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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.6  Salvador  2004

 

CONFERÊNCIAS

 

A instituição psicanalítica e a transversal do tempo1

 

 

Carlos Pinto Corrêa*

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

O tempo disponível que os associados dispensam à instituição psicanalítica é o tempo do ócio. Para o autor, esta disposição compromete o processo de pertencimento dos membros, criando uma vinculação frágil com a estrutura institucional. Sem a força reguladora das antigas sociedades psicanalíticas, o vínculo atual estaria ligado à questão narcísica de seus membros.

Palavras-chave: Instituição, Temporalidade, Ócio.


 

 

“Não temos realmente medo a não ser do que não compreendemos.”
Guy de Maupassant

Acostumado às questões da atemporalidade do inconsciente, o psicanalista vive em sua instituição uma extrema vulnerabilidade temporal. Na sujeição ao tempo a instituição psicanalítica tem sido dilacerada, interpretada , mas também recriada em incompreensível multiplicação por cissiparidade. Revista como efeito ou sintoma oriundo do inconsciente dos psicanalistas, como agrupamento social, ou por seus atributos políticos pelo desempenho do poder, e mais recentemente, repensada como fenômeno histórico, é na verdade assunto inesgotável para todos nós. Apresentei alguns trabalhos a respeito e sei que não suportam uma revisão séria, quer pelas incoerências e contradições acentuadas pelos anos e modificações de nossa noção sobre a instituição, quer por nossa própria mudança de ponto de vista. Com a proposta deste congresso de tomar as dificuldades atuais da psicanálise integradas a uma questão maior, podemos fazer novas tentativas. Na verdade vivemos uma crise de dimensão planetária pela homogeneização e pasteurização que retira do homem sua capacidade de pensar com autonomia. Assim, para falar da instituição psicanalítica no admirável mundo novo, ocorre-nos repensar filosoficamente sobre o efeito do tempo na instituição. Uma espécie de interpretação genealógica como metodologia proposta por Foucault.

O meado do século passado foi marcado pela expressão “ganhar a vida, que significava a garantia da sobrevivência graças ao trabalho remunerado” (OLIVEIRA). Sem o brilho anterior, a expressão é reabilitada em nossos dias pelos ideólogos da chamada Engenharia do Tempo. Ganhar a vida passa a ser tomado como a recuperação em suas múltiplas dimensões e fruição do mundo. Seria a antítese da tão chorada vida perdida. Ganhar a vida como “reapropriar-se de sua matéria prima: o tempo”. Simples é imaginar que uma vida bem vivida é um tempo bem gasto. É por aí que os leitores de Borges se assustam com sua confissão desesperada do que não fez e o leigo que o desconhece é induzido a se penalizar com aquele que supostamente teve uma vida inútil por nada produzir. Aproveitar é ideológico. A revolução industrial ensinou que o tempo é para produzir e no admirável mundo novo pensar é proibido.

De sua natureza o homem vive duas experiências fundamentais: trabalha ou descansa. Antes de alguma condenação ao não trabalho, vamos à etimologia: ócio, do latim otium é o tempo de repouso e paz. Seu oposto é bellum, guerra. A condenação deste tempo livre veio pela igreja com a sentença que o ócio é mãe de todos os vícios. Mas a virtude do produzir fica sob suspeição etimológica pois negócio é derivado de nec que sugere morte ou pernicioso. Assim, negócio é ocupação ou embaraço, a morte do repouso. Já tivemos a época em que se falava do gentil homem, nobre ou rico, cujo direito de nascimento legava uma perfeita segurança sobre seu destino sem a necessidade de se contaminar com tarefas servis. Havia o senhor que devia viver bem e para o trabalho existiam os subservientes ou escravos. Na vida moderna há uma disponibilidade de trabalho e lazer para todos, com a sugestão de um equilíbrio desejável para que cada cidadão exerça alguma atividade que o mantenha economicamente produtivo, assim fazendo jus a algum tipo de lazer formalizado e aprovado.

Culturalmente, a valorização da propriedade trouxe como conseqüência a absolutização dos meios pelos quais se processam o acúmulo de bens, isto é o trabalho produtivo.A noção de aproveitamento do tempo ficou subordinada à noção de acúmulo de riqueza, e a de ócio marcada pela indignidade.

VEBLEN estudou histórica e sociologicamente a questão da oposição entre uma classe ociosa e uma classe produtiva. Com ele aprendemos que existem diferentes formas de ócio.Temos o ócio conspícuo, assim chamado não por ser evidente, mas por ser circunspeto, sério e respeitável. Às vezes sua condição decorre de certas pessoas que o praticam, como determinados colecionadores, outras vezes por sua própria realização como no caso do músico amador da produção literária e do estudo. Existe também o ócio com dignidade que impõe valores de honra ou nobreza. Aqui está a dedicação a algumas ongs, filantropia e outras obras. Finalmente temos o ócio improdutivo que somente é assim aos olhos do outro que julga. Este ocioso pode viver uma intimidade harmônica consigo mesmo como os chamados contempladores, ou estar curtindo a sua fossa. É claro que nós psicanalistas desacreditamos da gratuidade com que o ócio foi colocado. Para nós sua prática estaria sujeita à economia psíquica que nos aponta para um ganho ou o gozo.

 

POSIÇÃO DO PSICANALISTA

No exercício da Psicanálise encontramos duas vertentes. De um lado temos a Clínica que, por ser economicamente produtiva, situa o psicanalista em uma classe trabalhadora. Em segundo, a vinculação ao estudo e a teoria que faz parte de um ócio ( não produtivo). Está claro que ele não pertence a duas classes sociais concomitantemente. Ele oscila entre as duas posições em temerária temporalidade que incide sobre a estrutura institucional.

Para interpretar ou entender a instituição psicanalítica pode-se valer do próprio saber psicanalítico. Partindo da formação do analista procuramos entender o que de inconsciente escorre, flui, obstrui, revela, constrói e também destrói a instituição. Outra possibilidade é entender-se que grupo institucional não é uma simples soma de sujeitos que possam ser compreendidos pela extensão da psicanálise individual, ou como lembra KAES “a instituição produz realidade psíquica de acordo com o modelo do aparelho psíquico grupal, mas segundo modalidades e conteúdo específico”. Não pretendemos no presente trabalho confrontar ou sintetizar essas duas posições, que em vez de serem opostas nos parecem complementares. Aqui gostaríamos de tomar a questão da temporalidade que se insere na economia cruzada tanto nos investimentos psíquicos, como no coletivo e ideológico em seus três espaços.

 

ESPAÇO DE TRANSMISSÃO

Historicamente a instituição psicanalítica é buscada por quem deseja ser psicanalista. Em tempo de análise didática, a entrada era feita pela manifestação explícita deste desejo. Acatado pelo analista didata e eventualmente submetido a algum tipo de seleção, ele era admitido como aluno, passando a participar desta espécie de escola profissionalizante, sempre com o objetivo de trabalhar na clínica. Hoje, várias instituições têm um outro tipo de participante que busca nos cursos oferecidos uma complementação do saber de si iniciado com a análise ou satisfação intelectual de saber sobre a psicanálise. Para realizar esta função de transmissão a instituição psicanalítica assume característica de uma escola com registros, controle de freqüência, algum tipo de avaliação e aprovação, e principalmente o estabelecimento de uma relação professor-aluno. É na faceta da transmissão onde existe declaradamente um saber do outro (teoria) que deve ser assimilado. É portanto uma relação de trabalho.

Por outro lado, os psicanalistas são mobilizados para função de ensino, tornando-se professores sem contrato, sem concurso, sem registro e sem salário adequado. Trata-se de um exercício do ócio com dignidade.

 

ESPAÇO DE SUSTENTAÇÃO FORMAL

A instituição é também representativa e desempenha uma função política semelhante a tantas outras associações de classe ou profissão que comumente são praticadas por membros diletantes que tem nela o exercício de uma espécie de ócio vicário. Como entidade legal e administrativa possui funções burocráticas, de comunicação, biblioteca e tantas outras que podem caracteriza-la como pequena empresa. Comumente atividades mais rotineiras ou simples são delegadas a funcionários contratados. A diretoria e os membros das comissões permanecem fiéis à lei que orienta as sociedades sem fins lucrativos. Eles não recebem remuneração sendo portanto executantes de um outro tipo de ócio.

 

ESPAÇO DE CRIAÇÃO E PRODUÇÃO

Finalmente a apresentação de trabalhos, participação em reuniões científicas e comissões, ou cartéis são sempre voluntárias. Seu exercício é quase como uma compensação do trabalho remunerado em consultório o que caracteriza a sua condição de lazer.

A condição de diletante, ou o desencontro dialético entre o ócio e o trabalho de quem atende à instituição, esbarra no formalismo de uma estrutura que, uma vez estabelecida, deve ser preservada, ou seja a condição de ócio é ocupada por uma falsa dignidade de exercício dos cargos eleitos. Em nosso texto “Um lugar sem pai ou um eixo para a subversão institucional” tentamos mostrar que os estatutos, regimentos e regulamentos, na maioria das vezes são cultivados e respeitados em nossas instituições como possuidores de uma objetividade capaz de garantir a solidez de uma estrutura e de supostamente regulamentar o intricado sistema de relação entre os participantes. Procuramos mostrar que estes mecanismos se prendem a certas ideologias institucionais e que sufocam o diálogo e a própria dinâmica da evolução institucional. Propusemos que o poder supremo da lei outorgado segundo um modelo identificador, poderia ser trocado pela busca da verdade graças à troca do discurso do mestre para o discurso histérico.

Esta proposta experimentada no Círculo Psicanalítico da Bahia nos levou a pensar na razão pela qual as estruturas institucionais psicanalíticas são instáveis e quais seriam as verdadeiras causas de fenômenos como a separação, abandono e deserção. Procuramos explicações e ao contrário do que imaginávamos, quase nunca encontramos argumentos lógicos e palpáveis. Ouvimos frases feitas: – não agüentava mais, -acho que a instituição não tinha nada a ver comigo, -estava cansado, mas um dia eu retorno. Também observamos as evasões em que o associado simplesmente deixa de freqüentar seminários ou atividades científicas, ou em um exemplo mais gritante, quando um membro eleito para a Diretoria, sem mais explicações, faz sua renúncia em uma folhinha de receituário, sem envelope, entregue à funcionária da secretaria.

Voltamos a pensar nas “cíclicas e fatigantes reformas por que passam periodicamente todas as instituições psicanalíticas, sempre vivenciadas com esperanças renovadas pelos membros triunfantes das Assembléias”. Pensa-se em uma dialética quando a prática nos ensina que quase tudo não passa de um gozo mortífero (CORRÊA –1).

Era idealismo meu imaginar que uma correção nas causas de abandono trouxesse de volta os que se afastaram. Reforcei minha opinião que, para muitos, a participação se esgota irremediavelmente. Fugindo ao psicanalismo, podemos filosofar um pouco. Nosso ponto de partida está no fragmento 123 de Heráclito. Trata-se do estudo do sempre surgir e do nunca declinar. O sempre surgir implica em um descobrimento, e nunca declinar é nunca se desvirtuar num descobrimento, o que sempre implica em um novo descobrimento. Mas, o sempre surgir já é encobrir-se e já adentra no encobrimento.Ou, como diz o próprio Heráclito, o surgimento já favorece o encobrimento. Sempre surgir e nunca declinar não são propostas autônomas, já que uma sugere a outra. O sempre surgir refere-se a uma criação e a idéia do declínio como o encobrimento ou apagamento. Heidegger pergunta “se em todo o vigor de sua essência physis pertence ao encobrimento, será que então em sua essência surgimento é encobrimento e surgir é um declinar?” É esta complexa relação do surgimento com o declínio que nos propõe uma extrapolação à instituição psicanalítica. Ela surgiu de ameaças descritas pelo próprio Freud: deveria aparecer, mas também se ocultar. Ela se apóia em pessoas que surgem, mas que se afastam.

A instituição também pulsa entre o surgir e o declinar ou o criar e destruir sempre em uma espécie de senoide, cuja elongação varia segundo a vitalidade grupal ou o sentido das lideranças. São opostos que não se resolvem em relação dialética, persistem sempre como o não todo de uma verdade. Na base deste surgir e declinar realizado pelos membros de uma instituição está o narcisismo. O mesmo narcisismo que favorece o sujeito a se propor em uma diferença produtiva capaz de mover a instituição, é também responsável pela quebra de relações interpessoais, quando o sujeito se defende tentando colocar os outros na posição de seu objeto. Há três décadas o psicanalista não sobrevivia sem a instituição. Ela outorgava ou cassava o título e sem o reconhecimento oficial o analista deixava de sê-lo. Permaneceu de outro modo a necessidade de pertencer com um laço afetivo que aparentemente cobra e garante o sujeito. Frente a esta contradição podemos tomar a pergunta de FURTADO: “Como pertencer, se a experiência pela qual o sujeito se torna psicanalista descobre, também, para ele, que a filiação que o defendia e o sustentava não era necessária?” Trata-se de um vínculo muito frágil, mantido até que as pessoas se questionem sobre o ganho (gozo) possível em despender seu tempo de ócio no trabalho institucional.

Em 2001 propusemos que a sobrevivência da instituição depende da disponibilidade de seus membros que devem produzir a nível coletivo a possibilidade de acatar os sintomas. A instituição precisa absorver estes sintomas, às vezes produzidos por ela própria, sem escândalo, como ocorrência até certo ponto previsível. Agora, tomando a questão do narcisismo e do ócio, muda-se o prognóstico, pois deixamos de falar de sintomas para falar de atuações que marcam o sujeito e a estrutura da própria instituição. Não há uma antítese favorável à reconstrução porque este declinar funciona como um real com o esgotamento de todo seu significante. As pessoas toleram a instituição enquanto gozo ou oportunidade de exercício narcísico, em uma função do ócio cujo investimento é sempre temporário.

Não é uma existência brilhante, mas, contra o derrotismo de alguns, é uma garantia de continuar existindo pois psicanalistas sempre estarão necessitando de um lugar para expor os seus sintomas ou de um palco para exercício do seu narcisismo.

 

BIBLIOGRAFIA


CORRÊA, C. P. - Exercício sobre o futuro da psicanálise – Anais da II Jornada Centro-sul, CBP, Rio de Janeiro, 1995
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CORRÊA, C. P. - O lugar sem pai ou um eixo para a subversão institucional. Cógito vol 3, Círculo Psicanalítico da Bahia, Salvador, 2001         [ Links ]

FURTADO, M. A. P. - A psicanálise hoje é freudiana? Revista Gruphos, Belo Horizonte, 1998         [ Links ]

HEIDEGGER, M. – Heráclito. A origem do pensamento ocidental – Editora Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2002         [ Links ]

KAES, R. – O interesse da psicanálise para considerar a realidade psíquica da instituição. In: CORREA, O. B. R. – Vínculos e Instituições – uma escuta psicanalítica, Editora Escuta, São Paulo, 2002         [ Links ]

OLIVEIRA, R. D. – Reengenharia do Tempo, Editora Roço, Rio de Janeiro 2003         [ Links ]

VEBLEN, T. – A Teoria da Classe Ociosa, Livraria Pioneira Editora, São Paulo,1965.        [ Links ]

 

 

NOTAS

*Psicanalista. Membro Fundador do Círculo Psicanalítico da Bahia.
1Sou grato ao Tarcísio Andrade pelo estímulo para continuar exercitando sobre o tempo.

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