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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.6  Salvador  2004

 

O CLIENTE

 

A angústia do desejo satisfeito

 

 

Cibele Prado Barbieri

Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

A partir de alguns fragmentos de um caso clínico a autora pretende trabalhar a diferença entre medo e angústia em sua relação com o desejo e o gozo.

Palavras-chave: Angústia, Medo, Desejo, Gozo, Neurose obsessiva.


 

 

É fácil compreender e justificar a angústia quando ela aparece num contexto de sofrimento, de perda ou impossibilidade. Parece lógico a qualquer um, faz sentido.

Mas quando o sujeito diz que realizou vários de seus sonhos, que satisfez desejos que considerava improváveis e mesmo assim lhe sobrevém uma angústia avassaladora, talvez então só o analista possa ouvir o mais além, disso que certamente soa paradoxal ao próprio sujeito.

Para trabalhar a questão dos efeitos de angústia e de medo tomaremos alguns fragmentos de um caso clínico, na tentativa de mostrar sua relação com o desejo e o gozo.

Aquele que disso me fala é estrangeiro nesta terra. Deixou seu lugar ao reencontrar a mulher dos seus sonhos..., na vida desperta.

Deixou para trás tudo que tinha, - embora saibamos que não tudo – para fazer sua essa baiana. Aqui encontrou tudo aquilo que ansiava e além disso, ainda mais, pois afinal de contas, estamos na “terra da felicidade”...

Talvez por isso mesmo, qual não foi sua surpresa quando passado um tempo que fazia supor que já estivesse acostumado às particularidades e estranhezas do novo lugar, num momento de assentamento profissional e alívio dos desafios que esse recomeço exigiu superar, ao ver seu grande amor afastar-se em viagem momentânea, um medo paralisante o acomete. Uma angústia inexplicável o aflige, levando-o em urgência a um médico que rapidamente define uma crise depressiva e o medica.

Não sendo esta a solução suficiente para aplacar seu estado, um amigo lhe indica um analista e sua escolha, após longa pesquisa, recai sobre aquele que melhor impressionou por não tê-lo aceito como paciente de imediato.

Desde o começo nos perguntamos o que teria desencadeado tamanha crise, já que ele afirma que foi muito bem recebido, que já se familiarizara com o lugar e as pessoas, e até se considerava bem sucedido face aos desafios profissionais do início. Qual a causa de tanta angústia?

Três pontos se encadeiam de saída nesse roteiro:

1º) A realização do desejo, que o carrega para terras estranhas promovendo um rompimento com o que lhe é familiar.

2º) A instauração de um novo estilo de vida que implica uma mudança nos modos de gozo e nas relações subjetivas e,

3º) O desencadeamento da crise de angústia concomitante ao afastamento do objeto amoroso.

Poderíamos a partir daí tomar o primeiro desses pontos como causa, na medida em que aponta para a questão do desejo que, em se tratando de um obsessivo, nos envia à impossibilidade. Realizar o desejo é para o obsessivo penetrar numa terra estranha, pois o familiar é estar insatisfeito.

Poderíamos ainda tomar o segundo ponto como causa, se pensamos na perda de gozo que a nova posição subjetiva impõe, mas poderíamos também tomar o terceiro ponto atrelando a queixa ao sinto-mal, no viés da perda do objeto amoroso que se separa e se destaca mesmo que brevemente.

Entretanto, o que a análise nos revela inclui e vai mais além dessas causas. Inicialmente o sujeito toma como motivo de sua angústia o fato de que sem a sua baiana, - aquela que se constitui em elemento familiar nesse contexto, pois ela já lhe era íntima em sonhos – na ausência dela, ele teve um sentimento de estranheza, vazio e medo. Sem ela, ele se dá conta de estar num lugar estranho ao qual ele não pertence, onde parece estar perdido. Naquele momento ele se sentiu o mais estrangeiro, sem nenhum recurso – embora na realidade ele tenha recorrido a várias pessoas - e estava desamparado, desprotegido e vulnerável diante de uma ameaça indefinível.

Revendo agora a situação, parece ao próprio sujeito inadmissível que um simples afastamento fortuito do seu amor tenha causado tanto sofrimento e desolação a alguém tão independente e dono de si como ele.

Ele diz que já não sente aquele medo de então, pois o remédio o está aliviando, mas ainda está muito angustiado, pois teme sentir tudo aquilo novamente e ficar paralisado, sem conseguir agir na execução de suas rotinas de trabalho.

Visto nos remete a uma distinção entre medo e angústia como ingredientes desta crise, lembrando que Freud1 os distingue na perspectiva de uma ligação ao objeto colocando-o do lado do medo. Para Freud a angústia é sem objeto, é um afeto que busca um objeto ao qual ligar-se.

Em Lacan recortamos dois momentos de sua teorização sobre a angústia que utilizaremos aqui para melhor explorar este caso. O primeiro é o do seminário de 1962/63 2e o segundo um texto mais tardio, de 1974, que ele chamou de “A Terceira”3.

No primeiro, Lacan retoma o texto de Freud sublinhando a afirmação de que a angústia é “angústia diante de algo”4 e assinala que o sujeito aí está “tomado, concernido, interessado no mais íntimo de si mesmo”. O sujeito diante de algo que o concerne como o mais íntimo de si.

Ele afirma então, ao contrário de Freud, que a angústia “não é sem objeto”5 e a coloca diretamente relacionada ao objeto causa de desejo, enquanto que o medo se deflagra pelo enigmático esboço de uma ausência de objeto. Ele diz que “é exatamente em relação ao desconhecido que aí se delineia o medo”6

Assim também o medo de que o sujeito nos fala é de voltar a sentir o medo que sentiu na ausência dela. E para não voltar a experimentar tal medo o sujeito cogita abandonar essa mulher. Talvez até voltar à vida anterior onde desfrutava de um gozo mórbido, cotidiano e calmo, repleto de insatisfação, sob o domínio de uma esposa/mãe que o impedia de olhar as mulheres mesmo que pela televisão. Se coloco aqui a ex-esposa no nível da mãe é por uma referência que ele faz de ter sido criado não na barra da saia da mãe, mas “embaixo da saia dela”.

Retomando, o que temos aqui é da ordem da angústia de castração. Numa reedição do drama edípico, trata-se de mais uma vez abrir mão do objeto amoroso e recalcar o desejo que provoca a angústia.

Mas na verdade esse é um momento segundo em relação à irrupção da crise. O primeiro momento é referido como um momento onde o que sentiu era algo mais forte que o medo e que ele chama de “paúra”.

Este é um termo italiano muito usado nos estados do sul para designar um medo extremo, muito intenso, no sentido de terror, horror. E ele me diz enfaticamente que não se trata de simples medo, “...medo não, é uma verdadeira paúra”. E é isso que ele não quer experimentar nunca mais pois não sabe onde isso vai dar. Para tornar mais claro ele acrescenta que hoje, quando pensa que a sua baiana vai novamente se afastar, ele sente um medo do medo.

Essa expressão nos remete a esse segundo texto de Lacan que já mencionamos, onde ele define a angústia com essas mesmas palavras.

Ele se pergunta: “De que temos medo? de nosso corpo. ...A angústia é justamente algo que se situa alhures em nosso corpo, é o sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de nos reduzirmos ao nosso corpo.”7 É interessante notar que dez anos antes, Lacan se preocupa em distinguir medo e angústia, mas n’A terceira ele aproxima os dois termos e define a angústia como “medo do medo”, da mesma forma que este sujeito, que se angustia diante da possibilidade de experimentar novamente aquela “paúra”.

A continuação da análise permite abordar tudo aquilo que se presta a configurar a incerteza, mas não alcança dizer do objeto desse medo. É um objeto indescritível, é um medo e pronto.

Nosso sujeito se angustia por um mais além da própria angústia, que poderia levá-lo a submergir num espaço para além das palavras, que ele não pode nomear, que tomaríamos como o lugar de um gozo que é estranho ao sujeito.

Percebemos então dois tempos distintos na constituição desse mal estar: um primeiro que remete a uma ausência de objeto, a um medo diante de uma situação que se configura como perigosa nessa dimensão do desconhecido e estranho; o “Unheimlich” freudiano, que aponta e revela a proximidade da “Coisa”, como lugar de ex-sistência, fora dos domínios do sujeito.

O segundo, que coloca em jogo tanto o desejo quanto o gozo, na medida em que “remete à falta do objeto, o objeto a, como primeira condição da angústia, e também à demanda do Outro, como segunda condição”8.

Podemos entender então, que a ausência do objeto amoroso, que fabrica o familiar, coloca o sujeito diante de um outro objeto, o que o concerne como sujeito da fantasia, o objeto a; mas não sem esbarrar nessa dimensão do desconhecimento, que suscita tantos tons enigmáticos e por isso mesmo ameaçadores. Reduzir-se ao corpo, perder-se de si como sujeito é o que marca o insólito de seu destino fazendo com que o sujeito não possa mais que temer a sua própria dissolução. A angústia funciona aqui como sinal, como defesa contra o perigo de uma “coisificação”, se assim se poderia dizer, da passagem ao mais além do prazer e do desejo, onde se encontra o real do gozo enquanto mortífero. Convocando o sujeito em sua relação ao objeto tanto quanto ao desejo do Outro, a angústia é o que impulsiona a um retorno ao circuito do desejo.

No seminário da Angústia Lacan situa a origem da angústia numa zona de falha entre desejo e gozo, inscrevendo aí o objeto a como causa tanto de desejo quanto de angústia; e em “A Terceira”, - que corresponde ao tempo de seu ensino em que ele aborda as articulações e efeitos do nó borromeu - ele toma a angústia como vertente do real sobre o campo do imaginário, como efeito da reverberação do gozo do Outro. Efeito que parte do buraco central do nó constituído por esse mesmo objeto em sua dupla função de causa de desejo e mais de gozar.

Essas duas indicações servem para compreender que o confronto do sujeito com o real nesse momento particular em que se vê deslocado, literalmente num outro lugar, tenha suscitado a questão do “Quem sou eu?” pelo desvanecimento do “Tu és”, que nesse momento fica elidido desde quando o sujeito nesse encontro amoroso coloca sua fantasia em cheque.

Isto produz o desarvoramento que se expressa na vertente do medo do desconhecido que jaz em si mesmo, com toda a ordem de efeitos de dessubjetivação que isso pode implicar.

A angústia que se segue ao medo parece ser o recurso que permeia uma retomada do circuito, no que ela tende a configurar-se na esfera da castração, que é a melhor e mais eficaz medida para realinhar o sujeito na ordem do desejo e da lei pacificadora.

Penso que é disso que Lacan fala no seminário da angústia quando ele diz que: “ A angústia vem, portanto, constituir-se, tomar seu lugar numa relação além desse vazio de um tempo primeiro, se posso dizer, da castração. E é por isso que o sujeito tem somente um desejo quanto a essa castração primeira: retornar a ela.”9

Retornar a ela neste caso poderia corresponder a essa saída cogitada de abandonar essa mulher, fugir dela para livrar-se da angústia enquanto medo do medo; livrar-se em última instância desse medo que emerge frente ao “Unheimlich”, esse estranho sinistro.

A partir da possibilidade desse corte o sujeito já pode sentir-se mais próximo de casa, mas não sem uma certa angústia que aponta para a borda ainda próxima do precipício do gozo que, pode não tomar mais a forma de redução ao corpo, mas assume então a face mortífera do gozo do Outro, tomado ao modo de um imperativo. O sujeito literalmente questiona “sua dependência ao Outro”.10

É isso que o nosso sujeito expressa quando se pergunta sobre a função dessa mulher em sua vida e do perigo que esse remanejamento que ela promove em sua estrutura implica. Essa mulher que o surpreende no que se recusa a ocupar o lugar da mãe e se oferece como objeto feminino, coloca a descoberto um lugar da estrutura que foi por muito tempo tamponado. Enquanto ela insiste na posição de objeto a, ele luta para transformá-la em Outro, provocando e demandando dela que assuma o lugar do A, Outro não barrado, pois horroriza confrontar-se com a mulher castrada, tanto quanto com esse gozo de mulher, em posição de objeto.

E isso é tão mais complicado para ele porque, na vertente do objeto causa de seu desejo, essa mulher deve reduzir-se ao objeto anal, incompatível com o Ideal reservado à “mulher de sua vida”.

Aí está seu grande embaraço. Tudo que ele parecia desejar era esse encontro com a mulher de seus sonhos, esse objeto causa de seu desejo que lhe proporcionaria o a mais de gozar jamais experimentado. Uma satisfação total, a felicidade impossível para quem se equilibrava tão bem entre engarrafamentos, sanduíches pré-fabricados de segunda a sábado e almoços deliciosos saboreados em domingos inteiros na frente da televisão. Mas eis que quando isso acontece, é bom demais para ser verdade.

A verdade é: o sujeito intimado a rever sua posição, a estabelecer uma compatibilização entre o Ideal e o objeto que o concerne, a funcionar segundo um novo discurso e tentar retomar o fio de gozo perdido, já que não mais detém os meios de gozo tanto quanto supunha ...

O encontro com este objeto causa de desejo no que isso implica a satisfação parece ter produzido neste sujeito uma reorganização do campo do gozo de onde parte uma gama de efeitos que vão desde a mudança da posição subjetiva no discurso até esse atravessamento que o coloca diante da própria falta, com tudo de estranho que ela pode comportar. Para um bom obsessivo, ultrapassar o impossível do desejo, tem seu preço que é sempre pago no nível da “libra de carne”, como diz Lacan.

E nisso retomamos a própria escolha do analista que recai sobre aquele que, para o sujeito, encarna uma posição que implica ao mesmo tempo o objeto a ser conquistado e dominado, tanto quanto o Outro que pode lhe dizer desse “Tu és”. Com isso ele relança sua questão num outro plano do discurso, ainda que tentando resgatar para reatar as antigas e familiares relações de dominação onde costumava encontrar o equilíbrio entre o desejo enquanto insatisfeito, e o gozo colocado no Outro.

Ao analista resta não se iludir a respeito da causa consistente dessa busca da análise, pois em última instância, o que o sujeito visa não é “curar-se” de sua neurose, mas tão somente reequilibrar a economia desse gozo para dele desfrutar mais e melhor.

 

 

NOTAS

1“Inibição Sintoma e Angústia” E.S.B. vol XX
2Seminário da Angústia – 1962/63 – Publicação interna da Associação Freudiana Internacional - Centro de Estudos do Recife – 1997/98
3Jacques Lacan – “A Terceira”- 1979- Inédito – ( Texto falado por Lacan no congresso de 1974 em Roma e traduzido por Élide Valarini para a Biblioteca do Campo Freudiano)
4Seminário da Angústia – Lição XIV de 13 de março de 1963 -pág. 212
5Idem -Lição XIII de 6 de Março de 1963 pág. 195
6Idem Pág. 197
7“A Terceira” – pág. 38
8Seminário da Angústia – pág. 69
9idem Pág. 246
10Idem Pág. 321

 

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