o sentido de um encontro, de um absoluto, similar ao que é suposto atingir pelo encontro do objeto mítico. Mas ao mesmo tempo percebemos que Deus aí está em posição de Outro, destituído de atributos de objeto.

Talvez devêssemos completar esse recorte com uma fala de Lacan sobre a alma: “... a alma alma a alma, não há sexo na transação. O sexo não conta neste caso.”20

Isto exclui a possibilidade de interpretarmos esse sofrimento na vertente do masoquismo pois aqui temos exclusão do erotismo sustentado no objeto a.
Trata-se então da paixão em sua relação ao A e não ao a. Lacan se refere a essa questão no Seminário 20 quando diz que: “O que o discurso analítico persegue é dissociar o a e o A, reduzindo o primeiro ao que é do imaginário, e o outro, ao que é do simbólico..”21 Ele chama a atenção para uma possível confusão entre o significante da falta no Outro e o pequeno a. Estamos aquí diante de um efeito do Outro gozo e não do mais de gozar, pois o que está em jogo é o Outro em sua falta significante.

Vemos também que a questão do Outro gozo envolve essa ambigüidade que não é fácil de resolver, pois nesse mais além, prazer e desprazer assumem um caráter de ex-sistência em relação ao que conhecemos como satisfação e falta, norteados pelo Falo, na ordem simbólica.

Temos aqui um outro extremo, um outro registro, o do real sem mediação do Falo. O sofrimento nesses casos é revelado como emergência de angústia expressa como medo de morte e a felicidade é temida como medo da loucura. A busca ativa desse gozo, segundo se depreende do escrito de Santa Tereza, assim como da fala das mulheres, tem esse misto de alegria e dor, de luz e escuridão.

O poeta e os homens que tratam d’Isso também nos falam desse medo de morte e do sofrimento experimentados mesmo quando seu desvario parte do amor e não da cólera.

Quem sabe seria o caso de se pensar aqui a expressão mais pura da pulsão em sua alternância de vida e morte? O certo é que para se falar d’Isso não temos muitas palavras, muito menos explicações acabadas, definitivas.
Isto nos coloca como analistas frente a uma questão muito prática em relação ao final de análise.

Se esse é o gozo própriamente feminino, ao qual supostamente a mulher poderia, ou deveria ter acesso, e sabendo o quanto de mortificação ele pode implicar, deveria cada uma trilhar a via mística na busca dessa felicidade?

Ou talvez poderíamos pensar que tipo ou dose de misticismo a mulher pode suportar? O fato da maioria dos finais de análise se operarem para além da análise, nem sempre favorece ao analista responder a certas questões, que por isso só poderiam se dissipar pelo dispositivo do passe. Entretanto, a ética analítica nos aponta uma suposta saída como possível, teórica, que se trata de colocar à prova: a via da criação.

Abrir espaços de criação tem se mostrado, na clínica, uma tentativa eficaz de remediar esses gozos mesmo que não todos, mesmo que não tudo, orientando o sujeito para um real do qual ele nada mais pode dizer, a não ser que... não sabe dizer todo.

“Em toda a criação, nós, que ainda não amamos Deus perfeitamente, podemos encontrar qualquer coisa que reflete a beatitude celestial e qualquer coisa que reflete a angústia infernal. Encontramos algo do gozo beatífico e algo da pena de dano, que é a que sofrem os réprobos.”

Thomas Merton
1955

BIBLIOGRAFIA

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*Trabalho apresentado na XIII Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, novembro de 2001
**Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia.
1 Esta questão é discutida de forma muito interessante por Philippe Julien em seu livro “O estranho gozo do próximo” – Jorge Zahar Editor – RJ -1996
2 Seminário Livro 7 - A ética da Psicanálise
3 O futuro de uma Ilusão – E.S.B. vol.
4 Mal estar na Civilização – E.S.B. vol.
5 O Seminário – Livro 7 – A Ética da Psicanálise – 1ª edição, 1988 - pág. 342
6 Nasio, J.-D. – “Cinco lições sobre a Teoria de Jacques Lacan” – Jorge Zahar Ed. – RJ –1993, pág. 27.
7 Freud, S. – “A feminilidade” In: Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise – 1933 – ESB vol XXII
8 Idem – Obras Completas Editorial Biblioteca Nova – Madri – 1973 – 3ª Edição – vol III - pág. 3168
9 Seminário 20 – pág. 100
10 Holanda, Aurélio Buarque – Ed. Nova Fronteira - RJ
11 O seminário – Livro 20 – “mais, ainda”- Jorge Zahar Editor- 2ª edição – RJ -1985 – pág. 142
12 Jacques Lacan – “A Terceira”- 1979- Inédito – ( Texto falado por Lacan no congresso de 1974 em Roma e traduzido por Élide Valarini para a Biblioteca do Campo Freudiano) - pág. 38
13 Idem - Juissance de l’Autre – Gozo do Outro. pág. 40
14 Santa Teresa de Jesus – “Livro da vida”, Ed. Paulus – São Paulo – 1983 – 4ª Edição . Citado por Lacan no Seminário 20
15 Idem pág. 71
16 Idem. Pág. 123
17 Idem. Pág. 151
18 Idem. Pág. 156
19 Idem. Pág. 157
20 Seminário 20 – pág, 113
21 Idem. Pág. 111-112

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