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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.6  Salvador  2004

 

FUNÇÃO PATERNA

 

O ato analítico

 

 

Sônia Vicente

Escola Brasileira de Psicanálise - Bahia

 

 


RESUMO

Estipular regras constitui-se, ao longo da história da psicanálise, uma tentativa de resposta para a pergunta sobre as condições requeridas para que uma prática qualificada de psicanálise. Nos idos dos anos cinqüenta, as regras do dispositivo analítico se cristalizaram, a ponto de o que era para preservar a identidade da psicanálise Ter se transformado numa série de prescrições. Isto porque em nome dessas regras abriu-se mão da indagação dos princípios, que fundamentam o estilo de psicanalista e nesse momento apagou-se aquilo que é a fonte da eficácia da psicanálise, a surpresa. As regras assim utilizadas resultaram na inibição do ato analítico. Então, quais são os princípios para que o fazer do psicanalista seja conforme a essência da psicanálise ? na prática lacaniana a orientação é em direção ao real. Portanto, uma maior liberdade em relação ás regras não tem nada de arbitrário, é sim um recentramento da experiência analítica, saindo da antinomia inconsciente/ realidade para o de interpretação entre linguagem e gozo. Nessa via, o ato uma vez realizado, possibilita á substância gozante tomar sua forma lógica, sendo nessa perspectiva de realização que está a visada do ato analítico. A partir dessa teorização, o trabalho explorará que a psicanálise pode ser aplicada em condições variadas, que pode prescindir do standard, sem se tornar uma psicoterapia.

Palavras-chave: Experiência analítica, Orientação ao real, Regras, Princípios, Inconsciente, Interpretação, Saber, Ato analítico.


 

 

“Quem, tão intrepidamente quanto esse clínico (Freud) apegado ao terra-a-terra do sofrimento, interrogou a vida em seu sentido, e não para dizer que ela não tem – maneira cômoda de lavar as mãos – mas para dizer que tem apenas um, onde o desejo é carregado pela morte?”1.

O que delimita uma prática para que ela possa ser chamada de psicanalítica?

Fragmento de uma entrevista:
Qual a linha que você trabalha?
Linha Corrente 2...

 

A PSICANÁLISE

Estipular regras constituiu-se, ao longo da história da psicanálise, uma tentativa de resposta para a pergunta sobre as condições requeridas para que uma prática fosse qualificada como psicanalítica. Nos idos dos anos cinqüenta, as regras do dispositivo analítico, pelo modo que foram utilizadas, se cristalizaram, a ponto de o que era para preservar a identidade da psicanálise, ter se tornado uma série de prescrições, produzindo um efeito desastroso: a inibição do ato analítico. Isto porque, em nome dessas regras técnicas, abriu-se mão da indagação dos princípios da psicanálise e, nesse movimento, apagou-se aquilo que é a fonte de sua eficácia: a surpresa. Surpresa, que é o signo da experiência do inconsciente, signo daquilo que nos afeta, que nos embaraça, quando atravessados por uma palavra; signo indicador da direção do tratamento. Os analistas não se inquietam mais quando pensam o inconsciente, não ficam surpresos ao pensar isto que, justamente, surpreende. É preocupante.

A partir dessas constatações, abordarei um tema que nos últimos tempos tem absorvido a atenção da comunidade analítica: o exercício da nossa clínica. Mais precisamente o exercício da clínica lacaniana. O que faz com que uma experiência analítica seja considerada lacaniana? Estamos diante de um predicado: lacaniano. Isto nos faz refletir. O que é o analista lacaniano, quando o próprio Lacan se nomeou freudiano? Para responder a essa indagação, que tanto nos perturba, é imprescindível debruçar-nos sobre os princípios que fundamentam o nosso estilo e as regras que marcam a nossa ação, para que nosso fazer seja conforme a essência da psicanálise.

Não ignoramos que Freud descobriu o inconsciente, inventou a psicanálise e nomeou sua prática de associação livre, cujo cumprimento constitui a regra fundamental da experiência analítica. Ele nos apontava outras poucas regras: a neutralidade, a abstinência. Há, ainda, a análise do analista, um princípio que com Sándor Ferenczi, podemos dizer ser a segunda regra fundamental. Freud considerava que, com o uso das palavras, uma elaboração seria alcançada; enquanto isso não se deveria oferecer substitutos e sim produzir estímulos ao desejo, deixando-o insatisfeito para o tratamento acontecer. Nesse sentido, as regras foram estabelecidas para manter o analista numa posição de neutralidade, a qual recai sobre o seu eu, suas fantasias e as paixões delas decorrente. Por esse enfoque, adotava-se um enquadre standard e utilizava-se a contratransferência como operador, pretendendo dar conta dos efeitos da intersubjetividade, em torno da qual girava a clínica daquela época.

Nós, que nos autorizamos à prática lacaniana, continuamos falando do inconsciente, exercendo a psicanálise, tomando como referência Freud. Há a história, a política, mas o que queremos ressaltar é que fundamentando as regras estão os princípios. Quando um princípio passa à prática, torna-se standard e nessa passagem algo escapa, ou seja, o standard não consegue exprimir todo o princípio. Se tomarmos o standard como modelo, diremos que ele é representado por comportamentos ritualizados que, no seu conjunto, permitem reconhecer um analista e situá-lo num coletivo. Pois, qualquer modelo opera como norma e em última instância como regra universal, tornando-se dessa maneira um padrão de conduta. Se quisermos uma distinção, podemos dizer que o standard é a repetição da invenção e o princípio se refere à singularidade de um objeto ou de um ato.

Estamos tratando da psicanálise aplicada, tomada no sentido amplo, no que é possível fazer uma diferença, com Lacan em Juventude de Gide, entre psicanálise que, como tal, se aplica a um sujeito que fala e ouve, no intuito de dar sentido aos seus sintomas e clínica lacaniana, que consiste em tomar os significantes sem colocar em relevo a sua significação.

Portanto, quando Lacan apresenta a diferença entre o discurso analítico e os outros discursos, frisa o distanciamento que quer dar, por exemplo, ao discurso universitário, que considera o da imitação de situações já estabelecidas. Assinala, então, que o analista deve encontrar seu estilo, que se traduz em: não me imitem. Em outras palavras, no discurso analítico, o diferencial é o desejo do analista como causa, o que nos permite dizer que o inconsciente se produz nos tropeços do standard, na sua falha, quando menos se espera. É assim que, no imperativo ético de dizer tudo, produz-se a hiância que situa a experiência analítica no registro do ato. Dessa forma, a análise acontece passando do standard, enquanto necessário, ao ato analítico, enquanto contingente.

Aqui cabe uma interrogação sobre a formação do analista, pois está ligada à aplicação da psicanálise. Se a experiência analítica se orienta pelo princípio de que o analista não se confunde com o sujeito, é porque ele acedeu a um estado de disponibilidade para o inesperado, para aquilo que conduz, não apenas ao real sem sentido, mas ao real sem lei. Só por meio da dessubjetivação, que revela o des-ser, o analista é capaz de tratar esse lado incurável do real, a contingência, o acontecimento imprevisto, posicionando-se como semblante de objeto, colocado no lugar do impossível. Para isso, além da imprescindível análise pessoal, precisa na experiência, do tempo e da transferência. É nessa via que Lacan introduz o Sujeito suposto Saber, um terceiro elemento que faz obstáculo a intersubjetividade e traduz a ingerência do tempo de saber, que ele chama no tempo lógico da cura, a estreita conexão da contingência com o real.

Lacan, ao considerar a psicanálise uma experiência que toca e modifica o real, a partir do gozo fixado na fantasia, se apresenta como o grande desregulador, aquele que dá vida às sessões fora dos esquemas consolidados, na época, pelos pós-freudianos. Quer, com isso, não se contrapor a Freud, mas justamente, encontrar o frescor das suas origens.

Quando, no final de seu ensino, formaliza o analista como parceiro-sintoma do sujeito, causa uma revolução no campo da psicanálise aplicada, pois o objeto analista fazendo suplência onde a suplência do sujeito não funciona, dá uma versatilidade à clínica analítica, possibilitando-a sair dos consultórios. Nessa perspectiva, um ponto importante de assinalar e que nos afasta dos casos clássicos, é que a psicanálise pode ser aplicada em diversas condições, prescindir do standard, variar e espaçar o tempo das sessões, dispensar o divã, sem se tornar uma psicoterapia.

Talvez se possa dizer que a clínica lacaniana é o avesso do standard, na medida em que toma o inconsciente não realizado, apenas se realizando como invenção de saber. Nesse sentido, enfatiza-se que o ato analítico, quando está à altura do desejo do analista, não é sem conseqüências; sua orientação é abrir no real um sulco capaz de despertar o sujeito do adormecimento que ele crê ser sua vigília.

Trata-se, então, não de jogar fora as regras, mas de dar uma reviravolta em relação ao formalismo destas, estabelecendo princípios para acabar com a força que uma regra ritualizada impõe no âmbito de uma prática, pois tal procedimento impediria o desencadear da experiência. Portanto, uma maior liberdade em relação às regras não tem nada de arbitrário; é, sim, um recentramento da aplicação da psicanálise.

Numa última palavra, o que será feito da psicanálise no mundo globalizado no qual a exigência de igualdade tende a uniformizar a particularidade, diminuindo o impacto das enunciações? Não é mais o velho standard, que servia à manutenção da psicanálise, que faz questão. Agora são os significantes próprios da psicanálise que são interrogados, pois, a inserção do discurso da ciência contaminado pelo discurso do capitalismo, imperando na hiper-modernidade, com seu questionamento da autoridade, que, levado ao auge, conduz à impotência, tem como conseqüência fazer surgir na conduta o fantasma da indiferença: “cada um por si”. A máxima paradoxal dos nossos tempos: “seja original, faça como todo mundo” demonstra bem que o standard é uma modalidade do princípio, evidenciando que esse deveria se separar da exigência de uma só norma para todos. Isto nos leva a concluir que devemos voltar a explicitar e nos apoiar em nossos princípios, se quisermos realmente preservar a identidade da psicanálise.

 


O ATO ANALÍTICO

Deciframento do inconsciente, saber sobre a causa do desejo, transformação da posição subjetiva, mudança na relação ao gozo, são algumas das expressões utilizadas para dizer os efeitos da experiência analítica. Dessa forma, saber e mutação estão nesse horizonte, implicando uma desestabilização das ancoras do sujeito nas suas certezas, uma ruptura com a perenidade de suas repetições. Nesse sentido, é preciso pensar o que fazemos como ato, pelo ponto de vista da transformação, pois, ainda que uma análise passe várias vezes pelo mesmo lugar, ao fim, há uma mudança da posição do sujeito.

O que se deve ressaltar no ensino de Lacan, para chegar à sua formulação do ato analítico?

Primeiro, torna-se interessante indagar: o que é um ato para a psicanálise? O ato falho pode nos dar uma pista, sendo este um ato em que o desejo inconsciente vai mais longe que as intenções do sujeito. O ato é falho porque o sujeito se intromete. É somente numa retomada significante, que o ato falho tem valor de ato, pois o verdadeiro ato recupera a dimensão do sujeito numa temporalidade especial, no só-depois.

Lacan toma o ato analítico na perspectiva de realização. Algo está em potência e lhe falta uma causa eficiente que o transforme em ato, que o faça atual. A dialética entre ato e potência implica, de um lado, uma dimensão de mudança e de outro, uma dimensão temporal. Há um campo que permite situar um antes e um depois, ao tempo em que algo que era de uma maneira se transforma em outra. O que ressaltamos é que uma parte do simbólico quando emerge, cria seu próprio passado, gerando o equívoco de supor que estava ali desde sempre. O que nos leva a concluir que devemos situar o Outro, o simbólico, para ir além dele, ou seja, para ultrapassar as leis é preciso tê-las no horizonte. Tal dinâmica sem o ato seria impossível formular.

Nessa via, podemos afirmar que o ato analítico é sem Outro, mas é também sem sujeito, pois, está longe de ser uma intervenção subjetiva; ao contrário, a equação pessoal do analista é reduzida. Por conseguinte, se apresenta para ele como desprazer, realmente como horror, pois no momento do ato, o analista não se autoriza senão de si mesmo, quer dizer de nenhuma fantasia, de nenhuma identificação.

Lacan, baseando-se na lógica do dispositivo analítico, marca uma diferença entre o ato analítico e o que ele chama o ato verdadeiro. O primeiro, reenvia ao enquadre do desejo do analista, definindo-o como o que toma lugar de um dizer ordenando um fazer, ligado ao fato da determinação de um começo. O segundo, não é pensável sem o consentimento do sujeito. Ele diz, com precisão, que aquele que procura uma análise faz uma escolha a favor do inconsciente, mesmo que não o saiba; por isso o ato analítico, o ato criador de uma entrada em análise, fica a cargo do analista3 . Sendo pontual, contingente, atinge o sujeito no seu dizer ao responder a uma temporalidade que não é cronológica, mas lógica.

Sendo assim, o ato analítico tem por responsabilidade colocar em trabalho a transferência. O analista, no discurso analítico, ocupando o lugar de semblante, maneja a transferência a partir da causa analisante, para fazer aparecer o sujeito, então subsumido na angústia. A suposição de que há um sujeito que sabe, faz do inconsciente uma substância, a, que na transferência se manifesta através do que nomeamos Sujeito suposto Saber, um saber suposto a um sujeito de forma agalmática. Contudo, o inconsciente é algo da ordem do não realizado, do que não é, sendo necessário o ato, para que nessa falta, a invenção do saber se faça primordial.

Para ser possível a criação acontecer, a cada sessão o analista deve intervir para interromper os ditos do analisante, fazendo existir o intervalo; somente assim a questão do desejo pode se colocar. O analista não sabe a priori, ele espera uma palavra que tenha valor, ou seja, um acontecimento de palavra que faça encontro, acaso. Portanto, trata-se de saber, na experiência, em que momento e em relação a quais palavras o analista faz ato para provocar um efeito de riso, de sideração. Dizendo de outra maneira, irrompe a surpresa na imprevisibilidade do ato. Assim, ele se faz o lugar do registro, da palavra que permanece, do Outro e é em função disso que exigimos uma regularidade do paciente, pois, é a partir da transferência e do tempo da sessão, criado pelo ato, que se manifesta a inconsistência desse Outro, sua incompletude. Não se pode esperar dele o reconhecimento, nem mesmo a função de testemunha.

No Seminário “Os escritos técnicos de Freud”, Lacan acompanha Freud, afirmando que devemos “encontrar em um ato seu sentido de fala, já que se trata para o sujeito, de se fazer reconhecer”4. Um ato é uma fala. Temos que nos afastar, um pouco, dessa primeira idéia para chegarmos à concepção atual de ato analítico. Em primeiro lugar temos que saber que o conceito de sujeito, em pauta, não é exatamente o de sujeito do inconsciente, pois a análise, pela via do inconsciente, deixa o sujeito suspenso na eternidade de suas repetições. O que ressaltamos é que no instante do ato analítico, o inconsciente ex-siste para o analisante. O ato é uma estrutura em que ativo é o objeto a e o sujeito é subvertido.

A partir de 1974, Lacan reformula a teorização do sintoma colocando-o como o efeito do simbólico no campo do real 5. O sintoma não é mais somente uma mensagem a decifrar, é o que resiste à elaboração; é um sinthome, misto de sintoma e fantasia. Na clínica é importante distinguir o que é função do sintoma que já tem tratamento, que já encontrou um efeito de sentido e o sintoma letra – sinthome, o parceiro-sintoma do sujeito, cuja função é enodamento, reparação do não há relação sexual, que podemos ler como equivalente ao furo inicial.

Esta também é a função do analista, uma função sintomática, que o possibilita a se agregar à cadeia do sujeito que está solta. Por ocupar essa posição, o analista, ao jogar com o equívoco significante, desencadeia no sujeito o traumatismo6 (trou-matisme), ou seja, o não sentido, o furo, bordeado pelo material significante. O equívoco é a única arma contra o sintoma7 , nos alerta Lacan. Na experiência, o que se procura é substituir o saber, que seria o que, a partir do dito, equivoca entre o som e o sentido, contrariando o sentido na sua função de uso, pelo saber-fazer-aí com seu sintoma, tocando o gozo, (eu ouço / eu gozo) (j’ouis sens / jouissance) ao tempo em que o reduz.

Essa nova perspectiva teórica implica uma modificação na abordagem da interpretação. Esta passa a não nutrir o sintoma de sentido, mas a privá-lo, ou seja, é sobre o sentido que ela opera, mas só para reduzí-lo. Portanto, é necessário distinguir a visada semântica da sessão, da dimensão assemântica. A pontuação acrescenta ao significante um outro, realçado pelo analista e produz uma certa significação, diferentemente da interpretação como corte, que interrompe um movimento concernente ao sentido do sintoma e reconduz o sujeito ao sem sentido do real, à opacidade de seu gozo e à perplexidade. Em outras palavras o corte, como ato, sai da antinomia inconsciente / realidade para a interpenetração linguagem / gozo. Não mais se apóia no Outro, mas no Um, o que implica furar a linguagem como aparelho de gozo, fazendo ex-sistir a alíngua.

Então, podemos dizer que o corte deve ser interpretado como uma alusão ao furo inicial (S1), demonstrando a impossibilidade estrutural de se fazer laço, por não haver um significante que dê conta do ser do sujeito. O ato, uma vez realizado, possibilita à substância gozante tomar a sua forma lógica, é a isso que chamamos saber sem sujeito, cuja causa é o objeto a. Trata-se da idéia de que há saber, mas sem sujeito, pois o inconsciente não pensa, não calcula, só trabalha e produz esse saber. Em última instância, a análise da transferência é somente a eliminação do Sujeito suposto Saber. Dessa maneira, o percurso de uma análise se dá do Sujeito suposto Saber ao saber sem sujeito, possibilitado pelo o ato analítico, que como tal, só se interessa pela conseqüência do trauma, o gozo.

 

A EXPERIÊNCIA

Uma vinheta clínica nos permite vislumbrar, com maior clareza, essa teorização. O obsessivo, normalmente, apresenta-se inflado com o seu eu e nossa tarefa, nas entrevistas preliminares, é desmontar essa armadura egóica para obter o que nomeamos efeito de sujeito. Um homem bem sucedido profissionalmente, apesar da pouca idade, se apresenta com verdades “inabaláveis”, baseadas na sua crença no discurso científico, ou seja, só o que pode ser comprovado merece crédito. No entanto, algo falha nesse posicionamento: não consegue manter nenhum vínculo afetivo.

Encontrava-se indignado, tanto pela falta de compreensão do que considerava seu fracasso, como com um analista a quem recorreu num momento de extrema angústia e que, no decorrer das primeiras entrevistas, tinha se mantido em silêncio. Segundo o paciente, quando a este foi perguntado porque não falava, obteve a resposta: “sou lacaniano”. A partir dessa experiência chega ao consultório formulando, com altivez: Qual a “linha” que você trabalha? “Linha Corrente”, é a resposta. O enigma é instaurado. O paciente ri. A função principal do chiste é assegurar a satisfação e restituir seu gozo à demanda fundamentalmente insatisfeita, sob dois aspectos: o prazer da surpresa e a surpresa do prazer. Por prazer e surpresa o sujeito se põe à espera; à espera de um saber. Vale dizer que a surpresa não nasce, necessariamente, da infração à regra, surgindo da radicalização de suas implicações, uma vez que nenhum sistema de princípios está em condições de definir todas as possibilidades de efeitos causados por um ato.

Quando se procura um tratamento, quando se entra no consultório de um analista, entra-se num artifício simbólico, em que se busca o obstáculo no qual se tropeça. Nesse tempo preliminar, o analista trata de por em jogo hipóteses, ou seja, converter a certeza com a qual o paciente chega, em suposição. Nas entrevistas preliminares, o analista faz algumas manobras, que podem ser vistas, talvez, como atos de certeza antecipada. Dessa maneira, num dado momento, sanciona, com um ato de certeza verificada, a entrada de um sujeito em análise8 .

Lancemos mão da premissa: a clínica lacaniana tem uma lógica, com um início claramente demonstrável e uma conclusão que, embora formalizada de várias maneiras não pode se situar senão na lógica do ato: “se supusermos o ato analítico a partir do momento seletivo em que o analisante passa a analista... isolado assim a partir desse momento de instalação, o ato está ao alcance de toda entrada em análise”9. Dizendo de outra forma, o autorizar-se de si mesmo, a passagem a analista, que surge ao fim da análise, está em reserva no início do ato, no qual o sujeito se insere como analisante.

Sendo assim, o enunciado “sou lacaniano” nos conduz a uma reflexão que nos é preciosa. O que faz com que determinada prática analítica seja lacaniana? Certamente não é nos apegarmos ao que se tornou clichê lacaniano: o analista não fala, o tempo da sessão é variável, é curto, o pagamento é por sessão e tantos mais. Estaríamos novamente repetindo os anos cinqüenta, criando novas regras técnicas, que, assim utilizadas serviriam para defender o analista de seu ato. Enfim, criando novos standards. Lacan não os erigiu; como bom freudiano ele formalizou seus princípios, em vários momentos de sua elaboração teórico-clínica. É sempre bom relembrar que, quando Freud inventou a psicanálise, estava interessado em encontrar um método para tratar os sintomas apresentados pelos seus pacientes e acabou construindo uma teoria. Sem esquecermos que, nesse percurso, esclareceu que considerava sua técnica apenas um instrumento que lhe convinha, que lhe servia, mas que talvez seus pares pudessem se servir de outros instrumentos10 . Dessa maneira, nenhuma regra pode dispensar o analista de assumir a responsabilidade do seu ato, no seu estilo.

Vislumbramos a lógica do ato, na resposta “linha Corrente” que, ao instalar o Sujeito suposto Saber, ou seja, a suposição que há um sujeito que sabe; instala também a suposição de que há um saber, de que há um saber que estava ali desde sempre em potência. Para compreender isso temos que levar em conta que um ato se mede pelas coordenadas simbólicas, não representando nenhuma ação. Desse modo, queremos evidenciar que se faz necessário, na experiência, situar o Outro, mas, somente, para ser possível ir além dele.

O analista faz a convocação, convoca a ação do uso da palavra, para poder operar conforme a letra de gozo, o singular de cada sujeito. O lugar do analista como operante na economia de gozo, na economia libidinal, convoca-o a interpretar um sujeito para que ele possa comparecer (parecer) pela fala, (falasser), pelo dizer, estabelecendo uma parada num ser cuja consistência está para-ser. Dito melhor, o corte, a sessão curta, o silêncio, são uma convocatória (convocação - oratória) à modalidade de gozo libidinal que nada mais é que uma manifestação sintomática de uma estrutura.

Se trabalharmos as duas pontuações: “sou lacaniano” e “linha Corrente”, veremos como a desconstrução em análise é necessária. O analista ao dizer-se lacaniano faz a tentativa de ser um Lacan - ariano; pura ironia, a busca da pureza. É uma tentativa de laçar o impossível. A ironia diz que o Outro não existe, é uma forma cômica que toma o saber que o Outro não sabe, indicando que como Outro do saber, ele não é nada11 . O sujeito laça o que quer e faz laço social, eis o seu sintoma. A questão deste “sou lacaniano” é que ele laça e não é laçado, é laico, é ingênuo. É a busca da identificação ao discurso corrente, que é o social; é a necessidade de pertencer a uma instituição, no caso lacaniana, para ter uma garantia, o reconhecimento; e aí gozar.

O sujeito faz laço como linha corrente, como água corrente que não para e leva o que está pela frente, permitindo-o gozar. O curso do rio, rio de significantes, passa – essa passagem acontece em toda sessão, em ato de fala, no discurso corrente – disco-corrente, discorrente12 , isto é, uma utilização da linguagem como laço. Ironicamente, é também pela linha corrente que se desconstrói o laço, saindo da posição de ingênuo, de laico. O discurso corrente faz aparecer o singular do sujeito, o sou como gozo, que, no só-depois, fará o pretenso analista ser, lacaniano.

Temos, então, o passe pelo ato, ou seja, o passo clínico, a passagem que se dá em toda sessão, em ato. Não é, absolutamente, uma passagem ao ato, uma falta de sujeito, onde não se pode ter identificação, que seria o suicídio, a morte do sujeito. Não se trata disso. Linha corrente é a passagem pelo ato, pelo ato analítico. A passagem pelo ato é a passagem pelo discurso corrente como laço, para no só-depois, não mais ser laico. Trata-se de, uma vez atravessada a fantasia, o objeto a exerce a função particular de precipitar o sujeito ao momento de concluir por intermédio de um ato. Ato de conclusão. Passagem de analisante à analista.

Lacan, na via prescrita por Freud, diz que a psicanálise restaura a ironia na neurose. O “sou lacaniano” do começo faz a passagem pelo trabalho com a “linha Corrente”, com o discurso corrente, levando o sujeito a assumir uma nova posição, para, ao final, pelo ato analítico, poder fazer-se analista, ironicamente, lacaniano. Acontece, então, um segundo tempo da análise, que se conclui fora do dispositivo analítico, enquanto ato de transmissão, que podemos ler como trans - mudança e missão - um ato enquanto causa. Preservamos, assim, a identidade da psicanálise.

É, nesse sentido, que queremos evidenciar que a questão do ato analítico não é uma questão técnica, mas uma questão ética, quer dizer, sua orientação é ao real. Essa orientação deve presidir a formação do analista, assim como o analista no seu ato. Concluo dizendo que nossa clínica é irônica, fundada na inexistência do Outro como defesa contra o real e o lugar do analista é o “de estar, mas não ser, de ser, mas não crer que é e deixar de ser quando nunca foi”13.

 

 

NOTAS

1Lacan, J. A direção do tratamento e os princípios do seu poder, Escritos, R. J., Zahar.1998, p.648.
2 Marca de uma indústria de linhas.
3Lacan, J. Seminário, Livro 15, O ato analítico. (15-11-67). Inédito.
4Lacan, J. Seminário, Livro 1, Os escritos técnicos de Freud. R.J. Zahar. 1979.
5Lacan, J. Seminário, Livro 23, Le sinthome. (13-04-76). Ornicar? Paris. Navarin. N. 6-11.1976.
6Lacan, J. Seminário, Livro 23, Le sinthome. (16-12-75). Ornicar? Paris. Navarin. n. 6-11.1976.
7Lacan, J. Seminário, Livro 24, Línsu-que-sait de Lúne-bévue à mourre. Ornicar? Paris, Navarin, n.12.1977.
8Broddsky. G. Short Story: os princípios do ato analítico. R.J. Contra Capa. 2004.
9Lacan, J. Reseñas de enseñanza, EL acto psicoanalitico. (1967-1968). Hacia el Tercer Encuentro del Campo Freudiano, B.A. 1984.
10Freud, S. Sobre o início do tratamento. (1913). Vol.XII. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. R.J. Imago. 1969.
11Miller, J-A, A clínica irônica. Curinga. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise-MinasGerais. N.4. Nov/1994. p.32.
12Lacan, J. Seminário, Livro 20, Mais, ainda. R.J. Zahar, 1982. p.49.
13Nasio. J. D. A criança magnífica da psicanálise. R.J. Zahar. 1980.

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