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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.6  Salvador  2004

 

O CLIENTE

 

Mais além da infelicidade banal

 

 

Angela Maria de Araujo Porto Furtado

Instituto de Estudos Psicanalíticos - IEPSI, Belo Horizonte

 

 


RESUMO

A partir das afirmativas de Lacan de que “ A Psicanálise não se recusa a prometer a felicidade “ ( 1954) e de que “ O Sujeito é feliz” ( 1974), a autora discute estas questões à luz do conceito de direção da cura, sintoma, satisfação, gozo e final de análise, cotejando com a colocação de Freud de que a psicanálise reduziria a “ miséria neurótica a uma infelicidade banal”, indagando, afinal, qual seria a promessa analítica para aqueles que empreendem tal processo.

Palavras-chave: Felicidade, Sintoma, Pulsão, Gozo, Final de análise, Promessa analítica.


 

 

Em 1958, Lacan, citado por Soler (1998, p.46) disse algo surpreendente: “ a psicanálise não se recusa a prometer felicidade”. Foi ele também que, em 1974, afirmou: “o sujeito é feliz “(LACAN, 1992, p. 45).”

Igualmente foi ele quem disse, em 1975, após se desculpar por parecer audacioso por aquilo que ia dizer: “ uma análise não deve ser levada longe demais. Quando o analisante pensa que ele está feliz de viver, é o bastante” (LACAN, 1975, p. 11).

Afirmativas, no mínimo intrigantes, partindo de quem partiram... “ou não”, como diria Caetano Veloso.

De certo modo, Freud, mesmo que tendo formulado de maneira diferente, também considera que “o sujeito é feliz”, enquanto, no desenvolvimento de sua obra, desde 1894, observa que algo se satisfaz no sintoma, sem que o sujeito o saiba, por mais doloroso que o sintoma possa parecer.

O sintoma aparece em toda a sua obra como satisfação da pulsão, satisfação disfarçada, com a finalidade de enganar as defesas subjetivas ante a pulsão. Isto é, sob a vestimenta da infelicidade e do sofrimento, esconde-se, ardilosa e espertamente, o gozo da pulsão. E nada há de mais móbil, de mais plástico que a pulsão, que pode mudar de figura , de objeto, de via, de direção, até alcançar o seu alvo...a satisfação. E, mesmo quando é inibida quanto a seu alvo, na sublimação, Freud nos diz que, ainda aí, é satisfação da pulsão.

Os pacientes, estes nos dizem que não estão contentes, que não estão satisfeitos com o que são. Mas, ainda que não se satisfaçam com o que são, sabemos que tanto o que vivem, como o que são, depende de satisfação. Até nos seus sintomas, estão dando satisfação a alguma coisa.

Diz Lacan no Sem. XI : “O uso da função da pulsão não tem para nós outro valor, senão o de pôr em questão o que é da satisfação” (LACAN, 1993, p. 158).

A metonímia do gozo pulsional sustenta toda a realidade humana. Todas as realizações, todas as buscas, todos os esforços foram gerados de uma perda primária de gozo, mas se sustentam de seu deslisamento metonímico. Os objetos são colocados no lugar em que parte do gozo foi perdida e reencontrada em objetos sempre postiços.

Bom, mas se o sujeito é feliz, como se explicam as demandas incansáveis, universais ou particulares de felicidade?

É verdade que ninguém pede realmente tratamento para suas pulsões, não obstante elas lhe serem, em certos casos, motivo de horror. Pedem, sim, para mudar algo das conseqüências de tal satisfação na sua vida, conseqüências essas, muitas vezes, danosas para o sujeito.

O que motiva uma demanda de análise é, antes, o sintoma. O sintoma já é, em si, um propósito, uma tentativa de rechaço, de circunscrição, de oposição ao gozo, quando ele se lhe apresenta insuportável, mesmo que saibamos que é também no sintoma que ele o pode conservar, sem dele abrir mão.

O sintoma fixa, reajusta, mente e revela algo desse encontro do sujeito com seu gozo particular.

Sabemos , então, que, dissimulado sob a forma de sofrimento, há gozo. E isso é o que diferencia a escuta psicanalítica de outras. O analista é aquele que escuta o sofrimento como gozo. Daí sua desumanidade.

Diríamos aqui que tal princípio aponta para uma tomada de posição ética.

Há gozo e há sempre gozo, e é o que em psicanálise nos dispomos a ouvir e curar...

É o que não tem cura que nos dispomos a curar? O que se pode curar, em se tratando do gozo?

A civilização inventou doutrinas e práticas terapêuticas para tratar no nível coletivo as infelicidades inerentes à condição humana, como diz Albert Camus. A religião é uma delas e, de modo mais geral, todas as “ideologias de promessa” o são...Também o são todas as práticas de “diversão” que consistem em fazer com que o homem não pense em seu ser nem em seu destino. E o trabalho também pode ser uma “diversão” (SOLER, 1998, p. 468).

Quando Lacan (1988, p. 350) diz que “a psicanálise não se recusa a prometer felicidade”, poderíamos dizer que a psicanálise, de algum modo , seria uma prática que pretenderia tratar, modestamente, da felicidade individual?

Em O Seminário da Ética acrescenta o mesmo autor: “será que é o final da análise o que nos demandam? O que nos demandam, é preciso chamá-lo por uma palavra simples, é a felicidade” [e, mais adiante] “Que o analista se ofereça para receber, é um fato, a demanda da felicidade” (LACAN, 1988, p. 351).

Lacan não diz que a psicanálise promete a felicidade. Mas, antes, que ela não se recusa a prometer a felicidade. Assim, é quando o analista se oferece para receber a demanda de felicidade, sem, contudo, prometê-la.

Freud, pessimista ou realista, nos diz que, afinal, a psicanálise não faz mais que transformar ou reduzir a infelicidade neurótica a uma infelicidade banal. E ele sabia que toda infelicidade neurótica é uma felicidade que não se reconhece como tal , pois traz no seu bojo a satisfação incoercível das pulsões.

Se a psicanálise, pois, não se recusa a prometer a felicidade, mas não a promete, o que, então, ela pode prometer?

Ela poderia prometer um sujeito inédito? A pergunta é sobre um antes e um depois de uma análise. Que sujeito podemos esperar que resulte de uma análise?

Lacan, ao se referir a esse sujeito transformado por uma análise, é ousado e usa o termo enfático e forte metamorfose.

Freud (1975, p. 275), sempre cauteloso e reservado quanto às expectativas a respeito de todo tratamento terminado diz em Análise terminável e interminável: “ não é precisamente a reinvidicação de nossa teoria o fato de que a análise produz um estado que nunca surge espontaneamente no ego e que esse estado recentemente criado constitui a diferença essencial entre uma pessoa que foi analisada e outra que não foi?”

Desde Freud até Lacan os enunciados divergem muito e até parecem , às vezes, opostos.

Freud (1975,p.251), no inicio do cap III, fala de “radicalmente, exaurir as possibilidades de doença” [e] “ocasionar uma alteração profunda de sua personalidade”. Sob a qualificação de modesto coloca, como se fosse o mínimo exigível que, se uma análise foi tão longe quanto deveria com um determinado paciente, não se deveria esperar nenhuma modificação posterior, caso ele prosseguisse.

Lacan anuncia a produção do incurável.

Mas, se examinarmos bem as divergências, talvez elas não sejam tantas, nem tão grandes!

O processo analítico deveria colocar o sujeito numa posição tal, defrontado com seu limite, que nenhuma mudança seria mais possível. Se Freud postula um sujeito imodificável, no sentido de uma normalidade absoluta, da mesma forma Lacan formula a produção do incurável.

Para Freud, não haveria, ao final de uma análise, um sujeito sem pulsão, mas sem sintomas, são, na medida em que resolve, pelo recalque bem-sucedido, lidar com seus conflitos. E diz que a psicanálise faz no neurótico apenas o que se faz de modo espontâneo no homem são. O que a psicanálise faz é corrigir, rever os processos de recalque, a partir de dois movimentos: o consentimento na pulsão e o recalcamento eficaz da pulsão. Isto quer dizer que, se o sujeito, até então, rechaça o encontro com o gozo, coloca-o à distância, via sintoma, não se implica na fabricação de seu sintoma. No decorrer de seu trabalho, espera-se que, de vítima, ele se transforme em responsável por seu sintoma.

Freud deixa claras três possibilidades, após a psicanálise ter conseguido que se reconheça a defesa subjetiva ante a exigência pulsional: ou o sujeito muda de posição e corrige seu rechaço fundante do sintoma; ou ele se mostra capaz de suportar a insatisfação da pulsão sem repressão, ou procede a um reforço do recalque, mais forte e, dessa vez, alcançado, impede a produção de novos sintomas.

Essa é uma questão muito importante, tratada, a partir de Freud, por Lacan, no Seminário XI, quando fala da retificação da pulsão, que implicaria uma mudança do sujeito em relação a seu gozo, o que encaminha outra questão sobre que destino se daria à pulsão no final da análise e mais além dela.

Dito de outra maneira, Lacan sugere que, ao final de uma análise, o sujeito possa identificar-se ao sintoma. Ele não diz que se deva identificar-se ao sintoma, não é algo imperativo. O que ele diz é: o melhor que se pode fazer é identificar-se com o sintoma, expressão que não se refere ao transcurso do trabalho, mas a um resultado dele. A expressão é paradoxal, provocativa, pois o sujeito identificado está, saiba ou não, sob a influência do Outro, o que contrariaria, no mínimo, todos os padrões de entendimento do que seja um final de análise, segundo Lacan.

Entretanto, esclareçamos. Quando Freud, por exemplo, fala de um sujeito são, ele se refere a alguém que não necessita recorrer à análise, pois o discurso atua como “limitação e ordenamento de gozo” (SOLER, 1998, p. 447), permitindo-lhe manter-se de modo suportável, diante de si mesmo e dos outros. Quando o sujeito pede uma análise, há evidentemente um fracasso da defesa contra o gozo e, então, o que determina a lógica da entrada, o controle do gozo, determinará a lógica da saída, de novo, o controle do gozo, expresso pelo que se deve conseguir ao nível do recalcamento. Se o sintoma é , no início, o que faz objeção, na saída, o sujeito que conseguiu a coerção necessária sobre o gozo, não mais fugindo dele, o faz por meio da identificação.

Para Lacan, o início da análise é entendido, não a partir do próprio sintoma, mas da ligação do sujeito a quem se supõe um saber. Se esse processo se instaura a partir de uma alteração do estado natural do sujeito, pela transferência, do seu eu sou, necessariamente esse processo irá reclamar um ponto de detenção, em que esse efeito de ser tem de se restaurar.

O sintoma, dito por Lacan, é um efeito de real, que sai do simbólico, refere-se a um efeito de ser, de fixação de gozo que separa do Outro. Lacan, desde o início de seu ensino, se refere a essa suspensão de um deslocamento, da incerteza, da indecisão do sujeito e um logro de ser formulado com o tu és isso.

Já, em 1946, Lacan dizia que

A identificação consiste na modificação ocorrida no sujeito em decorrência de haver assumido uma imagem. Depois, um significante, depois um sintoma, se seguirmos com Lacan essa série de termos que recobrem um vazio do sujeito. No seu sentido último, praticamente, Lacan fala de uma identificação de gozo, melhor, seria, para evitar confusões, fixação de gozo (LACAN, 1946).

Só se poderia, então, entender um sintoma que fosse mais que formação do inconsciente, ato falho, chiste ou sonho, algo menos evanescente e mais estável, algo da ordem da fixão (com x) do gozo. Lacan então define o sintoma como f(x), que pode ser lido gozo de x, sendo x qualquer um do inconsciente que pode ser feito letra.

Voltando então à nossa questão inicial, que é mesmo que psicanálise pode prometer?

Transformar a infelicidade neurótica em infelicidade banal?

Se o que a psicanálise faz pelo neurótico é dar-lhe condições de lidar com seus conflitos, como um sujeito comum o faz, espontaneamente, por meio de recalques bem-sucedidos... Quando Freud diz Lá onde isso era, eu devo advir, ele explicita um fim aceitável da análise, podendo-se admitir a implicação de um efeito epistêmico – o não percebido foi desvelado- e uma modificação no Ich. Quer dizer, qualquer mudança no sintoma é correlata a uma mudança no sujeito (SOLER , 1995). Quando Lacan sugere que, no final da análise, o sujeito talvez possa se identificar ao sintoma, ele se refere, entre outras coisas, a uma aceitação do gozo implicado no sintoma. Ao invés de se apavorar de ver de mais perto esse gozo que teme, e cada um tem suas figuras particularmente temidas, quem sabe o sujeito poderia conseguir um pouco de ânimo, de alma.

Em Televisão, Lacan (1974) afirma que de uma análise se pode saber algo sobre o inconsciente que determina o sujeito. Daí, ela pode lhe dar a possibilidade, diante desse núcleo que lhe produzia horror, de uma nova escolha.

Então, quando Lacan disse, em 1975, e aqui repetimos a citação: “uma análise não deve ser levada longe demais. Quando o analisante pensa que está feliz de viver, é o bastante”, (LACAN, 1975, p. 11) seria isso estranhável? Dar a alguém uma nova possibilidade de escolha seria pouco?

Diante da pergunta

o que me é permitido esperar?, [ Lacan devolve a pergunta.] “Como concernir-me-ia ela sem dizer-me o que esperar? Imagina o senhor a esperança sendo sem objeto? O senhor, portanto, como qualquer outro a quem eu trataria de senhor, é a esse senhor que respondo: espere o que lhe agradar” [ E, mais adiante,] A psicanálise permitir-lhe-ia clarificar o inconsciente do qual o senhor é sujeito. Mas todos sabem que aí não encorajo ninguém, ninguém cujo desejo não esteja decidido (LACAN, 1993 p.73 e 74)

O que afinal esperar e de onde?

Mais além da miséria neurótica, mais além da infelicidade banal, mais além da tristeza, da covardia moral, para aqueles que se tenham decidido, quem sabe, se, não um desejo inédito, pelo menos novos efeitos de desejo.

 

BIBLIOGRAFIA

FREUD Sigmund. As neuropsicoses de defesa. Rio de Janeiro:, 1984, v. 3.        [ Links ]

________________. Análise terminável e interminável. Rio de Janeiro: Imago, 1975.        [ Links ]

LACAN, Jacques. Televisão. Versão brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.        [ Links ]

______________ Conferência aos estudantes. Cidade: Yale University Press, 1975.        [ Links ]

______________ Escritos acerca de la causalidad psíquica. 15. Ed. Ciudad del
Mejico: Siglo Veintiuno, 1946.

SOLER, Collete. Variáveis do fim de análise. Campinas: Papirus, 1995.        [ Links ]

_____________ A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 1998.        [ Links ]

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