SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6A instituição psicanalítica e a transversal do tempo author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.6  Salvador  2004

 

CONFERÊNCIAS

 

O que se escreve entre o analista e o analisante

 

 

Aurélio Souza*

Espaço Moebius - Bahia

 

 


RESUMO

O autor trabalha o tema do analista, do analisante e da instituição através do dispositivo que Lacan identificou como os discursos e sua extensão na produção do analista.

Palavras-chave: Analista, Analisante, Instituição, Discursos, Estrutura.


 

 

Meus agradecimentos ao Circulo Brasileiro de Psicanálise pelo convite para participar mais uma vez de seus trabalhos.

Vou tomar o tema do Congresso, tratando do analista, do analisante e da instituição, procurando fazê-lo através desse dispositivo que Lacan identificou como os discursos e sua extensão na produção do analista.

A psicanálise, desde o período que se seguiu à sua invenção, constituiu-se numa prática em que o analisante utilizando-se das palavras promovia a eliminação de certas idéias que o fazia sofrer mais. Enquanto que estas idéias passaram a fazer parte de um sistema que se constituía “fora da consciência” e foram designadas por Freud de inconsciente, a operação, ele a equivaleu a uma “limpeza de chaminé”.

Já no final de sua obra, Freud chegou a considerar que estas duas instâncias - a do inconsciente e a da consciência – mantinham uma clivagem radical, em que, mesmo que suas faces permanecessem voltadas uma para a outra e mesmo muito próximas, seus elementos, de um ponto de vista descritivo, lógico e estrutural, estavam impedidos de se freqüentarem.

Lacan que nesse mesmo período já estava com o pé na psicanálise. Iniciou uma leitura de Freud e algum tempo depois fez uma convocação aos analistas de um retorno às origens da psicanálise. Não se tratava de repeti-lo ou mesmo de citá-lo, mas de seguir a letra de sua descoberta e tomar sua obra sob a forma de um novo discurso.

De sua parte, aproximou-se do estruturalismo e procurou desenvolver a noção de estrutura no campo da psicanálise. Dedicou-se a uma leitura minuciosa do Curso de Lingüística Geral, de Saussure, e opôs ao signo lingüístico [significado sobre significante] uma topologia do significante [S maiúsculo sobre s minúsculo]. Aí, cada significante não só mantinha uma relação de pura diferença entre eles, como era também reenviado a outros significantes, guardando uma propriedade de permutação que obedecia às leis da linguagem – a metáfora e a metonímia –, vindo a formar palavras, frases e orações.

Com isso, o inconsciente de Freud também sofreu uma transmudação, passando a se constituir num saber que se estruturava como uma linguagem e que vinha habitar essa “outra cena”, “fora da consciência”, numa posição terceira entre o analisante e o próprio analista. Tratava-se de um tipo de saber que, de início, tomou o estatuto de causa material dos sintomas que afetavam o sujeito.

Essa estrutura linguageira, em sua condição mais irredutível, passava a ser concebida como um lugar designado de “grande Outro” e denotado pela letra [A] maiúsculo, da acrofonia de “Autre”. Como tal vinha interditar uma suposta relação de harmonia que se poderia idealizar entre o animal humano e a Natureza.

Todavia, para ter a estrutura linguageira como sua “casa”, o sujeito teria que pagar seu preço: em primeiro lugar, passava por uma operação de alienação que o colocava numa dependência “eterna” às leis simbólicas. Uma operação que lhe trazia conseqüências radicais e irreversíveis por toda sua ex-sistência.

Em seguida, numa operação em que toma uma posição ativa, ele ataca a cadeia de significantes e sofre uma operação de separação, que se metaforiza na perda de algo do corpo que o sustenta e que lhe é arrancado através de três tipos de operações: a privação [uma operação no real com a perda de um objeto simbólico], a frustração [uma operação no imaginário com a perda de um objeto real] e a castração [uma perda no simbólico de um objeto imaginário].

Assim, o sujeito constitui-se dividido e passa a habitar na linguagem sofrendo os efeitos de dois sistemas: o inconsciente e a consciência. Talvez, se deva dizer que o sujeito mantém-se dividido entre um UM que o representava [S1] e um “outro significante” [S2]. Ou ainda, de uma maneira mais rigorosa, que o sujeito dividido oscila entre duas dimansões – uma que pode se satisfazer numa escritura e uma outra que pode se satisfazer pelo exercício da fala, tomando o significante a partir de sua polissemia.

Em conseqüência dessas operações, o sujeito tornava-se diferente dessa instância que é “eu” e até mesmo o corpo que o sustenta não responde mais a uma pura condição biológica. Nessa operação linguageira, portanto, o sujeito dividido [$] não só perde seus instintos, como até mesmo a anatomia pode ser concebida através de uma percepção que se realiza além do organismo; assim, as formas, os órgãos e suas funções passam também a ser modelados pela própria estrutura da linguagem. O sujeito deixa de ser natural.

Do lado do sujeito, isso que ele perde, adquire o estatuto de um sacrifício necessário que terá de fazer no ato de sua própria constituição, determinando com isso que ele só possa se realizar nesse mundo de linguagem sob a forma de uma metonímia de seu ser e que passe a ocupar uma posição excêntrica na estrutura. Do lado do grande Outro [A], essa perda presentifica-se numa “falta”, numa falha que passa a fazer parte da estrutura e vai estar implicada à própria noção de repetição.

Estas duas “faltas” - no sujeito e no grande Outro – delimitam um lugar que vai corresponder ao campo do objeto na psicanálise e que passa a ser denotado pela letra [a] minúscula. Para o sujeito, esse pequeno [a] constitui-se num “a-bjeto” que se apresenta sob diferentes semblantes e que se sucedem em suas realidades plurais. O sujeito vai estar sempre à procura desse a-bjeto, numa condição que vem revelar uma contingência tragicômica de sua ex-sistência, pois todas as vezes que ele pensa tê-lo encontrado, “não é isso” de que se trata, pois ele sempre lhe escapa. Além disso, o objeto [a] adquire a função de causa de sua própria divisão e de seu desejo.

No grande Outro, a existência dessa falta presentifica-se para o sujeito como um desamparo, como uma “experiência traumática” que passa a se repetir como uma demanda primordial e incondicional e diante da qual terá que produzir os meios para se defender. Ele o faz não só inventando um saber, o saber inconsciente, como também a partir da construção de um artefato fantasmático através do qual se acomoda numa relação de junção e disjunção [<>] com o objeto, com o qual passa a se identificar em suas diversas apresentações, à espera de que possa com isso vir a satisfazer ao desejo do Outro.

Lacan procurando dar rigor e um estatuto de cientificidade a sua leitura de Freud, fez uma primeira incursão à topologia, procurando com os objetos de superfície – o toro, a fita de Moebius, a garrafa de Klein e o cross-cap – fazer leituras analógicas do discurso analítico.

Neste caso, a repetição dos significantes que vinha construir cada um destes diferentes objetos, possibilitou-o identificar a presença de um lugar invariante que se definia como um buraco e que passava a ser ocupado pelo próprio objeto [a]. Essa presença de um buraco na estrutura subverteu a psicanálise, não só afastando a idéia tradicional de se representar o mundo do sujeito por uma esfera, essa figura ideal do espaço euclidiano, como passava a fundamentar a própria constituição do sujeito como um sujeito de superfície que deslizava pelas superfícies destes diferentes objetos.

A partir daí, algumas inferências puderam ser tiradas. Uma primeira delas, de que o inconsciente deixava de pertencer às profundidades da mente ou da alma, para se manifestar na superfície. Uma segunda, de que a noção de estrutura também foi se deslocando de uma dimensão simbólica para uma dimensão real, evidenciando a importância que a letra e a escritura passavam a ter em seu ensino; se o real é sem representação, sem ilustração e não pode ser falado -, deve ser pelo menos escrito e mostrado. Desta maneira, Lacan invocou a necessidade dos matemas – letras, sinais e fórmulas que viessem escrever as questões da prática e da transmissão da psicanálise, possibilitando com isso uma série de escrituras que foram sendo elaboradas em seu ensino.

A estrutura passando a ter uma dimansão do real, passava a produzir conseqüências na relação entre o analista e o analisante. Com a intervenção que fez sobre o signo saussuriano, Lacan, de início, matemizou a estrutura significante através da escritura [S1 - S2]; mais tarde, ele tratou de aplicar a esse “par”, formado por elementos diferentes, um axioma identificado, na teoria dos conjuntos, como do “par ordenado”. Para isso seria necessário se estabelecer uma certa ordem, uma convenção escrevendo-se um primeiro conjunto {S1} e, em seguida, não simplesmente o segundo conjunto {S2}, mas a relação entre o primeiro e segundo, que passava ela mesma a ser considerada um conjunto: {{S1}, {S1 - S2}}.

Aqui, duas considerações podem ainda ser feitas: a primeira, de que nessa escritura, [S2] pode ainda ser substituído pelo conjunto que ele mesmo representa, isto é, [S1 - S2] que, por definição, é também equivalente a grande [A]; quanto à segunda, desde que a estrutura passou a ser concebida como de uma dimansão do real, por mais que o significante UM [S1] viesse a se repetir, esse “outro lugar” [A] sofria um processo contínuo de deslocamento, realizando uma impossibilidade lógica e estrutural de ser alcançado.

De um ponto de vista topológico, essa condição que pode ser matemizada através da escritura – S1 {à {S1à {S1 à ... A}}} – mantém uma propriedade que vem definir o que se identifica como um “buraco”. Como me referi anteriormente, essa noção do “buraco” pode ser denotada pela letra [a] minúscula. Esse fato autoriza que se possa, mais uma vez, modificar a escritura anterior para S1à {S1à {S1 à ... a}}}, onde o grande Outro toma forma de pequeno [a].

Esse fato que pode ser matemizado numa escritura simplificada - S1 à ... @ - realiza a condição de que essa intervençã do significante do sujeito [S1] sobre esse “houtro lugar”, “outro-que-real” [a]1 - gera, em ato, a produção de significantes, da rede de significantes que vem adquirir o estatuto de um Saber, do próprio saber inconsciente [S2]. Paradoxalmente, é pelo efeito do significante que se constrói essa noção do “buraco”, esse “houtro lugar” que não só adquire uma função também significante [S2], como vem fazer uma oposição radical ao lugar do significante UM [S1], absorvendo-o numa operação equivalente àquela do “par ordenado” [S1 à S2].

Distanciando-se de Saussure, Lacan abandonou a idéia de que a estrutura se constituía como uma cadeia de significantes, em que o significante UM vinha representar o sujeito para outro significante. Passou a concebê-la como uma coexistência de significantes, em que o significante UM passava a representar o sujeito entre outros significantes. O significante UM não mais se presentificava para um outro significante, mas como um significante que passava a fazer conexão entre outros significantes [A ou S2].

Essa intervenção do significante do sujeito [S1] sobre esse “houtro lugar”, que toma o estatuto de significante [S2], coloca o saber inconsciente em ação, produzindo algo que se perde e que toma o estatuto do objeto [a]. Essa operação que se pode matemizar por S1 à S2 à a [$] traz também suas conseqüências.

Em primeiro lugar, vem repercutir sobre essa idéia, uma falsa idéia que tem sido muito divulgada até hoje, até mesmo por psicanalistas, de que o inconsciente é uma estrutura que antecede o sujeito em sua existência, que participa de fantasmas que proliferam “fora da consciência” ou nas profundezas da alma. Aqui, o que se deve considerar é que o saber inconsciente produz-se em ato e se realiza como um sujeito, um sujeito do inconsciente que, constituindo-se como uma resposta do real, tem a função de organizar esse buraco em forma de [a] que vem corresponder à própria estrutura e a Lei. Dito de outra forma, o saber inconsciente é uma produção em ato, é uma invenção do sujeito, é um saber que se inventa em ato.

Em segundo lugar, a estrutura, diferente de uma cadeia de significantes ou mesmo de letras, como era visto pela lingüística, que se inscrevia numa dimensão do espaço-tempo euclidiano, aqui, ela passa a se inscrever num plano projetivo. Ela é concebida como uma coexistência de significantes que é denotada por [S1], um “enxame” [l’essaim] que intervém sobre [a] e que, ao tomar o estatuto de significante [S2], vem formar essa “conexão” [S1 à S2] que se inscreve numa superfície real. Esse desenvolvimento vem fundamentar um dos enunciados emblemáticos de Lacan: “o grande Outro não existe”.

Tomado como um axioma, ele traz seus efeitos na prática de uma análise em intenção, pois comparece para o sujeito como ex-sistência, isto é, com uma dimensão do real que o causa. Aqui, mesmo que o grande Outro não exista, o sujeito desenvolve uma crença e o presentifica de diversas maneiras em suas realidades, atribuindo-lhe uma condição de existência à medida que fala dele. Dito de outra forma, o grande Outro só existe, quando se fala dele e isso o torna capaz de produzir seus efeitos, gozando do corpo que sustenta o sujeito.

Ele pode fazê-lo, presentificando-se nestas manifestações que se reconhece nos psicóticos sob o signo das alucinações e dos fenômenos elementares, ou mesmo quando se realiza numa clivagem em que o sujeito renega sua crença, como no enunciado, “não creio em bruxas, mas elas existem!”.

Ele existe ainda sob uma condição que vou considerar necessária e contingente do sujeito neurótico, que o toma com atributos de um “deus” com muitos semblantes. Um “deus” que o olha constantemente, que dita “leis” e o penaliza, pois o sujeito nas relações que mantém com o gozo e o desejo, ele é sempre culpado e, por isso mesmo, terá que pagar suas faltas e sua culpa, com sacrifício e dor. Um “deus” que é responsável pelo que lhe acontece, que interfere em suas escolhas e mesmo que decide seu destino; isto é, um “deus” que é susceptível de gozar das infelicidades do sujeito. Deus é do real.

Por estas e outras razões, Lacan passou a considerar a psicanálise não mais como uma prática terapêutica, mas do ponto de vista de uma ética que tivesse conseqüências clínicas. Uma ética que não trouxesse como objetivo a busca de um acordo com as normas e as realidades sociais, que não buscasse um ideal de conduta ou um bem que, satisfazendo a um, pudesse servir para todos. Nem mesmo uma ética que se desenvolvesse a partir de um dispositivo formal, como aquela proposta por Kant, em que a significação moral da conduta não depende de resultados externos, mas de uma retidão de propósitos, onde o comportamento ético é bom desde quando obedece à lei, independente dos resultados: o homem deve agir não só conforme o dever, mas também por dever.

Sua leitura tomou um outro viés. Ele buscou como princípio regulador da psicanálise um enunciado que tomasse o estatuto de lei e que pudesse funcionar como uma ética para seu ofício: “não ceder quanto ao desejo”. Mais tarde, utilizando-se de uma homofonia, extraiu a letra “h” da ética [ét(h)ique] e a transformou numa “étiquette”, uma “pequena etiqueta” que instituía a prática da psicanálise com um certo “cerimonial” entre oanalista e o analisante.

Obedecendo a essa “pequena etiqueta” a psicanálise deixa de se constituir numa relação entre dois indivíduos, duas pessoas ou mesmo entre dois sujeitos que participem de um espaço comum. Ela passa a corresponder a um tipo de “laço social” que liga dois lugares construídos a partir de uma divisão vertical que se realiza sobre uma “superfície primordial” que não está relacionada a um espaço euclidiano, mas a um tipo de “hiperespaço”, a um espaço real2 .

Estes dois lugares, o da esquerda - o lugar do sujeito – além de ser ocupado pelo significante que o representa, o significante UM [S1], é daí também que todo discurso se origina; à direita - o lugar do objeto – que embora ocupado por pequeno [a], toma o estatuto de significante [S2], um “houtro lugar” para aonde todo discurso se dirige.

A conexão entre estes dois lugares vem constituir a noção de discurso, como um dispositivo linguageiro que determina o espaço e os tempos de uma análise em intenção e que recolhe os efeitos do real que se produz na direção de uma cura. Equivalente a um laço social, ele passa também a ter uma incidência na cena social e, por isso mesmo, no curso dos tempos, eles têm sido ocupados por diferentes pares, tais como - o “amo e o escravo”, o “homem e a mulher”, o “mestre e o a-estudante”, os “cruéis e os ressentidos” e, mais recentemente, o “analista e o analisante”.

Embora esse significante discurso já fizesse parte da linguagem corrente, foi preciso a psicanálise ter sido inventada para que ele encontrasse seu valor e que pudesse mostrar a implicação que existe entre o público e o privado. Em sua condição mais efetiva, o discurso é um tipo de relação que se cristaliza na linguagem, estabelecendo as condições para que essa “pequena etiqueta” possa funcionar, regulando a análise em intenção e possibilitando também uma leitura de sua inserção na cena social.

Essa noção de discurso corresponde a uma montagem que funciona como uma máquina que institui e indica ao analisante e ao analista, seu lugar e sua função. Desde que o discurso determina o que se fazer, ele passa a se constituir num fundamento da análise.

Cada um destes lugares sofre uma outra divisão, horizontal, que alude à topologia do significante, à divisão do sujeito ou mesmo ao recalque primário, construindo um quadrípode, uma estrutura de “quatro patas” que dá lugar a uma topologia rudimentar dos discursos.

Assim, do lado do sujeito passam a existir duas “casas”, uma acima da superfície que é designada como - lugar do agente - e outra abaixo, que vem corresponder ao lugar da Verdade. O lado do “outro significante” é também dividido em duas casas, acima e abaixo da superfície que o divide e que são nomeadas respectivamente de lugar do gozo e lugar da produção:

Estas quatro “casas” mantêm relações rígidas entre si e vão ser ocupadas por letras que fazem parte da álgebra lacaniana - $, S1, S2 e a. Estas letras movimentam-se num tipo de permutação cíclica de um quarto de volta, determinada por um elemento gerador que ocupará sempre o lugar do agente. A ocupação destas casas vem formalizar diferentes estruturas discursivas que passam a ser nomeadas em função da letra que vai estar ocupando esse lugar que permanece inominado: o lugar de agente.

Aqui, não vou tratar dos discursos radicais desenvolvidos por Lacan [do mestre, do histérico, do universitário e do analista], pois isso está publicado em meu livro recém editado. Vou tomar posição para tratar do que se escreve numa análise em intenção. Aqui, o analista comparece no discurso que o qualifica - o discurso do analista – não com seu ser, nem como pessoa, mas através de uma função em que se faz semblante desse objeto obsceno e miserável, o objeto [a], iniciando um jogo em que deve abrir mão do gozo que está implicado à própria Lei do desejo: “não ceder quanto a seu desejo”. Desta maneira, ocupando o lugar de semblante, ele convoca o analisante a ocupar o lugar do “outro” e a trabalhar através de uma lógica de ação, que é equivalente ao próprio ato analítico, onde sua participação nesse jogo é produzir significantes-mestres.

Quanto ao analisante, ele ocupa o lugar de agente, como um sujeito dividido [$], comparecendo no discurso que o qualifica – do histérico – com sua divisão subjetiva, com seu sintoma e, sobretudo, com um desejo de satisfazer a esse suposto desejo do grande Outro, que embora não exista, lhe cobra um preço: de gozar dessa condição de se fazer objeto do desejo do Outro e para o Outro.

O significante-mestre [S1] que se produz sendo expulso da rede simbólica, não só vem determinar um ponto de escansão na fala do analisante, fazendo-o calar, como aparece isolado sem qualquer ligação com outros significantes. Lacan, a partir de certo momento, tratou-o através de um axioma - “há do UM”.

Um UM que não busca uma unidade da completude imaginária, nem mesmo esse UM do simbólico, de um traço contável que representava até então o sujeito. Rompendo com as ciências, ele passou a considerar esse UM [S1] como um enxame [“l’essaim”] enriquecido pela fonética e com uma dimansão do real. Um UM que passa se constituir num lugar que contém, de uma maneira sincrônica, os significantes que possam representar o sujeito.

Se esse “significante enquanto mestre” [S1] está em seu lugar [como agente], ele será sempre a Lei que intervém de uma maneira imperativa sobre esse “outro lugar”, impondo uma injunção de trabalho a seus ocupantes, forçando-os a produzir conexões desse significante [S1] com outros significantes [S2], como uma conexão que vem constituir a própriaestrutura do inconsciente.

Lacan procurou estabelecer uma equivalência entre o significante e a letra, mostrando que “todo significante, do fonema à frase, pode servir de mensagem cifrada [ou] se destaca como objeto e se descobre ser ele que faz com que no mundo do ser falante haja o Um...”3 . Mais tarde ele vai afirmar a equivalência entre o significante e a letra.

Neste dispositivo de lugares e letras que fundamenta a noção de discurso, não importam os fatos que possam ser comunicados numa língua oficial, mas que algo se escreva através de uma outra estrutura linguageira que tem sido identificada por Lacan como lalíngua, que vem marcar e ferrar o corpo que sustenta o sujeito.

De seu lugar, o analista deve fazer valer sua função, possibilitando ao analisante a se orientar nesta “pequena etiqueta” da análise. Sob transferência e com um tipo de associação - que não é tão livre quando se diz, mas ligada -, o analisante deve mostrar através da letra, uma passagem que vai da polissemia do significante para uma polifonia da letra, num tipo de escritura onde para cada letra muitas palavras podem ser ditas, numa série de mal-entendido que muitas vezes nem mesmo chega a qualquer orelha.

Na polifonia, portanto, realiza-se uma pluralidade de vozes, que não diz respeito a qualquer enunciador, mas de algo que se sustenta num dizer que dá apoio aos ditos, revelando a natureza essencial de lalíngua. Sempre que algo é dito, produz-se um tipo de gozo que passa a fazer parte das diferentes realidades do sujeito [I] e do semblante do objeto que vem constitui-las, podendo produzir sentido [S]. De uma maneira paradoxal, desde quando existe uma orientação que é dada pelo real [a] o próprio sentido é foracluído.

Em cada ponto da malha simbólica, que é causada pelo real, precipita-se um nó de sentido que vai instituir uma franja entre o que é admissível e o insólito. Por isso mesmo nenhum dito é inocente de antemão, podendo sempre trazer o segredo de uma catástrofe anunciada [feliz férias, boas provas, faça uma boa viagem].

Desde que o real gera o simbólico, o analisante com a parte que lhe toca, deve fazer com que a verdade se revele. Quando a verdade fala, ela fala por si mesmo, embora ela só possa se dizer pela metade, como uma meia verdade, uma verdade não-toda.

Com os discursos, Lacan promoveu uma passagem da verdade como um semidizer à produção de um Saber que vai ocupar o lugar da Verdade, e que vem adquirir uma dimansão do real. Um saber, portanto, que existe no real e passa a ter relação não mais com a fala, mas com o dizer, com a escritura.

Desta maneira, o discurso analítico passa a se constituir “num discurso sem palavras”, transmudando-se numa prática de leitura, onde se deve ler de um outro modo aquilo que o analisante diz. Pedaços do real, pedaços de um saber, de um não todo do saber que lentamente vai sendo transmitido ao analisante, convocando-o a ler de “outro modo” o que é dito por ele, no curso de sua análise em intenção.

Ler de “outro modo” não é uma condição simples, desde quando para tratar desta questão Lacan jogou com uma homofonia de “autrement”: Savoir-faire-autrement, Savoir-lire-autrement e ainda Savoir-lire-autre-ment [saber-fazer-de-outro-modo, saber-ler-de-outro-modo e saber-ler-outro-mente].

Ler de “outro modo”, portanto, é descobrir que o “outro mente” ou ainda que o grande Outro não existe. Essa condição coloca a psicanálise como uma prática que não crê na predestinação, na fatalidade, no destino, nem mesmo em deus, mas passa a ter sua causalidade atribuída ao que ex-siste de real no inconsciente.

Uma análise levada até certo ponto possibilita, diz Lacan, “de objeto a, com objeto a” que através desse dispositivo de discurso, que envolve o analista e o analisante, possa se produzir a efetuação deste saber inconsciente que vem se ancorar no real; ou ainda, que se revele os meios através dos quais o analisante pode apre[e]nder como o saber inconsciente é produzido.

A análise pessoal, portanto, é a condição necessária, porém não suficiente para que um analisante sem passar por qualquer padrão standard de ensino, se qualifique à condição de ser analista. Só do lugar de sua própria análise é que um analista, quando existe, condiciona a ordem do que é capaz de dizer e fazer.

Todavia, para desempenhar sua função, em intenção, além dessa qualificação necessária que lhe é dada pela análise pessoal, ele deve ter uma vontade de ser analista. Se no curso de uma análise, o analisante descobre que quer ser analista, que existe uma “vontade de ser analista”, ele deverá levar essa tarefa adiante fora da análise – num agrupamento, numa instituição, numa escola de psicanálise, com uma transferência de trabalho.

Lacan chegou a se referir a essa questão, fazendo um contraponto com a função “desejo do analista”, isto é, que venha significar no curso de sua análise um resto irredutível de seu sintoma transformando-o nessa função - desejo do analista4 .

Até aqui, portanto, a análise em intenção é a condição necessária para se produzir analista. Uma prática cruel, como diz Lacan, já que a aposta da análise é entregar ao sujeito sua loucura, isto é, a possibilidade que o sujeito tenha na análise a revelação do além ou aquém das significações fálicas, a descoberta de que tem sido sempre autorizado pelo Pai, devendo abrir mão disso, para o ...pior, que é sua identificação em todos os termos ao objeto [a]. Ele se faz objeto [a], já que esta é a condição necessária do analisante, no final de análise, para vir a ser analista, de poder se colocar no lugar de “semblante” no discurso que o qualifica.

Assim, “entregar sua loucura” ao analisante, é possibilitar ao sujeito o objeto [a ] que lhe cabe. Esta tarefa, vou insistir, corresponde entregar ao sujeito, através de intervenções que tenham efeito de interpretação, um não-sentido que se constitui no não-todo do ato, o não-sentido que se opõe ao todo do fantasma fundamental. Isto é, revelar o “não sentido” que existe nos diferentes sentidos de suas realidades e de sua estrutura.

O analisante no final de sua análise, portanto, deve significar seu sintoma e deixar aparecer essa função “desejo do analista”, que vem instituir uma alteridade radical entre o significante que o representa [S1] e o “houtro significante” [S2]. Ele se faz objeto [a], se faz de “semblante” que possa organizar e sustentar um novo discurso, como analista.

Portanto, é a saída da análise que induz o advir do analista. Da finitude da análise, o analista deve fazer passar do privado ao público, sua experiência, a crê nas diferentes fixções desse saber inventado que conserva os equívocos de sua hystória, que tem sido construída no curso da análise. Ele o faz até o ponto em que isso o satisfaça. Aqui, ele deixa de se autorizar do Outro, do Pai, para se autorizar por ele mesmo.

Um terceiro desenvolvimento sugerido por Lacan, para o final de análise, corresponde a uma identificação ao “sinthome”. Ficará para uma outra oportunidade.

É o que tenho a dizer. Obrigado.

 

 

NOTAS

*Psicanalista, fundador do Espaço Moebius, Salvador,Bahia.
1 Lacan, J., Le savoir du psychanalyste, aula de 03/03/1972. Documento interno da Association Freudienne.
2 Lacan, J., Sem. XVI, D’un Autre à L’autre, aula de 04/12/1968. Documento interno da Association Freudienne Internationale.
3 Lacan, J., Télévision, Autres écrits, Seuil, Paris, 2001 p. 516.
4 Lacan, J., Comptes rendus d’enseignement [L’Acte Psychanalytique], in Ornicar? 29, p. 21, Navarin - 1984.

Creative Commons License