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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.6  Salvador  2004

 

CONFERÊNCIAS

 

Complexo de Édipo: paradigma da psicanálise

 

 

Jairo Gerbase*

Escola de Psicanálise do Fórum do Campo Lacaniano - Salvador.

 

 


RESUMO

Este texto se ocupa da demonstração do que se denomina ir além do Édipo. Ele trata o complexo de Édipo como um sintoma que, como um quarto nó, enoda o real, o simbólico e o imaginário, e, desse modo, funciona como aparelho de gozo, como aparelho de abordagem da realidade.

Palvras-chave: Complexo de Édipo, RSI, Sintoma


 

 

Freud afirmou, como se sabe, que o núcleo do sintoma neurótico é o complexo de Édipo. Em torno desse paradigma têm girado a teoria e a técnica psicanalíticas até aqui ou, se quisermos, até o "Seminário XVII” (1967), de Lacan, onde se elabora a hipótese do "além do Édipo"1.

Lacan nunca chegou a dizer explicitamente que o paradigma da psicanálise não é o complexo de Édipo, porém deixou muitas indicações a esse respeito.

Uma primeira indicação encontra-se em sua aula "O mal-entendido".

Sabe-se que Otto Rank apresentou uma hipótese sobre a angústia baseada no "trauma do nascimento" da qual Freud discordou em diversas oportunidades, especialmente no capítulo X de "Inibição, sintoma e angústia”2, porque contrariava radicalmente sua hipótese da angústia de castração.

Lacan participa dessa polêmica com sua hipótese:

"Não há outro traumatismo do nascimento senão nascer desejado. Desejado ou não, dá no mesmo, porque pelo falaser. O ser falante em questão se reparte em geral em dois falantes que não falam a mesma língua, que não se ouvem e não se entendem"3.

Com efeito, na experiência analítica, alguns sujeitos dizem que não foram desejados, outros, ao contrário, que foram desejados demais. Os psicanalistas acreditam nessa hipótese, no fato de que é preciso que o sujeito seja desejado, acreditam que o problema do sujeito neurótico é não ser desejado, ou melhor, ser não desejado. Porém, para Lacan, ser desejado é em si mesmo traumático, porque o sujeito é desejado por um outro sujeito que também não sabe o que deseja, ou melhor, não sabe quem deseja. É sua hipótese do inconsciente.

Quando o outro deseja, seja o que for, mesmo que seja apenas o nome-próprio do sujeito, não sabe bem o que deseja, dado que ele também é um sujeito dividido, também é um sujeito do inconsciente, o que é a condenação maior do ser falante, postulado que Lacan define desta maneira: "o inconsciente não é que o homem não sabe o que diz, mas que não sabe quem o diz"4. Em outras palavras, o saber do inconsciente fala por conta própria.

Ser desejado é o que traumatiza porque o falaser não sabe quem deseja, e é assim que entendemos a fórmula segundo a qual toda criança que nasce é para sua mãe o aparecimento no real do objeto que falta à sua existência5.

Pode-se notar o peso dessa fórmula recorrendo-se a uma passagem da "Questão preliminar...” na qual Lacan observa que "todo o problema das perversões consiste em conceber como a criança identifica-se com o objeto imaginário do desejo da mãe, na medida em que a própria mãe o simboliza no falo"6.

A partir dessa observação diversos autores têm formulado os destinos do sujeito em termos bastante simplificados: se ele se oferece como objeto falo [-F] implica a perversão, se se oferece como objeto [a] implica a psicose, mas se tem a sorte de identificar-se ao desejo da mãe, quer dizer, reconhecer-se também como sujeito desejante, resulta em neurose. Quer dizer que a falta que está posta para o sujeito também está posta para o outro, que por isso mesmo tem uma tendência a tomar o sujeito, de diversas maneiras, como complemento desta falta.

Lacan acrescenta ainda que o falaser se reparte entre dois seres falantes que não falam a mesma língua, que não se ouvem e que não se entendem. Pensamos que falamos a mesma língua, o que é verdade, mas também é verdade que há, para cada falante, um uso tão particular da língua materna que acaba gerando a maioria dos mal-entendidos, a tal ponto que se poderia dizer que cada um fala sua própria língua.

A teoria d'alíngua é a teoria do inconsciente como aluvião. Há a língua e alíngua. Há a língua materna e há alíngua [o inconsciente], o que quer dizer que, quando entramos, desde muito cedo, na comunicação com o outro, vão se acumulando passo a passo uma série de mal-entendidos que se depositam como um aluvião, e que é o que faz o sintoma. Em outra oportunidade Lacan disse isso de uma maneira muito mais precisa: "alíngua é uma outra cena que por sua estrutura a linguagem ocupa"7.

Uma segunda indicação de que Lacan nunca chegou a dizer explicitamente que o paradigma da psicanálise não é o complexo de Édipo, encontra-se na aula denominada "tagarelice":

"A vida não é trágica é cômica, e é muito curioso que para designar isto Freud não tenha encontrado nada melhor que o complexo de Édipo, isto é, uma tragédia. Não se entende por que ele não tomou um caminho mais curto, que seria o de designar por intermédio de uma comédia isso que joga nessa relação que liga o simbólico, o imaginário e o real"8.

Lacan se impressiona com o fato de que Freud tenha recorrido à tragédia - Édipo Rei, de Sófocles - para explicar avatares dos seres falantes que são inteiramente cômicos, que não têm a exacerbação que se encontra na tragédia.

Ele vai desentronizando a soberania de Édipo enquanto "complexo nuclear da neurose" - hipótese de Freud - e entronizando que a cópula de que se trata não tem nada a ver com sexo - hipótese de Lacan - no sentido de que a união sexual de que se trata, o laço social com o qual a psicanálise tem a ver é entre o simbólico, o imaginário e o real.

Quando falamos de relação sexual, queremos fazer entender por isso a cópula de dois significantes, e é por essa razão que dizemos: dado o fato de que a linguagem não possui um significante que possa representar no inconsciente um dos dois gozos, o assim chamado gozo não-toda, dado o fato de que a linguagem só possui um único significante para representar no inconsciente um dos dois gozos, o assim chamado gozo fálico, não há relação sexual.

Dessa maneira, Lacan põe em questão o parentesco, na medida em que indica que a impossibilidade da relação sexual reside no mistério da união dos pais, quer dizer, da união sexual, da relação erótica do pai com sua mulher. Daí sermos levados a dizer que o paradigma da psicanálise não é a relação do pai com a mãe, mas a relação do homem com a mulher, relação significante, impossível de existir.

Eis aí o paradoxo que gostaria de submeter a apreciação do leitor: a impossibilidade da relação sexual não se aplica à relação edipiana, se aplica à relação entre um homem e uma mulher, a isso que se chama de exogamia. A exogamia é impossível. A endogamia é possível, ao contrário do que possa parecer. Por esta razão inventou-se a lei da interdição do incesto.

Se a não-relação sexual se aplicasse ao complexo de Édipo não seria preciso inventar a lei da interdição do incesto porque a própria impossibilidade da relação sexual seria uma interdição à relação entre gerações vizinhas. Se não houvesse um significante para escrever o gozo imaginário do menino com sua mãe, encontraríamos aí a mesma impossibilidade que encontramos na relação entre sujeitos da mesma geração e, portanto não seria preciso existir uma lei suplementar que legislasse sobre a relação endogâmica9.

Se visualizarmos o nó borromeano - RSIS- podemos dizer que o Édipo é um círculo a mais que pode enodar de uma maneira não borromeana o aparelho mental, que é um aparelho de discurso. O nó borrromeano de três – RSI - admite uma propriedade segundo a qual é impossível desfazer um dos círculos sem que os dois outros distinguíveis sejam liberados. Enodado pelo quarto círculo essa propriedade é perdida. Se pensarmos RSI como dimensões do aparelho psíquico, seria realmente necessário ter um outro círculo, que anulasse essa propriedade, a fim de tornar mais estável o aparelho. A esse nó do Real, do Simbólico e do Imaginário, acrescentamos mais uma rodinha, que Lacan chamou de Sintoma e que pode também ser chamada de Complexo de Édipo.

RSI é a estrutura paranóica. RSIS é a estrutura neurótica.

Enfim, o paradigma da psicanálise não é o complexo de Édipo, mas a não-relação sexual, ou seja, isso que está em jogo na relação entre o real, o simbólico, o imaginário e, acrescento, o sintoma.

Uma terceira indicação de que Lacan nunca chegou a dizer explicitamente que o paradigma da psicanálise não é o complexo de Édipo, encontra-se na aula "O sintoma e o pai":

"O complexo de Édipo é como tal um sintoma. É na medida em que o Nome-do-Pai é também o Pai-do-Nome que tudo se sustenta, o que não torna menos necessário o sintoma"10.

A fórmula segundo a qual tudo se sustenta do Nome-do-Pai serve tanto para reconstruir como para desconstruir o complexo paterno. Embora estejamos todos de acordo que é preciso ir além do pai, ir além do Édipo, isto não quer dizer que a cada análise deve-se primeiro analisar o Édipo e depois analisar o além do Édipo, mas, ao contrário, que é preciso sempre analisar o Pai e o Édipo além da dimensão parental, da dimensão do parentesco.

Embora seja de uma evidência incontestável que durante uma análise, apesar de darmos apenas a regra fundamental, as pessoas falam irresistivelmente de sua mamãe e de seu papai, embora também seja obviamente evidente o fato de que o menino seja imediatamente atraído por sua mãe enquanto que a menina esteja em um estado de devastação para com ela, parece, porém que isso acontece de preferência porque a coisa mais fundamental da relação sexual tem a ver com a linguagem, com o que se chama de língua materna, com o fato de que “o que cria a estrutura é a maneira como a linguagem emerge no começo do ser humano”11.

Talvez a razão desse retorno à família (aos complexos familiares, à relação com os pais, à análise como história de uma família, à forma típica como a metáfora paterna se traduz em sintoma - o que é curioso, porque a metáfora paterna é uma fórmula do sujeito sem sintoma, é uma espécie de fórmula ideal da constituição subjetiva), cada vez que o sujeito é colocado em algum tipo de dispositivo analítico, seja de natureza estrutural.

Uma indicação nesse sentido encontramos em “La varité du symptôme” onde Lacan extrai do livro de Rodney Needham – “O parentesco em questão” - a observação de que o parentesco comporta uma varité cultural muito maior do que o que os analisandos dizem dela. Impressiona-lhe que os analisandos, com efeito, só falem de papai e de mamãe e por isso mesmo não notem a especificidade que diferencia sua relação particular a seus parentes próximos. Para ele o que se evidencia aí é que “os analisandos só falam disso porque seus parentes próximos lhe ensinaram alíngua”, esta estrutura mais elementar e que subsume a relação de parentesco12.

Uma quarta indicação de que Lacan nunca chegou a dizer explicitamente que o paradigma da psicanálise não é o complexo de Édipo, encontrar-se-á no “Seminário XVII”, onde dirá que é “o significante-mestre quem determina a castração”, que “o complexo de Édipo é inutilizável” e que é “um sonho de Freud”13.

Com efeito, quem utiliza ainda, que lugar tem na análise o complexo de Édipo? Édipo começa com um sonho de Freud. Ele diz ter verificado também em seu caso “a paixão pela mãe e o ciúme do pai”, e passa a considerar isso como “um evento universal do início da infância”, chegando à conclusão de que “cada pessoa foi, um dia, em germe ou na fantasia, um Édipo”14.

É exatamente em “o avesso da psicanálise” que Lacan introduz o além do Édipo. A teoria do Nome-do-Pai é então renovada, indo-se além do pai. O conceito de pai, tal como está formulado em Freud, como um agente interditor, é atualizado para o conceito de função paterna.

Soler15 também destaca essa necessidade de distinguir o nível conceitual do significante, do nível empírico dos personagens implicados em um discurso, a relação que existe entre as figuras da mãe e do pai e a resposta do sujeito, do lado da admissão ou do rechaço do registro parental. Afirma que Lacan desconecta a presença do pai real e o significante, já que nos diz que podemos ter um pai ausente, não pai na realidade, e o significante em seu lugar e, ao contrário, ter o pai presente e o significante ausente.

Lacan chega a dizer que a figura do pai não tem nada a ver com a presença ou ausência do Nome-do-Pai, que o problema reside no mistério da união dos pais, quer dizer da união sexual. Situa-o do lado do pai não do lado da mãe e de modo preciso do lado da relação talvez erótica do pai com sua mulher.

Então, permanece o pai, mas não a mitologia do pai. Quando se diz, no nível teórico, que a fobia é um pai, pode-se notar um sintoma cumprindo uma função paterna, a de interdição. No nível empírico, quando se diz que Hanna interdita o gozo imaginário de Hans e sua Mãe, pode-se igualmente notar um fenômeno cumprindo uma função paterna, a de interdição.

Pode-se dizer isso de outra maneira: a linguagem não torna possível dizer tudo, o que no léxico de Freud se denomina castração, e no de Lacan, Nome-do-Pai, função de interdição. A linguagem, isto é, o significante-mestre é o próprio agente da castração. O fato de que a linguagem não pode dizer toda a verdade significa interdição, significa que se deve deixar muitos ditos interditos, nas entrelinhas, o que Freud denominou recalque, função do significante-mestre.

 

 

NOTAS

* Membro da Associação Científica Campo Psicanalítico - Salvador. Diretor da Associação Fóruns do Campo Lacaniano.
1 LACAN, J. O seminário, livro XVII: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
2 FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia (1926). Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1976. V. XX.
3 LACAN, J. Le Malentendu. Séminaire Dissolution. (10/06/80). ORNICAR? 22/23. Paris: Navarin, 1981, p. 7.
4 LACAN, J. O seminário, livro XVII, p. 66.
5 LACAN, J. Nota sobre a criança. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 370.
6 LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 561.
7 LACAN, J. La varité du simptôme. 19/04/1977. L’Insu-que-sait de l’une-bévue s’aile à mourre. ORNICAR? 17/18. Paris: Navarin. 1979, p. 12.
8 LACAN, J. Une pratique de bavardage. 15/11/1977. ORNICAR?.19. Paris: Navarin. 1979, p. 9.
9 GERBASE, J. asexo(ualidade). TOPOS 10. Revista do Espaço Moebius. Salvador: Novembro 2000, p. 81.
10 LACAN, J. Le sinthome et le père. (18/11/75).. Séminaire XXIII. Le Sinthome. ORNICAR? 6. Paris: Navarin. 1976, p. 9.
11 LACAN, J. Yale University, Kanzer Seminar. (24/11/75). Scilicet 6/7. Paris: Èditions du Seuil. 1976, p. 12 e 14..
12 LACAN, J. La varité du simptôme. (19/04/1977). L’Insu-que-sait de l’une-bévue s’aile à mourre. ORNICAR? 17/18. Paris: Navarin. 1979, p. 12.
13 LACAN, J. O seminário, livro XVII, p. 83, 93 e 110.
14 FREUD, S. Carta 71. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago 1976. V. I.
15 SOLER, C. “Ubicación del Escrito de Jacques Lacan – De una cuéstion preliminar a todo tratamiento posible de la psicosis”. ACTE 1 Barcelona: Ateneu de Clínica Psicoanalítica Catalunya. Junio 2000. p. 16-17
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