SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6O ato analíticoSujeito falante e a resistência à demanda de análise author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.6  Salvador  2004

 

CONFERÊNCIAS

 

Ternura e Crueldade

 

 

Urania Tourinho Peres

Colégio de Psicanálise da Bahia

 

 


RESUMO

A autora revisita as idéias de Fernando Ulloa, psicanalista argentino que trabalha a questão da ternura e da crueldade a partir da perspectiva psicanalítica.

Palavras-chave: Ternura, Crueldade, Tortura, Psicanálise.


 

 

As criancinhas não gostam quando se fala na inata inclinação humana para a ruindade, a agressividade e a destruição, e também para a crueldade.
(Freud Mal-estar na Civilização)

 

O tema ternura e crueldade não surgiu por acaso, ao pensar nossa comunicação para este congresso.

Estas duas palavras um tanto alheias à psicanálise foram nela introduzidas por Fernando Ulloa, psicanalista argentino, que durante um ano conviveu conosco, aqui na Bahia, e deixou marcas indestrutíveis.

Ulloa completa este ano 80 anos, e fazendo parte das comemorações re-visitamos as suas idéias.

Durante cerca de trinta anos Ulloa teve como preocupação importante o tema da ternura por ele considerada como o “mais antigo dos ofícios da cultura”. Mais recentemente, quando esteve envolvido em um trabalho no campo dos direitos humanos, durante a ditadura militar na Argentina, o tema da crueldade o dominou. Foi exatamente este envolvimento, que tornou necessário o seu exílio; e a Bahia o acolheu com muita ternura.

Mais recentemente ainda, trabalhando com as avós da Praça de Maio, sobre a questão das crianças, cujas mães morreram vitimas de tortura, e que os bebês foram entregues a apropriadores , muitos deles agentes da tortura, a questão da crueldade tomou força intensa. Para ele este trabalho foi “obscenamente cruel”.

É pensamento seu que o bebê que nasce de uma mãe torturada já é ela própria uma criança torturada. Este ofício como perito, que desvelou intensamente a questão da crueldade, fê-lo desenvolver metapsicologicamente esta noção transformando-a em um conceito importante no interior do seu pensamento.

Vamos sintetizar as idéias que nosso autor desenvolveu com estes dois significantes.

A ternura é um acontecer tipicamente humano. Porta em si uma dimensão ética, que se manifesta precocemente na relação mãe filho impedindo o movimento de apoderamento do filho. Em termos psicanalíticos é a coartação do fim último de descarga da pulsão. Esta inibição, não alheia à ética, gera duas condições ou duas habilidades próprias da ternura: a empatia e o “miramento”.

A empatia garante um cuidado adequado ao bebê e o “miramento” é mirar com amoroso interesse a quem se reconhece como sujeito alheio e distinto de si.

A ternura se constitui então como a garantia da sobrevivência e constituição psíquica da criança ao nascer. Um amor sem domínio, uma proteção sem posse.

O enfoque metapsicológico da crueldade o levou a distinguir, por um lado uma disposição latente em todos os indivíduos decorrente de experiências de crueldade vividas precocemente, e por outro lado o exercício da crueldade, que se apresenta em certos indivíduos “executores materiais dos mais aberrantes atos de sadismo realizados dentro de um dispositivo sociocultural próprio e necessário a este acionar”. A esta manifestação denominou de “Vera” crueldade.

Creio não errar, afirmando que frente a articulações inovadoras, introdução de novos conceitos em nosso campo, podemos tomar uma das três posições seguintes:

1- Abandonamos a idéia sem dar –lhe muita importância com o julgamento “a priori” de que ela fere o corpo conceitual que abraçamos. Ou até mais enfaticamente lançamos a sentença: isto não é psicanálise.

2- Tentamos aproximá-las do já sabido, procurando integrá-las na teoria que abraçamos.

3- Penetramos na inovação, livres de preconceitos, para vê o que de novo elas podem produzir.

Devo dizer que me detive algum tempo na segunda posição encontrando forte ancoragem na teoria freudiana das pulsões, assim como, em todo desenvolvimento que Lacan nos oferece sobre o narcisismo. A ternura e a crueldade são conceitos operadores que contribuem com riqueza para compreensão da estruturação do narcisismo. Fundamentalmente vinculam-se a questão do desamparo do ser humano.

Entretanto, não é neste caminho que quero ficar, mas na terceira possibilidade, ou seja, receber o novo como a única fonte possível de enriquecimento ao nosso pensamento. A repetição é sempre fonte de mortificação.

Ainda que ternura e crueldade mantenham entre si uma relação de interdependência, vamos para esta comunicação nos deter especialmente na crueldade.

Este congresso interrogando-nos sobre questões prevalentes na atualidade, antecipadas pelas profecias de Aldoux Huxley em seu Admirável Mundo Novo, nos trouxe um motivo para desenvolver algumas idéias que vem me perseguindo nos últimos tempos, que foram estimuladas por algumas notícias veiculadas pela mídia e pela teorização que Ulloa vem desenvolvendo sobre a grande crueldade, ou vera crueldade. A ato de ser cruel e a dimensão de pacto sinistro com a mentira.

No que se refere à disposição latente presente em todos nós, Fernando Ulloa nos remete a Fairbain, uma passagem de um dos seus textos, lido por ele há mais de 40 anos, e que lhe teria ficado guardado na lembrança. Para Fairbain um lactante, se pudesse pensar, frente a uma demora em receber cuidados necessários à vida, pensaria os seus pais como incondicionalmente cruéis, pois sendo responsáveis pela a sua vinda ao mundo, o matam com indiferente abandono. Para passar da incondicionalidade a condicionalidade Fairbain coloca outro pensamento no bebê: não é que eles sejam cruéis, é que os odeio e me castigam, se os amo viverei.

De tradição kleiniana como a maioria dos psicanalistas argentinos de sua geração, Ulloa vinculou primeiramente estas idéias de Fairbain às chamadas “inoculações sinistras” de que falava esta escola. Hoje entretanto, considera que estas “inoculações sinistras” “representam, precisamente , os pontos disposicionais até a crueldade de todo sujeito , incorporadas como aspectos sádicos do supereu.

Para Fernando podemos ir além de Fairbain, e encontrar as primeiras marcas da crueldade e sua repressão nesta dependência absoluta a um outro, detentor de um poder incondicional capaz de condenar a morte pela indiferença. Morte que tanto pode ser física como psíquica. É importante lembrar, que também é frente a esta dependência absoluta ao outro, que a ternura faz a sua aparição dentro de sua dimensão ética: cuido mas não me aproprio.

Através de sua experiência clinica ele nos fala dos efeitos tardios, uma irrupção postergada de um ódio latente que, sobretudo na adolescência, pode fazer-se presente. Um retorno de uma situação sacrificial dos primeiros anos de vida, reativada, na maioria das vezes, por uma indiferença paterna. Ulloa chama esta figura clínica de “mal entendido da indiferença”. Ele lembra a leitura de Kierkegaard das palavras de Cristo na cena de Gólgota: Pai por que me abandonaste? Para o filósofo, no dizer de Ulloa, esta interrogação implica já a impossibilidade do acolhimento pela imutável indiferença. “É essa condição do amor, e do que é imutável, o verdadeiramente horrível. O filho sem outra saída a não ser a posição sacrificial de oferecer-se ao pai. Na dupla pai-filho jogada com maiúscula no misticismo e com minúscula na vida quotidiana, não somente os sujeitos sacrificiais são os filhos, mas também podem ser os pais. Filicídio e parricídio são angustias”.,/p>

Toda situação, em que o grau extremo de dependência ao Outro se configura, é vivida como cruel por quem a padece: situações extremas de doença, invalidez, velhice, pobreza, tendem a reativar estes pontos disposicionais para a crueldade, na medida em que em grau maior ou menor estão presentes em todos os seres humanos.

Em que ponto se tocam a grande crueldade e a loucura?

O século XIX foi rico em debates entre alienistas e magistrados na procura de um conceito que pudesse articular teoricamente loucura e violência. O louco, por sua impulsividade, por apresentar uma “lesão da vontade”, possui uma potencialidade para atos violentos.

Surge o conceito de periculosidade, de importância para a estruturação do campo psiquiátrico.

Transformações decorrentes de reformas sociais e políticas tiveram inicio no século XVII, e, sobretudo, se materializam, segundo Michel Foucault, na reestruturação do sistema jurídico e na “redistribuição da economia de castigo”. Surge então uma “nova forma de investimento político do corpo, um novo regime da verdade e a construção de uma nova moralidade, ou seja, uma mudança na concepção de sujeito”.

Estas reformas surgem paralelamente as idéias de universalidade dos direitos dos homens como seres livres e autônomos.

Este sujeito livre e assegurado por direitos universais situa-se na base da constituição da psiquiatria “assim como da formação” do conceito de periculosidade.

Antes destas conquistas os loucos sendo considerados irresponsáveis não podiam ser punidos, pois apresentando uma “lesão da vontade” ficam impossibilitados de livre arbítrio. Concluindo: a doença excluía a culpabilidade.

O sujeito dotado de livre arbítrio é produto do “processo civilizador ocidental”, e é nesta direção que Norberto Elias destaca a questão da violência em sua relação com a civilização. Ainda para este autor a perda do autocontrole constitui o maior perigo que uma pessoa apresenta para outra pessoa.

O conceito de periculosidade expressa um risco de perda do autocontrole, incapacidade de moderar instintos e paixão.

Com o surgimento da psiquiatria moderna a loucura expressa através das paixões desregradas, comportamentos desviantes, passa a ser passível de recuperação pelo tratamento moral. “A monomania, em suas variantes homicidas e instintivas, é uma doença que se faz presente por um único ato que une loucura e violência no domínio das paixões”.

O ato do louco-criminoso incompreensível, não apresenta um motivo racional, estando a culpa e o remorso ausentes. Porém, recebe a atenção da medicina e do direito, e sobre ele é depositando uma expectativa de cura. (vide a criação dos manicômios judiciais)

Vejamos o que a mídia nos trouxe esta semana: (foram exibidos imagens de torturas nos presídios do Iraque veiculadas recentemente pela Internet e pela televisão)

Loucura ou civilização?

Freud em seu texto O Estranho, nos diz: Unheimlich (estranho) é o nome de tudo que deveria ter permanecido oculto(...) secreto e oculto mas veio a luz” (...) esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta, através do processo de repressão.

(...) O Estranho aquela categoria de assustador que remete ao que é conhecido, de velho e muito familiar.

Estas cenas que acabamos de ver tem o poder suscitar em cada uma de nós esta dimensão do estranho familiar.

Ao contemplar estas cenas – particularmente esta que agora volto a projetar lembro-me uma idéia de Lacan que ele intitula o olhar do deus obscuro.

Fui buscar esta idéia em um texto de Alain Didier-Weill - texto apresentado no nosso congresso sobre a culpa.

O olhar do deus obscuro nos remete a uma experiência absolutamente indigna frente a qual o ser humano pode perder toda a capacidade para julgar o bem e o mal.

Olhar que foraclui a alteridade, provoca o fascínio e o sujeito deixa-se submeter, perdendo sua capacidade de contestação.

Este olhar do deus obscuro não trabalha com a verdade faz pacto com a mentira.

As palavras perdem o sentido e tornam-se insuficientes para simbolizar o humano – E o humano decaído do simbólico permanece como dejeto.

Quando o significante retira-se do corpo, este corpo, pura matéria, transforma-se em resto caído – corpo desprovido de toda erogeneidade – onde o significante não faz presença.

O deus obscuro elimina a divida simbólica - não há mais culpa do real.

O olhar do deus obscuro pode nos lembrar o olhar da Medusa mito que nos diz que sob este olhar o corpo perde o seu estatuto de vivo, perde sua mobilidade e se petrifica. O olhar de medusa transforma o homem em estátua de pedra. “Essa petrificação mortal é a operação traumática que se produz cada vez que a parte maldita do homem, cessando de estar ligada ao significante inconsciente, se solta para cair no real.”( Didier, 274)

E a psicanálise em tudo isto? Freud já havia dito em seu Mal estar na Civilização que “A questão fatídica para e espécie humana parece ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição”.

Penso que estamos cada vez mais distantes de conseguir tal façanha. Não sei se nos caberia compreender o por que desse avassalador predomínio do instinto de morte, de domínio da crueldade sobre a ternura.

Mas se algo me causa horror não devo apenas interrogar o Outro, buscar as causas possíveis de tê-lo tornado agente de tanta crueldade, porém me interrogar enquanto tomada por este horror. Assim trago estas duas dimensões para o campo de nossa prática.

Para fraseando Freud, nós analistas não somos aquelas criaturas gentis que imaginamos ser.

Pontos disposicionais para a crueldade, como em todo ser humano, estão aí presentes potencialmente e não é difícil em muitos momentos encontrá-los atuando não só na prática analítica como também na instituição psicanalítica.

Para Ulloa o fundamento da ternura é ético, ética do não apoderamento, ética que pode ser resumida na afirmativa: cuidar sem se apropriar, ética de respeito ao desejo.

Ao analista é recomendado que seja abstinente, neutro em sua prática e ainda aqui Fernando Ulloa observa que neutralidade do analista não devemos confundi-la com neutralização, ou seja, a abstinência como prática de indolência.

A indolência do analista o seu silencio defensivo frente às questões fundamentais que estão aí a nos questionar é um ato de crueldade.

Na sua imparcialidade o analista faz cortes, corte de des-amor e contraria a ética da ternura. Se o olhar de medusa petrifica aqui, é o silencio que congela e a psicanálise sofre deste congelamento das palavras.

Não há analise se não há ternura. O amor de transferência está aí para possibilitar o inicio de um processo, assim como também não há final de análise se não há corte.

Se no início da análise a ternura predomina, movida pela disponibilidade de escuta do analista, no final de análise vamos encontrar a presença da crueldade no movimento de corte que o analisante deve fazer.

Ser resto de operação, dejeto, des-ser, como pontua Lacan, nos envia ao campo da crueldade porém não é crueldade sem ternura mas, poder suportar a crueldade do corte nutrido pela ternura de deixar o outro partir isto é o fim de uma análise.

Mas, quero retornar à foto, a foto sinistra que causa horror. Nela somos interrogados pela imagem, contemplamos a cena de um mundo imundo onde a mentira faz pacto com a crueldade. A mentira que fala o movimento contra o terrorismo é ela própria o terrorismo maior.

Voltemos à nossa epigrafe, frase de Freud do seu magistral texto o Mal-estar na Cultura: As criancinhas não gostam quando se fala na inata inclinação humana para a ruindade, a agressividade e a destruição, e também para a crueldade.

A contemplação desta foto nos interpreta, não é mais possível continuar criança.

Na se intimidar pela ternura, sair da indolência cruel é o que tenho em primeiro lugar a me dizer e depois transmitir a vocês a certeza de que se admiramos o mundo novo com um olhar velho, se lançamos um olhar de medusa em direção as nossas próprias inquietações permanecemos imóveis no lugar de mortificação da psicanálise.

Essa foto nos interpreta.

(A autora refer-se a fotos de tortura com prisioneiros americanos no Iraque divulgadas pela Internet. Nota do editor)

Creative Commons License