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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.5  Salvador  2003

 

PERVERSÃO

 

Mal me quer, bem me quer: pétalas perversas, gozo eterno *

 

 

Maria Lúcia Martins**

 

 


RESUMO

Este trabalho toma a literatura, conto de Guy de Maupassant, “A Empalhadora”, onde a autora localiza gozo, nomeado mudar-e-ficar-no-mesmo. Por oposição, toma “A Carta Roubada” de Allan Poe para ilustrar uma mudança propriamente dita. À luz da análise desse conto (Lacan, 1985), vai marcar a persistência (propriedade da mudança aparente ou de 1o nível), e no segundo, a transformação (mudança permanente ou de 2o nível) tendo, ambas, fundamento em duas teorias da lógica matemática, sugerindo, aí certa economia (no sentido freudiano), ou uma luz a mais sobre o “tempo de compreender” do psicanalista. Conclui pondo em foco a face polimorfa perversa do sujeito.

Palavras-chave: Gozo, Face perversa, Literatura, Mudança, Lógica matemática, Inconsciente.


 

 

Brincadeira entre meninas.
Tira uma flor, pensa no amado, vai arrancando pétala

por pétala e dizendo: “mal me quer, bem quer, mal me ...”
A última pétala dirá se “ele” lhe ama ou não....

 

Transdisciplinaridade: da ficção e da ciência, à psicanálise

Apesar de já termos apresentado1 os dois tipos de mudança do “Resumo” acima, através de um caso/construção de um paciente nosso, optamos falar pela via literatura, espaço mais lato e não menos verdadeiro. Caminho construindo pela trans-disciplinaridade. Para Lacan2 a verdade tem a estrutura de uma ficção: o que aparece sob a forma de sonho ou devaneio é por vezes a verdade oculta sobre cuja repressão se funda a realidade social. E talvez seja essa a sua lição maior: a realidade é para aqueles que não podem suportar os sonhos. O olhar/escutar de fora para dentro da escuta clínica nos faz pensar na analogia da lente de aumento (Vygotsky, 1984) dos brinquedos: com eles as crianças realizam fatos (de vida adulta) que nunca viveram. Em todas as idades, sabemos que de nossos devaneios e fantasias podemos mesmo relacionar fatos da vida e realidade, de forma nunca dantes acontecida. Na leitura (ficção), o leitor não só tem a liberdade de criar imagens ao texto/letra como escapar dele por seus vazios, caminhos em branco. O psicanalista também escapa da história linear escutada ... não se trata de um enredo. Se o analista fixa sua escuta no enredo, fatalmente se enreda. (...) a história do tratamento põe em cena uma fala em transferência a ser posta em ato na escrita. O estilo de Freud tem essa marca. (Froemming, 1998).

A nosso ver o movimento do psicanalista, do mar de histórias do paciente à pesca de uma fala (gozo, significante sem/sentido...) é, no mínimo, um prenuncio de mudança de tipo lógico (que veremos adiante) em sua clínica. Em suma, ao trazer tais contos, pinçamos situações que possibilitaram ilustrar dois diferentes tipos de mudança no bojo de atitudes humanas, desde corriqueiras a excêntricas.

Do ponto de vista epistemológico, nessa passagem transdisciplinar da ficção e da ciência, à psicanálise, muitas perguntas podem ser feitas; Aqui, nos interessa sobremodo pensar como se dá e em que consiste modos de “mudança” (de agir, de pensar, de dizer). Hipótese bem provável é que “a vontade..” (a promessa) de mudança emperrada, gozo, faz parte de um aparelho do sintoma. (J.A Miller, J. Forbes / 1997).

Do paciente sob escuta, diremos ainda que a fronteira entre os dois diferentes níveis de mudança (aparente, e lógica ou permanente) nem sempre são fáceis de serem traçadas. A nosso ver ela está intimamente ligada à direção da cura, que bem pode ser atualizada num longo caminho, clínica do sintoma (nunca no plural) (J.A Miller e..../1997), e do saber fazer com isso... (Lacan, Sem. XXIII). Sem investir neste aspecto, nos parece solidário pensar a teoria da mudança submetida às práticas teóricas da psicanálise: clínica; transmissão; formação; atualização.

Vivemos a virada de um século. Estarrecidos ante virtualidades fantásticas, engasgamos com surreais violências e guerras. Em imposições da globalização (econômica/política/cultural) entre países poderosos e ricos que determinam vida e morte dos mais pobres e mesmo dos em desenvolvimento. Tudo isso, à revelia de um processo de universalização, esta, sem dúvida, intimamente ligada à utopia de viver a aventura permanente da descoberta do conhecimento – certamente tão cara aos verdadeiros psicanalistas, os que fazem da escuta caminhos de analisar/criar/transmitir, e de formar novos psicanalistas. Tal problemática é tratada (Marinho, Kezen e Marinho, 1998) com clareza e profundidade.

 

A paixão e a mudança-e-persistência

Antes do resumo de A Empalhadora – conto da primeira fase de Guy de Maupassant (1850 -1849), que mostra, a nosso ver, um modo exemplar de gozo, paixão movida por todos os seus possíveis efeitos mortíferos – vamos apontar as duas faces de mesma moeda: mudança e persistência, simultaneamente: os autores de “Mudança”3 (1977) lembram que o tema não deve ser tratado em separado. Ou seja, analisar um modo de gozo sob o conceito de “mudança de 1º nível”, implica perceber, ao longo da história do indivíduo (relato, entrevistas iniciais - ou - leitura de ficção), o que muda e que persiste nessa mudança.

Vejamos um exemplo desse livro4 : o ciclista, para permanecer estável na sua bicicleta em movimento, necessita de um certo nível de mudança ou não conseguirá equilibrar-se rodando e avançando em seu caminho. Há fartos exemplos em que há mudança, mas, de nível inferior, já que ela se realiza como um elemento equilibrador na estrutura da situação de persistência: do ciclista, em manter-se em cima da bicicleta em movimento; do conto, da paixão de “A empalhadora” (a seguir) em ela continuar juntando suas moedinhas para o amado, vida inteira e até depois da sua morte...

No conto há um personagem/narrador, um médico, um dos vinte convivas da ceia de abertura da temporada de caça do castelo do marquês de Bertrans. “Veio-se a falar de amor”: o médico inicia a história da empalhadora.

(...) “Fui chamado ... à cabeceira dessa mulher (a empalhadora), agonizante. Ela tinha chegado na véspera, na carroça que lhe servia de casa, puxada pela égua (...). O padre já estava lá. Ela nos designou seus executores testamentários e para nos desvelar o sentido das suas últimas vontades nos contou toda sua vida. Nunca vi nada mais singular e mais pungente.

(...) Um dia - tinha então 11 anos – como passasse por aqui, encontrou detrás do cemitério o pequeno Choquet que chorava porque um amigo lhe roubara dois tostões. Estas lágrimas de um burguesinho um desses meninos que ela imaginava na sua frágil cabecinha de deserdada, sempre contentes e felizes, transformaram-na. Aproximou-se (...) e derramou entre as mãos dele todas as suas economias, sete centavos, de que ele tomou posse com naturalidade , enxugando as lágrimas. E então louca de alegria teve a audácia de beijá-lo. Como examinasse atentamente o seu dinheiro, ele permitiu-o. Não se vendo nem empurrada nem espancada ela recomeçou; beijou-o abraçando-o com força e de todo coração. Depois fugiu.

E o médico continua a história da empalhadora de cadeiras. Ofício que ela herdara dos pais. Pais que a criaram errante (como eles), suja e piolhenta sem lhe dar nenhum carinho. Chamavam-na coisa ruim. Tal desprezo certamente é em parte responsável por crivar na menina/mulher, um certo gozo: afeto desmedido (ingênuo), paixão de vida inteira por um moço rico, burguês que jamais iria olhar para ela... Mas a menina maltrapilha, desde a cena do cemitério, jamais se esquece um só minuto do menino Choquet.

Certa vez ela o avista jogando gude com os colegas e toma-o em seus braços com tal violência que ele se põe a “berrar de medo”. Para acalmá-lo ela lhe dá “três francos e vinte centavos, um verdadeiro tesouro que ele fixava com olhos arregalados”

O tempo passa. Ele se torna um senhor. Um dia, ela o vê saindo de sua bela farmácia envidraçada de braço com uma elegante e jovem mulher; sua esposa. Ela chora dois dias sem parar.

A pobre empalhadora certa vez, joga-se na lagoa. Salva por um bêbado, este a leva à farmacia do Choquet. Ele sem reconhecê-la, despiu-a, friccionou-a.. Mas a senhora é louca! Não deve ser tola desse jeito”

Isso bastou para curá-la. Ele lhe havia falado.

Agora, ela já não conseguia lhe dar dinheiro; mas tratava de ir à farmácia comprar pequenas poções das mãos de Choquet... Foi o único homem que vi sobre a terra, doutor não sei se outros existiam...

Ao morrer ela deixa dois mil trezentos e vinte sete francos em moedas; e, ao médico, a tarefa de entregá-los ao seu amor. Mas antes de fazê-lo, o médico conta toda a história aos Choquet. Este, indignado por ter sido amado por uma mulher à toa, faz coro com a esposa: “descarada, descarada”! Mas quando sabem do saco do dinheiro... ficam com ele.

Significantes da cadeia – se lhe dou dinheiro então posso tocá-lo...amá-lo – são alimento da paixão que atravessa uma vida de 55 anos: linguagem que ela tenta lhe ultrapasse mesmo depois de morta. Cabe perguntar se se pode falar em mudança ao longo da vida da empalhadora, já que, aparentemente, só existe a persistência (a repetição). Sim, há mudanças de 1º nível (mudança-e-persistência), nunca no sujeito (um que não muda de estrutura), representadas pelas naturais passagens da existência (encontro, crescimento, desconhecimento, casamento, morte) dos personagens. Assim, numa proporção inversa, a cada nova tentativa de se aproximar dele, mais longe ele fica; basta lembrar o episódio da tentativa de suicídio: ele a atende, mas não a reconhece; ela não existia para ele.

 

A CARTA ROUBADA E UM CASO DE MUDANÇA PROPRIAMENTE DITA, UM PARADOXO.

Ouçamos um resumo de A Carta roubada (Ferreira, A B. de Holanda e Rónai, Paulo, 1980):

– em Paris, num fim de tarde, outono de 18.., em completo silêncio Dupin e seu amigo se deliciam em fumar seus cachimbos degustando a penumbra de sua biblioteca; quebrado com a entrada do amigo comum, o Senhor G., chefe de polícia de Paris que logo inicia seu relato: ele recebera da rainha o encargo irrecusável de dar conta de uma situação bastante simples e estranha: encontrar uma carta (pelo que receberia alta soma), carta que fora roubada em sua vista (dela) no bourdoir do rei, pelo brilhante ministro D., Este, entra na sala régia no momento em que a rainha lê uma carta; em seguida ela tenta escondê-la. O que ela não consegue, colocando-a sobre uma mesa. Pouco depois, o ministro põe sobre a mesma mesa outra carta (de semelhante sobrescrito) que tirara de seu bolso. Ao sair, o ministro apanha a carta da rainha. E o chefe de polícia acrescenta que a rainha vê a troca e nada pode dizer pois não deve chamar a atenção do rei: tudo leva a crer que o grave assunto da carta (cujo teor não interfere na trama do conto, ou em sua refinada lógica) se conhecido por quem quer que fosse, comprometeria sua honradez e dignidade. Assim, a rainha se torna uma presa do ministro. E a única atitude que lhe cabe – calar quanto ao roubo ou atos da busca – não lhe garante, entretanto, nenhuma segurança quanto às possíveis atitudes ou ameaças do ministro. Resta-lhe, então, no desespero da incerteza, tentar reaver a carta.

E o chefe de polícia continua seu relato sobre os incansáveis esforços que ele e sua equipe têm realizado para encontrar a carta dentro do palácio do ministro. Dupin faz afiados cortes ao relato. Dupin – que conhece o ministro, homem de singular inteligência que combina as qualidades de matemático e poeta – tem certeza que seu amigo o chefe de polícia, homem de inteligência comum não saberá lidar com as qualidades intelectuais do ministro. Justo por elas, combinadas, o astuto Dupin atribui ao ministro, comprovada criatividade bem acima da média dos homens comuns já não fosse ele amigo do rei e homem sem nenhum caráter.

Sendo impossível mostrar o volume de detalhes do conto (rede lógica de sua trama) diremos que o seu desfecho – realizado por Dupin –, antagônico à complexa busca da carta comandada pelo chefe de polícia (por lugares nunca dantes suspeitados), se faz de forma muito simples. Dupin, desde que toma a si o caso, trata de colocar-se na pele do ministro: um poeta-matemático e não separando-o ora em poeta, ora em matemático. E isto significa compreender que a solução (que representa uma típica mudança de 2º nível) teria de ser encontrada a partir de sua (de Dupin) total identificação com o raciocínio intelectual do adversário/ministro.

Num dos célebres chistes (classe, “raros”) de Freud5 , eis a difícil questão de pensar pela via da cabeça do outro do diálogo: falar a partir do pensamento do outro.

Seguindo essa mesma trilha paradoxal, para Dupin, a carta só poderia ter sido posta, pelo inteligente ministro, bem à vista. E numa primeira visita ao palácio do ministro, ele localiza a carta; numa segunda, arma uma cena para que o ministro vá à janela, e troca-a por outra, ironicamente escrita. Algum tempo depois, o chefe de polícia, senhor G., faz-lhe outra visita. Recebidos os 50 000 francos prometidos, Dupin entrega a G., completamente estarrecido, a carta da rainha. A mudança é total: os membros da classe lógica (universo) mudam por completo de função; Dupin, a princípio um simples ouvinte, empenha-se em encontrar a carta (e ganha a recompensa...); o ministro, ignorando não mais possuir a carta, igualmente ignora já não ser dono do segredo da régia senhora...que recebe de volta a carta e vê-se livre da ameaça contida e de quem a enviou; o chefe de polícia é anulado: já não faz parte do universo da trama... de super temido, passa a elemento neutro.

Vocês estão vendo bem que só pode haver algo escondido na dimensão da verdade. No real, a própria idéia de um esconderijo é delirante – por mais longe nas entranhas da terra que alguém tenha ido levar algo, isso lá não está escondido vocês também podem ir lá. É a verdade que está escondida não a carta.

A citação (Seminário II, p.285, 1985) é instigante, e seus detalhes, fantásticos. Dela vamos tomar mais um significante: é a verdade que está escondida não a carta – referido ao chefe de polícia, e, por substituição, à empalhadora – .....não o homem amado. E não se trata de comparar a trama do conto de Maupassant com a de Allan Poe, mas, tomar um significante, um gozo, este que, a nosso ver, põe na mesma classe mudar-e-persistir os personagens de um e de outro, gozo vivido por dois tão diferentes tipos.

Ao nomear a carta de “sujeito inicial radical”, Lacan diz: (...) Na medida em que eles (os personagens de A Carta...) entraram na necessidade, no movimento próprio à carta, cada qual se torna, no decurso das sucessivas cenas, funcionalmente diferente em relação à relação que ela constitui. Em outros termos, se considerarmos esta história em seu aspecto exemplar, a carta é, para cada um, seu inconsciente. É seu inconsciente com todas as consequências, ou seja, a cada momento do circuito simbólico, cada qual torna-se um outro homem.

Assim, também, da empalhadora, podemos afirmar que juntando moedas e buscando seu amado e juntando... fosse entrar na necessidade, “disso” ela faz o calvário de vida-e-morte, outra mulher encarnada nela mesma. E ainda da citação, “(...), cada qual torna-se um outro homem.” é possível pensar na diferença: como e o quê cada um dos personagens, em seu circuito simbólico faz com “isso” que (lhe) fala ou inconsciente. Nos arvoramos dizer que há aí, pelo menos um personagem (o Dupin) que opera uma mudança de 2º nível; reúne procedimentos paradoxais com os quais apreende a carta. E isto equivale a afirmar que o autor cria outro universo (desfecho do conto) completamente fora do universo de raciocínio linear do chefe de polícia.

Na prisão de um gozo (repetição e persistência), na clínica, por vezes pensamos: a porta está aberta, por que ninguém enxerga a saída”?

Porque a saída implica a lógica do paradoxo. O chiste de Freud, para além do paradoxo implica a “técnica do absurdo”. Técnica empregada por Dupin.

 

RESUMO DE TEORIAS DA LÓGICA MATEMÁTICA

Alicerces do conceito de mudança em seus dois distintos níveis.

Teoria dos Grupos (TG) – o termo grupo foi atribuído por Ernest Galois em 1832, ao seu trabalho denso e fantástico de apenas duas horas; sessenta páginas que ficaram de herança para a ciência matemática – e que não pára de ser reescrita – texto que antecedeu sua morte, numa madrugada, após um duelo, aos vinte quatro anos.

A teoria dos Grupos faz alicerce à mudança de 1º nível (mudança “aparente”). Vejamos de que maneira:

O agrupamento de “coisas” é, sem dúvida, uma das formas fundamentais à nossa percepção da realidade. É sempre possível pensar, a partir de certa realidade, determinar um universo, agrupando seus elementos e nomeando-o um “grupo” – um conjunto de “n” membros em que todos gozem de uma mesma propriedade comum – eis a estrutura, a grosso modo, de um grupo (lógico matemático).

Precisando melhor, se existe um grupo, então há que existir quatro propriedades:

1 – ser composto de “n” membros reunidos por uma propriedade comum, o que equivale a definição por compreensão. Na teoria de grupo, a natureza real dos membros é irrelevante. Não importa a verdade/falsidade da real situação (ou fenômeno) de onde foram determinados.

2 – possuir uma lei de combinação. A verificação da operação de combinação definida num determinado grupo, significa que seus membros podem ser combinados em seqüências variáveis sem que por tal a combinação se altere (ou seja negada, ou inválida).

3 – possuir, entre seus membros, um membro de identidade (um elemento neutro) tal que a combinação desse membro com qualquer outro membro tenha por resultado esse outro membro.

4 – para cada membro de um grupo há que existir o seu recíproco (ou oposto), de forma que, qualquer membro combinado ao seu oposto tenha como resultado o membro da identidade (o elemento neutro).

Façamos um rápido retorno ao conto de Maupassant; se nomearmos membros de seu universo dramático – a menina, uma empalhadora; pai /mãe: o desprezo; o menino Choquet: um aristocrata; o beijo roubado; o dinheiro juntado; a paixão de um só lado – a partir deles, poderemos determinar as quatro propriedades de grupo que taluniverso conserva, isto é, um grupo que jamais muda de estrutura – embora entre seus membros se dêem (pseudo) mudanças.

Assim, a presença do conto de Maupassant neste trabalho, gozo mudar-e-ficar-no-mesmo, mudança de 1o nível que pode ser encontrada não só nas práticas clínicas e nas pedagógicas como na prática política. Tais possibilidades tornam-se concretas (ou “unidade do diverso”) e possíveis de com/provar, sob o fundamento da Teoria de Grupo.

Teoria de Tipo Lógico - De autoria de Bertrand Russel e Whitehead - a teoria de tipos Lógicos (TTL) é tomada como alicerce às mudanças de 2º nível (mudança “permanente”). De modo bastante resumido, a TTL, do mesmo modo que a TG, possui agrupamento de membros de um determinado universo, aqui nomeado classe, munida de uma mesma propriedade comum.

Entretanto, se existe uma classe (assim definida segundo a TTL), esta classe (coleção) goza do axioma essencial de B. Russel e Whitehead, expresso em sua principal obra, Principia Mathematica: o que quer que envolva a totalidade de uma coleção não pode fazer parte dessa coleção.

O livro Mudança (...) traz exemplos muito interessantes sobre processos de estruturação de grupos humanos que dizem respeito ao célebre “paradoxo de Bertrand Russel”. O exemplo – a humanidade constitui a classe de todos os indivíduos humanos mas ela própria não constitui um indivíduo que tal – parece de sentido óbvio. Entretanto, graves problemas humanos acontecem por não serem levados em conta a lógica básica no processo de busca de solução: primeiro (erro muito comum) pela indistinção entre classe e – membro de classe – e, segundo por desobediência ao princípio que funda a teoria do Tipo Lógico, o chamado paradoxo de B. Russel.

Finalizando esta parte, diremos que o raciocínio intelectual implicado na distinção de um ou outro caso de mudança é relativamente simples. Entretanto, articular a lógica de uma mudança (de 2o nível), seja num processo de vida, seja no de uma psicoterapia e sobremodo, no de uma análise, está longe de ser tarefa fácil. Grito ou silêncio do inconsciente... E sabemos que há de existir sempre uma lógica dele, equívoco, fita moebius, fora e dentro e fora e... inconsciente que nos fala. Quando conseguimos ouvidos para escutá-lo.

Numa típica mudança de tipo lógico, Dupin, para além de ter se apossado da carta (verdadeira), deixou em seu lugar um (...) fac-símile (do envelope). O conto termina com as palavras do Dupin: “(...) Ele (refere-se ao ministro) conhece bem a minha letra. Contentei-me em copiar no meio da folha estas palavras: .....Un dessin si funeste, S´il nést digne d´Atrée, est digne de Thieste” (mitos, .....)

 

CONCLUSÃO: PAIXÃO E SEUS EFEITOS DE GOZO

Sabemos que este nosso artigo tentou articular conceitos diversos, quase como quisesse misturar água e óleo. Mas se o intento foi este, lhe fomos fiéis: cada qual deve poder ser visto a seu tempo e lugar, distintos. Não se trata de elementos complementares mas de enfocar o gozo sob focos de luz vindas de áreas distintas. Por isso fazemos questão de frisar que nosso caminho se moveu em trans(disciplinaridade) e, sequer, supôs inter(disciplinaridade).

Para concluir vamos citar trechos (os cortes, sempre um risco) de um texto, lúcido, claro e poético de Cibele P. Barbieri, Sobre amor e gozo há certas coisas que não sei dizer...6 , onde a autora, vez buscou fundamento em Lacan, para nos dizer: (...) A paixão tem o dom de colocar em relevo esses três efeitos de gozo:

1. Ela carrega em si a marca do desencontro patrocinado pelo gozo fálico ... em tempo, lembramos, não existe relação sexual (Sem. XXIII, Lacan).

2. (...) O “mais-gozar” sediado pelo “objeto a” na fronteira entre o fálico e o Outro gozo, põe em jogo a erogeneidade do corpo trazendo em si a face perversa polimorfa do sujeito (...).

3. Quanto ao Outro gozo, o do Outro, este também deixa entrever seus efeitos de paixão revelando uma dupla face: arroubos de volúpia e de angústia.(...)

Apesar de nossa conclusão ser diretamente solidária à empalhadora (paixão que anula totalmente a razão), por oposto, o chefe de polícia não fica totalmente fora dos efeitos de uma paixão, aqui, permitindo-me estendê-la ao caso daqueles que se tornam cegos a tudo que não seja RAZÃO!

No mais, arrancando do mal me quer, bem me quer ... talvez este texto possa tocar algum resto de gozo que por ventura (perdoem a ironia...) ainda nos persiga. Mas, quem tem certeza de não o possuir, que... atire a primeira pedra... Quem sabe ela, fazendo o furo... Mas este já é outro artigo.

 

BIBLIOGRAFIA

WATZLAWICK, P; FISCH, R; WEAKLAND, R. Mudança – princípios de formação e resolução de problemas. São Paulo: Cultrix, 1977.        [ Links ]

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______________Seminário XXIII, tradução de Mário Almeida, E B P, Escola Brasileira de Psicanálise, sessão BA, agosto 2003.         [ Links ]

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Vários autores – Os casos raros, inclassificáveis, da clínica psicanalítica - A Conversação de ARCACHON – Orientação de J. Allan Miller – Prefácio da edição brasileira /Jorge Forbes, 1998 - Biblioteca freudiana brasileira.        [ Links ]

 

 

* Esta é uma segunda versão do trabalho apresentado na XXIII Jornada do CPB, Salvador BA, nov./2002, sob o título Do gozo mudar-e-ficar-no-mesmo à mudança propriamente dita- e paradoxos.
** Maria Lúcia Martins, escritora, licenciatura em filosofia, especialista Educação Matemática, faz laboratório de leitura e escrita e clínica psicanalítica.
1 Apresentamos o tema Mudança numa “quarta” do Círculo - 5/09/2001, ilustrada por um caso clínico, cujo significante “quanto mais me aproximo mais distante dele” (fala de um paciente nosso referindo-se ao pai) direcionou a construção do caso.
2 Zizek, Slavoj - A fuga para o real – tradução de Samuel Titan Jr. (Internet, psicopatologia 2002, UFRGS, orientação de Dr. José Luis Caon )

3 Os autores do livro “Mudança (...)” (1977, p. 20) chamam atenção para a falta de rigor matemático com que as teorias lógico matemáticas foram tratadas. Asseguram que (...). É antes uma tentativa de exemplificação por meio da analogia. Apesar de a matemática ser uma das áreas de minha formação, neste trabalho, esse não-rigor não chega a desvirtuar o caminho psicanalítico objetivado.
4 Idem -pág. 26

5 Freud conta: Dois judeus encontram-se num vagão (...). “Onde vai?” perguntou um. “ À Cracóvia” foi a resposta. “Como você é mentiroso”, não se conteve o outro. “Se você dissesse que ia à Cracóvia, você estaria querendo fazer-me acreditar que estava indo a Lemberg. Mas sei que, de fato, você vai à Cracóvia. Portanto, por que você está mentindo para mim?
6 Cógito, n° 4, 2003 p. 43

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