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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.4  Salvador  2002

 

GOZO E SEXUALIDADE

 

Gozo e saúde mental*

 

 

Albenor Luiz de Andrade Fonseca**

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

Considerando questões da clínica, o autor faz observações acerca do enfoque psiquiátrico e psicanalítico, buscando estabelecer relação entre gozo e saúde mental.

Palavras-chave: Gozo, Saúde mental


 

 

Às vezes é uma sensação desagradável que vem se manifestando há algum tempo. Outras vezes o desagradável, o mal estar, se instala de forma abrupta. Numa e noutra situação a sensação de estar doente é em geral muito mobilizadora. O sentimento de incapacidade soma-se ao quadro previamente estabelecido, agravando ainda mais o estado do padecente. Uma situação de doença transtorna sobremodo o ambiente da pessoa que está com a saúde comprometida.

Pensando em saúde nos deparamos com a necessidade de uma maior compreensão do termo e para tanto vejamos , ainda que de forma resumida, o que nos diz Almeida Filho discutindo o termo saúde num seu trabalho onde interroga “Qual o sentido do termo saúde?”. Diz-nos ele, estudando outros autores, que saúde e salud (castelhano) derivam de uma mesma raiz etimológica salus que no latim designava o atributo principal dos inteiros, intactos, íntegros. Dela deriva outro radical: salvus, que conotava a superação de ameaças à integridade física dos indivíduos. Citando Ray, também nos diz que salus provém do grego holos significando totalidade e raiz do termo holístico, tão em moda atualmente. Prosseguindo, Santé no francês, Sanidad em castelhano juntamente com o adjetivo São, provêm do latim medieval sanus significando puro, imaculado, correto e verdadeiro. Em alemão, saúde é gesundheit que implica diretamente integridade, inteireza (ganzheit). Em inglês, health, em sua forma arcaica (healeth) equivale a tratado ou curado. Todos os vocábulos dessa família semântica provêm de höl, germânico antigo que significa inteireza. De hol também se origina hõlig, raiz do vacábulo contemporâneo holy, que significa “sagrado” no inglês moderno . Em português , são também nos remete a sagrado e santo. Concluindo, a etimologia do termo saúde denota uma qualidade dos seres intactos, indenes e também traz a idéia de totalidade. Em algumas vertentes, saúde significa solidez, firmeza, força.

Para a OMS, Organização Mundial de Saúde, saúde diz de um estado de completo bem estar físico, mental e social.

Mas, tomemos o mental da definição anteriormente citada e vamos tentar um primeiro entendimento da saúde mental. Saúde mental, termo com freqüência utilizado para designar a atenção prestada por um departamento da instituição responsável pela saúde pública a doentes mentais. Numa tentativa de conceituar a saúde mental, Almeida Filho, Coelho, M.T. e Peres, F, acusando uma lacuna teórica, observam que “... em contraste com o muito que se tem investido no desenvolvimento de modelos teóricos da doença mental, pouco se tem avançado no sentido de construir conceitualmente o objeto saúde mental”. A saúde mental, nestas instituições, conforme a definição anterior, aborda seus doentes através do modelo médico-psiquiátrico, que com o desenvolvimento da neurociência, cada dia mais, tem sua prática fundamentada no uso de psicotrópicos .Este uso, convém lembrar, mudou a abordagem da doença mental e vem sendo fator preponderante no esvaziamento dos manicômios. Mas, em relação à ênfase que vem sendo dada a este modelo, vejamos o que dizem Yudofsky e Hales em seu Compêndio de Neuropsiquiatria: “embora muitos psiquiatras (incluindo nós mesmos) tenham preocupações profundas de que um foco aumentado sobre a biologia poderia fazer o pêndulo conceitual retornar a um extremo reducionista, onde os aspectos psicossociais das doenças neuropsiquiátricas são perigosamente subestimados, acreditamos, contudo, que a ênfase neurobiológica tem, por sua vez, mais vantagens que desvantagens para nossa profissão e para os pacientes aos quais servimos”.

Pode-se também tentando explicar este modelo, dizer que a demanda da saúde mental (psiquiátrica) é diferente da demanda psicanalítica, que como lembra Miller, ser a primeira socialmente determinada, ao tempo em que, a segunda “deve partir de uma exigência, de um ideal, da própria iniciativa do paciente, de seu próprio movimento”.

Se estivermos levando em conta apenas os casos de psicose e neurose levados para atendimentos em instituições de saúde mental não teremos muito que questionar, mas ao observamos o número de neuróticos/deprimidos que buscam tratamento nos ambulatórios de saúde metal, aí poderemos nos perguntar: Trazidos? Encaminhados? Não. Uma grande maioria vem espontaneamente, e trazem uma demanda de escuta que quando encontra resposta, esta é pequena, não sendo a parte mais enfatizada nesse modelo. As queixas são tratadas como transtornos a serem resolvidos, suprimidos pela medicação. O conflito é escotomizado e desejos não são levados em conta. Os pacientes aceitam o que a instituição lhes oferece e sentindo a respostas institucionais como insuficientes, saem em busca de respostas complementares através de práticas adivinhatórias, medicinas alternativas e religiões. Lembro Freud que numa explicação sobre religião diz: “sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante – maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força, num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massas, a religião consiste poupar a muitas pessoas uma neurose individual. Dificilmente, porém, algo mais”.

O número de pessoas de diferentes estratos sociais que, embora utilizando os progressos da ciência, buscam nas mais diversas religiões respostas para seus padecimentos, fala da importância delas para a humanidade.

Com o advento da globalização, o espaço para questionamentos e, conseqüentemente, para o exercício da singularidade, vem sendo, a cada momento, mais reduzido. As expressões políticas têm sido, “democraticamente” sufocadas. Já não se busca provocar transformações e Pangloss (Voltaire - Cândido ou o Otimismo) se mantém cada dia mais atual: “por conseguinte”, dizia ele, “aqueles que se arriscaram a dizer que tudo está bem, disseram uma tolice; era preciso dizer que tudo está o melhor possível”. Com isso, convém esclarecer, não estamos dizendo que todas as pessoas que buscam estes serviços submeter-se-iam a tratamento psicanalítico. A maioria, sabemos nós, não quer saber de psicanálise. A medicação é mais prática, às vezes traz alivio rápido e algumas delas são capazes de determinar dependência. Pacientes dizem: “vim buscar o meu remédio, com o remédio eu estou bem, não posso é ficar sem ele”. Já não é incomum a saúde mental medicamentosa.

Voltando a definição da OMS nos deparamos com a dificuldade em aceitar o seu enunciado de Completo Bem-Estar. Falando de outra forma sobre esta dificuldade de aceitação, poderíamos nos perguntar: Como Completo Bem-Estar? Lembramos Freud que nos diz que o homem, pagando um preço pela civilização, “trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança” (Mal Estar na Civilização, V. 21, p. 137).

Mas considerando a saúde mental enquanto algo que o doente pretende recuperar ou como algo cujo comprometimento expressa um mal-estar que o indivíduo já não dá conta sozinho, pensamos em Lacan que diz que “a clínica é o real impossível de suportar”. A diferença entre a clínica psiquiátrica e a psicanalítica guarda relação também com a prática que na primeira, muitas vezes, é suscitada pelo impossível de suportar pela sociedade enquanto na segunda com o impossível de suportar pelo sujeito.

Outro aspecto de considerável importância na forma de abordar clinicamente o doente mental diz respeito à visão que se tem do sintoma e também do que se espera ao empreender um tratamento. Sem esquecer que a clínica psiquiátrica é a clínica de referência da psicanálise devemos estar atentos quanto à visão diferente que uma e outra tem do sintoma. No campo psiquiátrico, o sintoma é constituído pelo psiquiatra que observa, dá nome e classifica o que vê. Já para a psicanálise, o sintoma vai existir a partir do discurso do paciente em análise. Mas, independente da forma como serão tratados, os doentes (que se sentem como tais exceto em determinadas patologias) buscam ajuda para distúrbios psíquicos, para distúrbios da sua saúde mental.

Algumas pessoas que não demandam à psicanálise e sim à psiquiatria carecem que lhes seja atestado estarem ou não em pleno gozo da sua saúde mental. Outros, já não conseguindo administrar o mal-estar que lhes avassala o ser, buscam ajuda em todo tipo de profissional da área “psi”.

Mas já que falamos em gozo de saúde mental, iniciemos a discussão do conceito de gozo, tão caro a Lacan, que este, segundo Valas, desejava que o campo do gozo fosse chamado Campo Lacaniano.

Vale ressaltar, nos lembra Nasio, que “como freqüentemente acontece, uma palavra do vocabulário analítico fica tão marcada por seu sentido habitual, que o trabalho de elaboração do teórico, muitas vezes, reduz-se a desvincular a acepção analítica da acepção comum. Esse é exatamente o trabalho que devemos efetuar aqui com a palavra ”gozo“, separando-a nitidamente da idéia de orgasmo”.

Lacan utiliza o termo de acordo com o seu uso jurídico (o gozo de um bem, distiguindo-o de sua propriedade), algo como nos atestados anteriormente referidos (“em pleno gozo da saúde mental”). Entendendo saúde neste caso, como um bem muito caro ao homem no mundo moderno. E caro neste caso, deve ser tomado em todos os sentidos.O gozo na teoria Lacaniana guarda relação com o desejo que obstaculiza, presentificando-se no sintoma. Lacan considera três estágios no gozar: o gozo fálico, o mais gozar e o gozo do Outro.

O gozo fálico, nos diz Nasio, tem este nome por ser regido pelo falo, que, funcionando como uma comporta, regula a parcela que sai (descarga) e a parcela de gozo que fica no sistema inconsciente (excesso residual).

Didaticamente, Pomier nos diz “o gozo humano é inteiramente estruturado por sua impossibilidade. Constantemente tudo que é sexual e fálico se apresenta mascarado, coberto pelo pudor, pelas convenções sociais, por uma porção de sinais de uma proibição que não apenas defende este gozo como também o provoca. Ora, é a uma instância paterna que se confere essa função de proibição. Por isso é que todo aquele que sonha com o gozo e o procura se choca com o pai: com o falo, que é insígnia de sua potência” (A Ordem Sexual...).

As outras duas categorias, nos diz Nasio, são o mais-gozar, que corresponde à parcela retida no interior do sistema psíquico, que teve sua saída impedida pelo falo. Esta parcela de gozo residual aumenta constantemente a intensidade da tensão interna; por fim a terceira categoria, o gozo do Outro, estado fundamentalmente hipotético que corresponderia a função ideal em que a tensão fosse totalmente descarregada sem entrave de nenhum limite. Este é o gozo que o sujeito supõe no Outro, sendo o próprio Outro um ser suposto.

Busca-se o tratamento analítico, que não é um processo estéril, numa tentativa de atenuação do sofrimento quando este se mantém , em níveis acima do suportável, quando há um comprometimento na saúde mental.

Espera-se ao final de uma análise uma outra forma de estar no mundo. Uma forma menos sofrida, onde a incidência do gozo não seja preponderante. Lacan ensina que “Se goza daquilo que se sofre”.

Explicando resultados do processo analítico, Soller, lança mão do conceito de Destituição Subjetiva que, comentando, nos diz ser este um conceito inventado por Lacan para marcar o fim da análise e esclarece que o sujeito ao entrar em análise o faz dizendo não saber o que lhe acontece, não saber o porque dos sintomas e também o porque de não poder suportá-los. Ela, interagindo, pergunta: falando poderemos encontrar aquilo que somos? Respondendo, nos diz: “podemos encontrar muita coisa, mas sempre há algo que escapa. Na dimensão da palavra o sujeito é sempre um enigma. Por isso o desejo é sempre necessariamente inconsciente. Ao tentar falar sobre o desejo, há o momento em que chegamos ao “umbigo“ , onde não podemos mais avançar.

Aqui, entra a idéia de destituição subjetiva. Ela consiste em dizer que no final da análise, o sujeito saberá alguma coisa. Mas é um saber diferente, pois, no interior de si mesmo, não é sujeito e, conseqüentemente, não acede à palavra. Trata-se do objeto do gozo: Esta parte do gozo que ele trazia em si mesmo e do qual nada sabia.

Mas Freud inquieta, nos leva à reflexão, nos provoca e nos deixa , no bom sentido , agoniados, quando diz:

“Nós podemos considerar a idéia de que a morte nos chega por vontade própria. É possível que derrotássemos a morte, não fosse pelo aliado que ela tem dentro de nós mesmos. Nesse sentido talvez seja certo dizer que a morte é um suicídio disfarçado”.

Ou o mesmo Freud, que se referindo a Nietzsche como um dos primeiros psicanalistas, o cita através de Zaratrusta, dizendo:

“Desgraça
Grite: Vá
Mas o prazer implora por eternidade
Implora insaciável, profunda eternidade”
.

 

 

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* Trabalho apresentado na XIII Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, Novembro de 2001
** Médico Psiquiatra, Psicanalista Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia

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