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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.6  Salvador  2004

 

O CLIENTE

 

A clínica psicanalítica de crianças e as interferências da pós-modernidade

 

 

Gildete Lino de Carvalho

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

A autora se propõe a falar sobre o desamparo infantil desde sempre, as dificuldades da sua subjetivação diante das novas tecnologias e do desenvolvimento científico, alterando sobremodo sua relação com o mundo que tenta obturar a falta, impondo-lhe o conceito de completude. Analisa as interferências da contempo-raneidade no setting terapêutico analista –analisando, desqualificando essa experiência ímpar na vida do sujeito em sua retificação subjetiva.

Palavras-chave: Desamparo, Lei do pai, Édipo, Maternagem, Falta-a-ser, Castração.


 

 


O discurso pós-moderno – falácias da contemporaneidade que tenta a qualquer custo abolir a falta e, consequentemente, o desejo.

O consumo rege a orquestra com a ordem de não à falta, não à tristeza, não à solidão.

De forma contundente, no discurso da contemporaneidade – a ilusão de completude, a certeza da completude . E mais e mais o sujeito faltante, assujeitado ao Pai e á linguagem , vai perdendo as prerrogativas de sujeito desejante.

Estamos envolvidos numa grande festa, completamente submetidos ao prazer pleno, ao império do gozo.

A condição é que a falta não apareça, que o mal-estar fique escondido.

A ciência, diz Vanessa Santoro, se coloca no lugar de Deus, e junto com a farmacologia tem um remédio para cada dor. Mas, apesar disso, não tem a cura do câncer, milhares de pessoas morrem por ano, vírus e bactérias assassinas estão aí com soluções ainda precárias, e o fantasma da morte da morte aqui presente, perpassando toda a história do sujeito, castrado e impotente, sem poder falar, porque a palavra de ordem é: não ás diferenças, não à singularidade de cada sujeito. Que a falha não apareça nunca. Com a Psicanálise apreendemos – sem falta não há desejo; sem desejo não há sujeito.

O discurso da contemporaneidade é o das respostas imediatas como fazem as máquinas criadas pelo próprio homem e que o ultrapassam assombrosamente. O homem é colocado no espaço com a grandeza de rei, para pesquisas nucleares, ainda quando grande parte da população mundial morre de fome.

Com o pai ausente - da sua função – a lei não vigora eo ser humano é confrontado com a violência que se impõe a cada momento em todos os cantos do planeta.

Diante desse quadro, pergunta-se quem é a criança ? Onde está a criança?

Ricardo Rudolfo responde : a criança tem a grandeza de um ponto de interrogação. Vanessa Santoro complementa : esta criança hoje , está presa a um quarto, o seu mundo escondido, e diante dela uma tela de televisão ou de computador e um mauser. A sua subjetividade se processa na solidão de um quarto, em que o seu contato primordial se faz com a imagem virtual. Não por saudosismo, pensa-se que alguns anos atrás, a subjetivação da criança se processava no fundo de um quintal, onde os limites eram construídos no confronto de uma criança com outra, as trocas do saber e do não saber eram realizadas como lições de vida.

Como fica a criança diante de tantos contrastes, sem pai e sem lei, entregue ao seu próprio desamparo?

O psicanalista se encontra também confrontado com a sua mortalidade, escutando a partir do seu desamparo fundamental. Para o psicanalista, também, a experiência psicanalítica com o seu cliente é uma aventura subjetiva, marcada pela incerteza e a abertura de enigmas.

Sabemos que Freud viveu no início do século XX, o impasse do discurso da contemporaneidade, versus o discurso da psicanálise. Reconhece-se hoje discurso revolucionário, uma leitura outra do sujeito, acerca da sua verdade subjetiva.

A psicanálise, confrontada com o discurso da pós-modernidade, apresenta um discurso distinto. Parte da singularidade do sujeito e do seu mal-estar, para que o sujeito se dê conta da sua falta básica e a partir daí possa ocupar um lugar, na sua análise, de criação e reinvenção de si mesmo, sempre definindo a sua singularidade de sujeito.

O setting terapêutico sofre distorções- os descompromissos de horário e também na hora do pagamento. Muitos esquecem de pagar, sobretudo, quando o cliente é uma criança e quando a criança não mostra melhora - a melhora desejada pelos pais. Tiram-no por qualquer motivo. E, por vezes, só comunicam por telefone à secretária. “Diga a Dra. Gildete que Ernesto não vai mais. Resolvi entregá-lo ao Estado”. E destruindo a imagem do terapeuta como sujeito suposto saber, e no caso de Ernesto, constrói uma teoria para a interrupção do tratamento. Agora sim, Ernesto está bem, está sendo tratado com logopedista, com uma fonoaudióloga, com uma terapia individual, uma terapia em grupo.

Criança hiper-ativa, ansiosa e dissociada é desenraizada da mãe aos 05 anos por causa de uma enchente que atravessou a sua casa –a casa da mãe, empurrando-o para a casa do pai, sem entender o porquê dessas modificações em sua vida. Ele mesmo revela – “ minha mãe, eu quero voltar para a minha casa, aqui é a casa do meu pai, não é a minha casa”.

Outro caso infantil- José é muito tímido, não faz amigos, se isola de todo o mundo. A ele é exigido realizar um sonho dos pais: completar a formação na Australia Esses pais não são europeus, são uns Zé da Silva, brasileiros afortunados. Têm uma pequena empresa e fazem distorções na hora de pagar a análise do filho.

Primeiro mês: paga com um cheque do Rio Grande do Sul. Um mês para compensar.

Segundo mês: 13 cheques são enviados num envelope – cheques de 8,00 reais, 15,00 reais etc e um deles é devolvido. Nesse meio tempo, interlocuções com a família se processam.

A análise do púbere pára comigo. Exijo o pagamento em espécie. A mãe de forma irônica diz : “ A minha empresa estaria em excelente situação se você trabalhasse lá “. Tudo descartável para essa família, em consonância com o discurso da pós-modernidade. Sem dúvida, percebemos os nós em que essa família está enredada, mas podemos ver aí o discurso de pós-modernidade, onde o descompromisso e o descartável batem o ponto de presença.

Um outro pai na primeira entrevista, profundamente culpado, diz : eu não tenho tempo, como profissional liberal para dar atenção aos meus filhos.” Esses pais trocam o acompanhamento do filho em sua subjetivação pra ganhar mais dinheiro e garantir ao filho os brinquedos e os objetos sofisticados. E pergunta: “quem precisa de análise é meu filho ou minha filha ? Estamos perdidos”

Essas injunções perversas que a pós-modernidade criou, vão desembocar na reflexão sobre o grande desamparo da criança. Pensamos sê-lo muito maior do que o desamparo do adulto. Pois que, além do desamparo subjetivo há o desamparo real.

A psicanálise com Freud e Lacan -duas genialidades - em tempos diversos continua trabalhando com a subjetividade do sujeito, o falta-a-ser como Lacan o nomeou, para que um dia, na escuta privilegiada do analista, o cliente possa se descobrir faltante e assegurar essa posição, transformando-se em sujeito do próprio desejo, construindo e reconstruindo a sua história sempre.

A psicanálise continua afirmando o reconhecimento de que a cria do homem nasce sob o signo da insuficiência e da falta e passará anos sob a dependência do grande OUTRO até que possa se constituir sujeito do próprio desejo.

 

BIBLIOGRAFIA

FREUD, S. O Mal Estar da Civilização, ESB, vol. XXI. Rio de Janeiro, IMAGO, 1974.        [ Links ]

RUDOLFO, Ricardo. O Brincar e o Significante – um estudo sobre a constituição precoce, Artes Médicas, 1990.        [ Links ]

SIQUEIRA, Edinete Sampaio de. Psicanálise e o Novo Milênio, texto apresentado na XIV Jornada do Círculo Psicanalítico de Pernambuco, Recife, 1997.        [ Links ]

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