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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.4  Salvador  2002

 

GOZO E SEXUALIDADE

 

O gozo: meu bem, meu mal*

 

 

Eny Lima Iglesias**

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

A autora enfatiza o mais-gozar que decorre do excesso de tensão que não é descarregada indicando processos de transgressão de limites que tocam o sofrimento e a morte. Como uma tensão que fica agarrada à vida, é despertada pela mãe ao manter a criança no registro do seu gozo libidinal. Ao assegurar a compulsão à repetição, o gozo apresenta várias formas de localização: enquanto gozo fálico é um bem, enquanto mais-gozar, é um mal.

Palavras-chave: Castração, Falo, Objeto a, Sintoma.


 

 

Chega a cliente na sessão dizendo que teve o seguinte pesadelo: estou em uma festa num lugar diferente, parecia o supermercado da orla em Armação. Toda a família estava presente. Tinha muita gente. Estou vestida com uma blusa de malha grossa de gola rulê. Saio para pegar uns CDs no carro. Nisto aparece um pivete com um caco de vidro me ameaçando. Procuro um jeito de me safar ou chamar alguém para me socorrer. Meu pai apareceu, lutou e deu porrada no pivete. Fico mais tranquila, volto para a festa e sento numa mesa próxima da entrada do salão. De repente, sou tomada de pavor ao ver o pivete se aproximando e atirando contra mim um caco de vidro que me atinge na região entre meus seios. Imaginar que ele feriu meu seio causa uma grande ansiedade. Puxo o caco do vidro e vejo que não ultrapassou a malha da blusa. Sinto-me aliviada. Continua a festa. Quando saio estou usando um vestido longo decotado.

Neste sonho está o exemplo de como se fabrica o gozo, esse mais-gozar que decorre do excesso de tensão que não é descarregada e que aumenta constantemente o mal-estar interno. Estamos diante do “Mais-além do princípio do prazer”, que Freud estabeleceu em 1920, indicando processos de transgressão de limites que tocam o sofrimento e a morte. O prazer passa e desaparece, ele é transitório, como a festa, ao passo que o gozo é permanente e intemporal, como uma tensão que fica agarrada à vida. O prazer é a sensação agradável percebida pelo eu quando há uma diminuição da tensão, um conforto no sentido do repouso, distensão, relaxamento. Já o gozo é a tensão máxima em que o corpo é posto a prova. No sonho, o corpo é atingido pelo caco de vidro e a dor é uma das principais imagens do mais-gozar. A cliente é prisioneira do desejo insatisfeito da mãe, ou seja, do gozo do Outro materno que favorece um acesso ao corpo da criança induzindo e favorecendo o gozo. É sempre a mãe que desperta e mantém a criança no registro do seu gozo libidinal, ou seja, a criança é chamada para o gozo, na medida em que a mãe favorece a atividade libidinal do filho junto a ela1. Os significantes maternos revelam-se determinantes em mobilizar a criança para outro espaço que não aquele do desejo imediato que ela negocia com a mãe. Nesse caso, a mãe como obsessiva está engajada numa luta sem fim para se assegurar do controle onipotente do objeto - a filha. É estratégia do obsessivo neutralizar o gozo do outro para transformá-lo de objeto vivo num objeto morto, sem desejo. Embora o gozo seja inevitável na relação mãe e filho, há algo que deve ser evitado, pois a língua falada pela mãe, é a lingua da pele, de tudo que é relativo ao corpo: numa palavra, do gozo2. O gozo do Outro materno foi muito nocivo para a filha. O sujeito se depara com a maldade do Outro: o que Ele quer de mim não é o meu bem, mas meu mal, minha castração.

“É esse o lugar da interrogação freudiana, na medida em que o gozo do Outro (genitivo subjetivo), ao me concernir (me dizer respeito), pode implicar, como consequência, o que é totalmente diferente de meu bem, isto é meu mal. E, inversamente, meu gozo do Outro (genitivo objetivo) em seu corpo pode comportar o mal de meu próximo”3 . “No bom uso dos prazeres, fraquejamos sistematicamente quanto ao gozo4 . Aí está a compulsão à repetição e é o gozo que a assegura. O inconsciente é o saber da repetição5que não pára de se exteriorizar em atos, palavras6 e nesse trabalho o inconsciente goza, ou seja, ao garantir a repetição7.

Lacan diz, no seminário XX, que o gozo faz barreiras ao saber, é ele que funda o “nada quero saber disso”. Existe um saber sobre o gozo? O gozo é aquilo de que fala o Direito: gozar de uma coisa é poder usá-la até o abuso-abuso que o Direito tem a ambição de limitar. A noção de usufruto, por exemplo, - que reúne o uso e o fruto – significa que se pode usar de um bem apenas até certo ponto: pode-se comer o produto, o juros, mas não o capital. O direito regulamenta o gozar limitando-o às fronteiras do útil. O gozo se define, ao contrário, como aquilo que se opõe ao útil: é, diz Lacan, aquilo que não serve para nada. O gozo se coloca assim como uma instância negativa que não se deixa reduzir nem às leis do princípio do prazer, nem ao cuidado da auto-preservação, nem à necessidade de descarregar a excitação8.

Para Lacan existem três estados caracterizados do gozar: o gozo fálico, o mais-gozar e o gozo do Outro.

O gozo fálico corresponderia à energia dissipada durante a descarga parcial, tendo como efeito um alívio relativo, incompleto da tensão inconsciente.

O mais-gozar corresponderia ao gozo que, em contra-partida, permanece retido no interior do sistema psíquico, e cuja saída é impedida pelo falo, pois é o falo que abre ou barra o acesso a descarga. O advérbio “mais” indica que a parcela de energia não descarregada, o gozo residual, é um excedente que aumenta constantemente a intensidade da tensão interna. Esse gozo residual permanece ancorado nas zonas erógenas e orifícios do corpo - boca, ânus, vagina, canal peniano, etc. O impulso do desejo nasce nas zonas erógenas e o mais-gozar as estimula constantemente, mantendo-as num estado permanente de excitação.

O gozo do Outro, estado fundamentalmente hipotético, corresponderia à situação ideal em que a tensão fosse totalmente descarregada sem o entrave de um limite. Esse é o gozo que o sujeito supõe ao Outro, sendo o Outro igualmente, um suposto. Esse estado ideal, esse ponto de felicidade absoluta é impossível, é o que corresponderia ao gozo místico ou gozo de Deus e o gozo da mulher.

O gozo é um real e como tal zomba das palavras e dos pensamentos, sua localização se faz por determinações simbólicas e imaginárias. É assim que encontramos o gozo na função fálica, no sintoma, na fantasia, no objeto a, no gozo feminino. Na busca da realização do desejo e por exigência da pulsão em se satisfazer o ser humano se depara com toda sorte de obstáculos representados: 1) pela linguagem – os significantes e, 2) em particular, pelo falo.

É o falo que baliza o gozo ou, dito de outra forma, é o desejo que faz barreira ao gozo. Freud trabalhou em termos de ter ou não ter o falo e isso era consequência do complexo de castração que é a forma como é regulado o gozo do exercício sexual. A atribuição fálica é a concepção de alguma coisa que deveria ter estado lá e que é, portanto, vivida como falta. Por esta razão, o objeto fálico é estritamente imaginário. Podemos então dizer que, em Freud, a questão da castração está irredutivelmente ligada à dimensão do falo e não à dimensão do órgão: o pênis ou ausência do pênis9.

Nos anos 70, Lacan, redefine o falo dizendo que o falo não é um significante como os outros e que ser fálico não pode ser considerado mais uma identificação. Ser o falo não é como ser branco ou ser negro, pois o falo não funciona como um atributo presente na lógica aristotélica que é definida pela frase sujeito-cópula-atributo (ex: ele é branco ou ele é negro, ele é fálico ou ele não é fálico). A lógica aristotélica é ter ou não ter um traço. “O falo é significante que marca a origem do gozo, materializada pelos orifícios erógenos; marca o obstáculo com que se depara o gozo (recalcamento); marca ainda as exteriorizações do gozo, sob a forma do sintoma, das fantasias ou da ação; e por último descortina o mundo mítico do gozo do Outro10. É um significante que permite uma dialética, se pode com ele, passar de um lado para o outro: do bom para o mau, do mais para o menos, quer dizer que se pode ser fálico ao mesmo tempo que castrado no seu gozo. Isto é decorrente do significante fálico estar sempre associado a uma função positiva de gozo e paralelamente a função negativa da lei e da interdição ligada ao pai do complexo de castração freudiano.

A função fálica tem, então uma dupla versão: tem uma face real – o gozo e tem uma face simbólica, a lei e a inderdição. Sempre que Lacan falava do significante falo como simbólico era relacionado a uma perda de gozo, tal como Freud via a castração como um rochedo intransponível. Não havia este lado real que é: “eu gozo dessa perda”. Inicialmente era esse lado único “ eu perco um gozo” (a castração representada pelo significante falo). Mas há o segundo tempo “eu gozo desta perda”. Com a castração se faz um mais gozar, mas estamos sempre desapontados com o que podemos obter, ficamos sempre a menos. O gozo obtido nunca é o gozo esperado, este seria o gozo ligado a relação sexual, um gozo de qualquer modo inatingível. A função sexual não conduz à plena satisfação, ela é sempre falha. O ato falho está assim intimamente relacionado com a sexualidade, no que há de sexual em todo ato humano.

Vamos falar agora do sintoma como outra localização de gozo. Em todas as estruturas existe uma solução de compromisso entre gozo e defesa. O sintoma é sempre sobredeterminado, pois está diretamente relacionado à ação do processo primário e se constitui por sucessivas estratificações significantes. Por isso, é que o sintoma é solução de compromisso e isso lhe dá um poder terapêutico de manter as coisas juntas, de estabilizar o sujeito limitando as devastações do gozo. Se retirarmos de um sujeito seu sintoma, sem certa precaução podemos desencadear a pulsão de morte com seus efeitos devastadores. “Os sintomas são, de fato, manifestações penosas, atos aparentemente inúteis que são realizadas com profunda aversão. É gozar de uma satisfação que é sofrimento para o eu e alívio para o inconsciente”11.

O gozo é sempre corporal e há sempre o aspecto de ser sentido, de ser um sofrimento. Existem gozos que não tem sua fonte no corpo. Freud, através dos exemplos que deu de gozo – o fort-da, a compulsão à repetição, o sonho traumático – mostra que a fonte do gozo está na relação do sujeito com os significantes. Isso é linguagem, e, se distancia do corpo, mas haverá sempre um resultado no corpo.

Na neurose o sintoma se articula ao pai, ou seja, o sujeito implica o pai na construção do seu sintoma, como vimos, o falo é responsável por esta articulação. Todos os neuróticos tem um sintoma, um fenômeno psíquico, que assume a função de “sinthoma”. Se caracteriza por fazer suplência do pai real, é um “sinthoma” associado ao pai e desse modo amarra os três registros: real, simbólico e imaginário.

Tanto o neurótico como o psicótico precisam fazer suplência, quer dizer, tentam amarrar os três registros para adquirir estabilização. Daí porque o uso que o sujeito faz do pai é um critério estrutural que vai determinar a amarração dos três registros do nó borromeano e as localizações de gozo.

Na psicose a suplência é uma suplência de uma falta no simbólico, a foraclusão do Nome do Pai. É o pai como agente da castração quem está em falta na realidade. Na psicose sempre há sintomas – vozes, alucinações, delírio, hipocondria – há sempre alguma coisa, mas não há “sinthoma”. Para o psicótico alcançar o “sinthoma” deve inventá-lo com outro suporte que não o Nome-do-Pai, diferente dos neuróticos que utilizam-se do Nome-do-Pai como “sinthoma”. A foraclusão significa que nenhum significante pode representar o sujeito na sua relação com o gozo e desse modo fica impedido de se inscrever na função fálica e como decorrência não há amarração dos três registros. O que ele consegue fazer são identificações que ajudam a manter o equilíbrio, porém são lábeis e instáveis12.

O sintoma não cessa de se inscrever devido a necessidade de enodar o simbólico com o gozo (a pulsão, a vida sexual), ele não cessa para que seja possível suportar o real da vida13. Desse modo o sintoma vai estruturar as relações sociais do sujeito, o que é evidente no neurótico que chega na análise com os registros - real, simbólico e imaginário - enlaçados. Porém isso não se vê claramente por causa do ciframento do inconsciente. O trabalho do ciframento é feito através de várias metáforas e metonímias que, numa análise, levam anos para serem decifradas, tendo que desfazê-las fio por fio até chegar à trama principal – o sinthoma que só será percebido no final da análise. Já na psicose, porque há menos ciframento do inconsciente vemos a falta de amarração do nó borromeano14.

Agora a fantasia.

A fantasia é outra função de gozo, é uma maneira de gozar pois ela se impõe ao sujeito e se repete independentemente de sua vontade. A fantasia é uma maneira de gozar desenvolvida em torno do mais-gozar. A fantasia é sempre encoberta por uma frase que está organizada em torno de um verbo que designa a ação que é o corte entre o sujeito e o objeto. O afeto ou emoção dessa ação não corresponde ao gozo. Para identificar o gozo inconsciente que está em jogo na ação é preciso considerar que parte do corpo intervem na ação. Esse gozo tem estatuto de objeto a, pois a estrutura da fantasia é a identificação do sujeito transformado em objeto15.

O objeto a designa uma impossibilidade, é um artifício do pensamento lacaniano para contornar a rocha do impossível: transpomos o real ao representá-lo por uma letra16. O estatuto formal do objeto a o define como aquilo que é heterogêneo ao sistema significante. Ou seja, o sistema produz alguma coisa excedente que lhe é heterogênea ou estranha. Um produto residual, de natureza real, que condensa o gozo e causa o desejo.

A idéia do objeto a em Lacan é de constituir este elemento constante, tal como o sintoma, que pode ser deduzido do conjunto das relações que existem na vida de um sujeito.

O analista semblante de objeto a pode ser compreendido como assumindo o papel da pulsão no funcionamento mental17. O lugar do analista é o lugar reservado ao objeto da pulsão, identificado com o gozo (mais-gozar) essa é a posição mais adequada para que ele aja18.

Diz Nazio que o gozo é o motor da análise, que o que predomina numa análise não é a fala, e sim o pólo atraente e dominador do gozo.

Já Lacan em “subversão do sujeito e dialética do desejo” diz que “o universo não tem outra razão de ser e de continuar a ser que não o gozo... é ele cuja falta tornaria vão o universo”

Daí concluir: o gozo, meu bem, meu mal.

 

BIBLIOGRAFIA

DOR, Joel. Estruturas e Clínica Psicanalítica. Taurus Editora. Rio de Janeiro, 1994        [ Links ]

JULIEN, Philippe. O estranho gozo do próximo. Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro, 1996        [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário 20. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1982        [ Links ]

MOREL, Genevieve. A função do sintoma. In: Revista Agente de Psicanálise, ano VI, n° 11, 1999[         [ Links ]STANDARDIZEDENDPARAG]

NASIO, Juan David. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1994.
        [ Links ]

 

 

*Trabalho apresentado na XIII Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, novembro de 2001
**Psicanalista. Membro fundador do Círculo Psicanalítico da Bahia.
1 Joel D’or, Estruturas e Clínica Psicanalítica, pag.51
2 Cf. Nasio, Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan.pág.54
3 Cf. P. Julien, O estranho gozo do próximo, pág.43
4 Idem, pág. 35
5 Idem, pág. 21
6 Idem, pág. 22
7 Idem, pág. 45
8 Cf. LACAN, seminário 20, pág.11
9 Cf. Joel Dor, pág.35
10 Cf. Nasio, pág.31
11 Cf. Nasio, pág.35
12 Cf. Genevieve Morel, A função do sintoma.
13 Idem, pág.25
14 Idem
15 Cf. Nasio, pág.127
16 Cf. Nasio, pág.93
17 Cf. Nasio, pág.123
18 Idem, pág.44

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