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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.5  Salvador  2003

 

PSICANÁLISE E CINEMA

 

Segredos para além da alma*

 

 

Miriam Elza Gorender **

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

O trabalho procura rastrear o percurso e as implicações de três filmes relacionados à Psicanálise: "Segredos de uma alma", "Freud, para além da alma" e "sexo, mentiras e videotape", recuperando assim um aspecto particular das relações entre Cinema e Psicanálise.

Palavras-chave: Cinema, História, Filme psicanalítico.


ABSTRACT

The paper seeks to trace the route and the implications of three movies related to Psychoanalysis: "Secrets of a soul", "Freud, the secret passion" and "sex, lies and videotape", restoring thus a particular aspect of the relations between movies and Psychoanalysis.

Keywords: Movies, History of psychoanalysis, Psychoanalytic movie.


 

 

São muitos os caminhos que levam a Roma. Alguns, no entanto, são certamente bem menos trilhados que outros. Minha intenção, assim, é apontar, por me parecer pouco conhecido, um tipo especial de relação entre a Psicanálise e o Cinema: o assim chamado "filme psicanalítico".

Em agosto de 1909, acompanhado de Ferenczi e Jung, Freud embarcava no George Washington , em Bremen, com destino aos Estados Unidos. Em meio a uma saraivada de "incômodos", entre os quais problemas de próstata, apendicite, dispepsia, Freud aos 53 anos de idade era convidado a descobrir o cinema mudo, após um jantar copioso, ficando-lhe da experiência a lembrança de "loucas perseguições" desenroladas na tela. Não exatamente o que se chamaria de bom começo...

Em dezembro de 1924 Samuel Goldwyn atravessava o Atlântico com a intenção de visitar Freud e "conversar ao menos uma vez com os maiores especialistas mundiais do amor". Sua intenção era a produção de uma grande história de amor fundamentada pelas descobertas da Psicanálise, oferecendo 100.000 dólares pela colaboração do Professor. Freud deu sua resposta à imprensa: "Não tenho a intenção de conversar com o Sr. Goldwyn". Segundo R. W. Clark, ele estava "indisposto com o cinema em geral desde sua viagem a Nova York em 1909".

Apesar de tudo isto, em início de 1926 estreava no Gloria-Palast, então o maior cinema de Viena, o filme "Segredos de uma alma" (Geheimnisse einer Seele), dirigido por Georg Wilhelm Pabst, sob a supervisão de Karl Abraham, presidente da Associação Psicanalítica Internacional, e Hans Sachs, analista-supervisor na Policlínica Psicanalítica de Berlim, com roteiro de Colin Ross e Hans Neumann e estrelado pelo astro da época Werner Krauss, Ruth Weyher, Pawlow e Jack Trevor.

A iniciativa partira de Hans Neumann, diretor do departamento cultural da produtora cinematográfica UFA. Neumann entrou em contato, em junho de 1925, com Karl Abraham. Este, já acamado devido ao catarro brônquico que ao final daquele ano o mataria, escreve de seu leito de doente a Freud. Diferencia a proposta da de Goldwyn, e pensa em uma obra de divulgação da Psicanálise com meios pictóricos oferecidos pelo cinema, então mudo. Freud responde com uma carta escrita apenas uma hora após receber a de Abraham: "...O famoso projeto não me agrada [...] Minha principal objeção é que não me parece possível fazer uma apresentação plástica minimamente séria de nossas abstrações. [...] O Sr. Goldwyn pelo menos era suficientemente inteligente para ater-se ao aspecto de nosso tema que permite perfeitamente uma apresentação plástica, a saber, o amor". Considera autorizar o filme apenas e se o projeto preenchesse suas condições, mas mesmo assim, "Não nego que preferiria não ver meu nome de forma alguma associado a isto".

Em agosto de 1925 Ferenczi envia a Freud um recorte do Times no qual seu nome já era usado com fins publicitários. Freud responde a Ferenczi: "Não se pode evitar o filme, ao que parece, como não escapamos do corte de cabelo à la garçonne, mas de minha parte não deixarei que cortem os meus, e pessoalmente não quero ter nada a ver com este filme".

O tema do filme ganha certa importância, inclusive, por se constituir em pomo de discórdia, perante o qual os habitualmente fidelíssimos Sachs e Abraham adotam posturas mais firmes e ousam contrariar a vontade expressa do mestre, defendendo sua realização. Sachs chegaria mesmo, posteriormente, a referir-se ao fato com certa culpa. E é interessante notar que a polêmica ocorre não muito tempo após a dissidência de Otto Rank, amigo querido de Sachs, e berlinense como este último.

Patrick Lacoste faz notar: "Nos últimos tempos, Abraham enfrentava as maiores dificuldades para falar (faltava-lhe o ar). Freud começava a experimentar suas dificuldades para articular sons. A realização de um filme mudo provocou a última divergência entre os dois".

O filme em si acabou versando sobre um "caso clínico verídico" (parece haver vários pontos de ligação com o caso do Homem dos Ratos): o Professor Mathias corrige, com uma navalha, os cabelos da mulher, a quem ama com ternura. Na casa vizinha as janelas são escancaradas , uma mulher grita: Assassino!. O homem, com a atenção voltada para o grito, percebe com certo horror que fez um leve corte no pescoço de sua mulher. No dia seguinte, ao voltar do trabalho em seu laboratório de ... análises, chega uma carta: seu primo virá visitá-los de Sumatra, e envia de presente um sabre oriental e a estátua indu da deusa da fertilidade (o professor e sua esposa não tem filhos). O professor tem um pesadelo, e no dia seguinte, após a chegada do primo, elegante e sedutor, no jantar, o professor mostra-se incapaz de cortar a carne, o que provoca sua fuga. Ao refugiar-se em um café, esquece a chave. Um homem o segue, e junto à porta de casa, exorta-o a procurar em todos os bolsos para afinal devolver-lhe a chave, não sem manifestar-lhe a convicção de que ele certamente estava enfrentando dificuldades "em casa...".

É a deixa para que o analista (pois é disso que se trata) deixe seu cartão. Seguem-se cenas do tratamento, até que, em uma seqüência, o analista pede ao paciente que repita o gesto que fez com o sabre no sonho. O professor imita, com o cortador de papel que está sobre a escrivaninha, o movimento de penetração - compreendendo, de súbito, o que faz e ao mesmo tempo surpreendendo-se de ser capaz de segurar um instrumento cortante.

Depois do tratamento, o professor retoma seu lugar, o primo parte para novas aventuras, e na última cena, em um chalé nas montanhas, surge a mulher do professor, acenando-lhe, tendo nos braços o filho. The end.

No seu lançamento, no início de 1926, simultaneamente, saiu uma breve monografia de Hans Sachs, destinada a todos os espectadores do filme. Ernest Jones afirma ter visto o filme quando estreou em Berlim, dizendo que teria provocado "uma grande consternação". Mas as críticas da imprensa foram, em geral, extremamente favoráveis. Todos saúdam a novidade e as realizações técnicas envolvidas, e os elogios a Werner Krauss dispensam comentários. Tratava-se de "um tema de candente atualidade". No entanto, cerca de um mês após esta excelente estréia, o filme viu-se submerso e apagado por um verdadeiro fenômeno do cinema mundial, chamado "Encouraçado Potemkim", estreando em abril de 1926.

Passar-se-ão quarenta anos até que um cineasta importante se interesse novamente pela Psicanálise, desta vez tomando como figura central a biografia de Freud. O interesse de Huston pela Psicanálise remonta à realização do terceiro documentário de uma trilogia encomendada pelas Forças Armadas americanas durante a Segunda Guerra Mundial e chamado Let there be light, sobre a recuperação de combatentes vítimas de distúrbios neuropsiquiátricos, e que desagradou de tal forma o Pentágono que o Departamento de Guerra vetou sua apresentação, e sua liberação definitiva somente ocorreu no final de 1980.

O diretor passou três meses no Mason General Hospital, em Brentwood, em 1945, e esta experiência o marcou profundamente: "Não sabia grande coisa a respeito da Psicanálise, ou pelo menos não me interessava especialmente pelo assunto. Mas, a partir daí, tive uma enorme revelação do inconsciente. Fiz experiências com hipnose e já naquela ocasião sabia que um dia iria fazer um filme sobre Sigmund Freud.

A oportunidade surgiu finalmente em 1962, com Freud, além da alma, cujo roteiro inicialmente foi entregue a Sartre. Este, por 25 mil dólares, entregou roteiro tão longo e detalhado que daria para 5 horas de projeção. Após revisá-lo, Sartre entregou um outro ainda mais extenso. O roteiro foi, então, elaborado por Huston e Wolfgang Reinhardt, sob a supervisão de dois psiquiatras, os doutores David Stafford Clark e Earl Loomis. O filme é construído como um verdadeiro policial, no qual o protagonista funciona como um detetive da alma, decifrando, por meio de interrogatórios implacáveis, o que a Universal chamou de "paixões secretas".

A casa de Freud em Viena, ainda de pé, serviu para os exteriores. Huston contratou um hipnotizador de verdade. Montgomery Clift, no papel de Freud, intrometia-se a todo momento querendo mudar as cenas, com o argumento de que estaria fazendo análise há onze anos, mas seu desempenho foi extraordinário. E Marilyn Monroe foi cogitada, inclusive por Sartre, para o papel feminino que ficou com Suzannah York, mas seu analista desaconselhou a participação. Suzannah York agia de forma histérica no estúdio, que parece ter se convertido em cenário de um psicodrama selvagem. Mas a obra, apesar da aprovação de vários psicanalistas, foi um fracasso de público, tendo todos lamentado que não houvesse "suficiente sexo no filme"...

1989. Ann, casada com John, não mais dorme com ele. Conta a seu psiquiatra que isto não é grande problema. O sexo realmente é supervalorizado, ela pensa, comparado a problemas maiores, como a forma como a Terra rapidamente se enche de lixo. Seu marido, no entanto, tem um caso tórrido com a cunhada, que sempre se ressentiu da irmã "boazinha".

Um velho amigo, Graham, aparece, e um dia conversa com Ann. Quando esta lhe conta sua opinião sobre o sexo, ele lhe revela que é impotente. Ele filma as fantasias sexuais de mulheres, e as assiste. Ela descobre vestígios de sua irmã no quarto de dormir. Logo, ela e Graham estão em frente à câmera. A situação se resolve com John vendo o videocassete, atacando Graham e lhe dizendo que o havia enganado com sua mulher. Graham quebrou sua câmera, jogou fora os videocassetes e senta-se com Ann na soleira da porta. Estranhamente, tem certeza que está chovendo lá fora.

O argumento acima foi uma adaptação livre do roteiro de Segredos de uma alma, filmado por Steven Soderbergh sob o nome de sexo, mentiras e videotape O filme, rodado com poucos recursos, lançou o cineasta e ganhou a Palma de Ouro do festival de Cannes. Wim Wenders, presidente do júri, declarou que a realização "fez avançar o cinema". Tema de "candente atualidade", deu a James Spader o prêmio por melhor "intérprete masculino". E um comentarista afirma: "Não é nunca aborrecido, e há momento em que nos lembra quão sexy os filmes costumavam ser, nos dias em que a fala era uma zona erógena".

 

Bibliografia

LACOSTE, Patrick. 1991. Psicanálise na tela. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar        [ Links ]

GOMES DE MATOS, A. C. & LEEMANN, Sérgio. 1985. John Huston, Ernst Lubitsch, Fred Zinnemann. Rio de Janeiro: Ed. Brasil-América (EBAL).        [ Links ]

 

 

* Trabalho apresentado na XIII Jornada do Circulo Psicanalítico da Bahia, Novembro de 2001.
**Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia. Professora adjunta do departamento de Psiquiatria da UFBa.

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