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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.6  Salvador  2004

 

O CLIENTE

 

As diferenças, as pulsões, o narcisismo e as desavenças

 

 

José Antônio Araújo*

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

Ao longo desse trabalho, vou discorrer a respeito da importância da pulsão de morte, da sua incansável e permanente luta para a sua satisfação, o gozo; relacioná-la com o narcisismo e como isto nos leva às desavenças, à destrutividade; de como Freud pesquisou as pulsões, aclarando-nos que as duas, a de vida e a de morte, agem sempre em conjunto; do mal-estar e dos sofrimentos que a vida nos impõe inexoravelmente; e finalmente, de como o tratamento analítico pode amenizar tais sofrimentos e amansar as pulsões, ao aumentar e fortalecer o entendimento e a organização do eu. Esta, pois, seria a “cura” freudiana.

Palavras-chave: Diferenças, Pulsões, Narcisismo, Desavenças.


 

 

“É que Narciso acha feio o que não é espelho”

Versos de ‘Sampa’, de Caetano Veloso

A primeira vez que Freud cunhou a expressão ‘narcisismo das pequenas diferenças’ foi no seu artigo “O Tabu da Virgindade”1 quando a partir de uma observação de Crawley ele diz: “Seria tentador desenvolver essa idéia e derivar desse ‘narcisismo das pequenas diferenças’ a hostilidade que em cada relação humana observamos lutar vitoriosamente contra os sentimentos de companheirismo e sobrepujar o mandamento de que todos os homens devem amar o seu próximo”.

Mais adiante, em 1921, quando escreve “Psicologia de Grupo e Análise do Eu”2, ele retoma a questão e escreve: ”Nas antipatias e aversões indisfarçadas que as pessoas sentem por estranhos com quem têm de tratar, podemos identificar a expressão do amor a si mesmo, do narcisismo”.

Porém, é na sua obra “O Mal-Estar na Civilização”3 que o assunto é retomado e analisado por Freud, principalmente em seu capítulo V.

Antes porém, gostaria de salientar alguns pontos fundamentais, que Freud aponta no capítulo II(pág. 95): “O sofrimento nos ameaça a partir de três direções’”:

1. De nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência;

2. Do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas;

3. De nossos relacionamentos com os outros homens.

Freud aponta o terceiro como o mais difícil e penoso de todos, e não sem razão.

Um pouco antes(pág.93), ele havia escrito: ‘ A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. Afim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. Existem talvez três medidas desse tipo:

• ’Derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça’; ou seja, a ciência.

• ‘Satisfações substitutivas, que a diminuem’ ; ou seja, a sublimação.

• Substâncias tóxicas , que nos tornem insensíveis a ela’ ; ou seja, a anestesia.

Um pouco mais adiante (pág. 101), é que ele vem a incluir o amor como um poderoso remédio: “Evidentemente, estou falando da modalidade de vida que faz do amor o centro de tudo, que busca toda satisfação em amar e ser amado”.

Diz ainda Freud (pág. 103): “Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo”. A palavra empregada é esta mesma: salvação.

Explorando agora o capítulo V, vemos que Freud (pág.136), retoma a expressão ‘narcisismo das pequenas diferenças’. E desenvolve o raciocínio de que os grupos se mantêm coesos no amor, consequentemente à mando de Eros, mesmo inibido em sua finalidade, contanto que sobrem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade, à serviço de Thánatos. Esta agressividade inata e inerente ao homem, é contida pela lei imposta pela própria sociedade em nome da civilização. Assim, como salienta Freud (pág.137): “ Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização’.

Freud retoma também (pág. 136), o que ele já havia abordado em “Psicologia de Grupo e Análise do Eu” sobre a rivalidade de povos vizinhos, que , por exemplo nós nutrimos em relação aos argentinos e vice-versa.

A questão que levanto neste momento é justamente de fazer a reflexão que o narcisismo que nos compele a preferir sempre a nossa própria imagem à qualquer outra, está à serviço da pulsão de morte, de Thánatos. Segregando a imagem que preferimos não ver, onde não há uma diferença fundamental, acobertando-a, estamos livres para exercer a nossa agressividade primeva.

Baseado nesse raciocínio, podemos, da mesma maneira como Freud aludiu às cruzadas, a outras guerras e empreitadas do mesmo tipo, assistir Bush em nome da democracia (sic) e dos valores fundamentais da civilização cristã e ocidental, perpretar esta mortandade no Afeganistão e no Iraque, ou Bin Laden e a Al Qaeda fazerem alhures o mesmo, em nome do Islã.

Freud, mais adiante no capítulo VI (pág. 144) enumera três vicissitudes para a pulsão de morte:

• Na primeira, a união de Eros e Thánatos no sadismo;

• Na segunda, ‘na mais cega fúria de destrutividade, não podemos deixar de reconhecer que a satisfação da pulsão se faz acompanhar por um grau extraordinariamente alto de fruição narcísica ( grifo meu), devido ao fato de presentear o eu com a realização de antigos desejos de onipotência deste último;

• Na terceira e última vicissitude, Freud relata Thánatos ‘já moderado e domado, e, por assim dizer, inibido em sua finalidade’, ou seja, sublimado.

O tema da guerra é motivo do artigo “Por que a Guerra?”4 de 1932, que trata da carta escrita por Einstein à Freud, e a resposta deste sobre o tema. Duas são as perguntas fundamentais de Einstein:

1) Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra?

2) É possível controlar a evolução da mente do homem, de modo a torná-lo à prova das psicoses do ódio e da destrutividade?

Freud discorre longamente a respeito das pulsões de vida e de morte e (pág. 252) escreve: ‘Ora, é como se uma pulsão de um tipo, dificilmente pudesse operar isolada; está sempre acompanhada – ou como dizemos, amalgamada – por determinada quantidade do outro lado...’

E mais adiante: ’A dificuldade de isolar as duas espécies de pulsão em suas manifestações reais é, na verdade, o que até agora nos impedia de reconhecê-las’.

Na página seguinte continua: ‘De forma que, quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar – uns nobres, outros vis, alguns francamente declarados, outros jamais mencionados. Não há porque enumerá-los todos. Entre eles está certamente o desejo de agressão e destruição...’

Mais adiante (pág. 258) Freud escreve: ‘Dentre as características psicológicas da civilização, duas aparecem como as mais importantes: o fortalecimento do intelecto, que está começando a governar a vida pulsional, e a internalização dos impulsos agressivos com todas as suas conseqüentes vantagens e perigos’.

Ao concluir a sua carta resposta a Einstein, Freud escreve no penúltimo parágrafo: ‘ E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade se torne pacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não ser utópico esperar que esse dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo das conseqüências de uma guerra futura, venham a resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha um término à ameaça de guerra. Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos advinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra.’

Assim, no caminhar do pensamento de Freud, no que diz respeito á civilização, ele passa da ingenuidade do otimismo iluminista, à crença na democracia, insistindo no aprofundamento progressivo da mesma, de maneira que a lei que organiza e rege a vida social não seja expressão da vontade de um pequeno grupo, mas de todos. Na perspectiva psicanalítica, a democracia pode ser definida, numa fórmula condensada, como o reconhecimento e aceitação do outro e de seus direitos. Ela supõe a aceitação ao mesmo tempo da igualdade e da diferença, de uma igualdade enriquecida pela diferença. A pulsão agressiva continuará certamente a existir no psiquismo humano, mas ela pode ser administrada, orientada e contida, tanto na vida social quanto na dos indivíduos. Quanto a esses últimos, é disso que nos ocuparemos a seguir.

Antes porém, quero salientar a importância que os psicanalistas podem emprestar ao aperfeiçoamento desse ideal democrático, da fé quase utópica expressa por Freud , não tendo receio de se expor publicamente como pensadores, como tão bem o fazem Maria Rita Kehl e Jurandir Freire Costa. Seríamos assim, agentes e colaboradores desse ideal.

Voltemos agora ao objetivo precípuo da psicanálise que é o de lidar com a singularidade de cada sujeito, de ajudá-lo a melhor situar-se diante da vida. Para isso, vou me basear em um dos últimos escritos de Freud, “Análise Terminável e Interminável”5 publicado em 1937.

Nesse seu trabalho memorável, Freud vai se ocupar da importância fundamental da pulsão de morte, como o fator mais poderoso, dentre outros, de impedimento ao sucesso de uma análise.

Diz a Nota do Editor Inglês (pág. 244): ‘Freud escreve que a intenção da psicanálise é fortalecer o eu, ampliar seu campo de percepção e aumentar a sua organização, de maneira a que possa apropriar-se de novas partes do isso. Onde o era o isso, ficará o eu’. Ou, dizendo de outra forma mais usual e famosa: “Wo es war, soll ich werden” (Onde está o isso, o eu deve advir).

Vamos a algumas citações do artigo propriamente dito:

1. ‘Dos três fatores que reconhecemos como sendo decisivos para o sucesso ou não do tratamento psicanalítico – a influência dos traumas, a força constitucional das pulsões e as alterações do eu - , o que nos interessa aqui é apenas o segundo, a força das pulsões’ (pág. 256).

2. Diante do reconhecimento de que é impossível livrar-se permanentemente de uma exigência pulsional, Freud escreve: ‘Não, queremos dizer outra coisa, algo que pode ser grosseiramente descrito como “amansamento” da pulsão. Isto eqüivale a dizer que a pulsão é colocada completamente em harmonia com o eu, torna-se acessível a todas as influências das outras tendências neste último e não mais busca seguir seu independente caminho para a satisfação’ (págs. 256 e 257).

3. ‘Se a força deste(do eu) diminui, quer pela doença, quer pela exaustão, ou por alguma causa semelhante, todas as pulsões que até então haviam sido amansadas com êxito, podem renovar suas exigências e esforçar-se por obter satisfações substitutivas através de maneiras anormais’ (págs. 257 e 258).

Ou seja, a pulsão é incansável, está sempre à espreita de uma oportunidade para evadir-se, para satisfazer-se: GOZA!

4. Impressão alguma mais forte surge das resistências durante o trabalho de análise do que a de existir uma força que se está defendendo por todos os meios possíveis contra o restabelecimento e que está absolutamente decidida a apegar-se à doença e ao sofrimento. Uma parte dessa força já foi por nós identificada, indubitavelmente com justiça, como sentimento de culpa e necessidade de punição, e foi por nós localizada na relação do eu com o supereu. Mas essa é apenas a parte dela que, por assim dizer, está psiquicamente presa pelo supereu e assim se torna reconhecível; outras cotas da mesma força, quer presa, quer livres, podem estar em outros lugares não especificados’ (págs. 275 e 276).

5. ‘ Somente pela ação concorrente ou mutuamente oposta das duas pulsões primevas – Eros e a pulsão de morte -, e nunca por uma ou outra sozinha, poderemos explicar a rica multiplicidade dos fenômenos da vida’ (pág. 276).

Assim, Eros e Thánatos estão amalgamados para sempre, agindo em conjunto, nunca isoladamente. Uma união indissolúvel.

6. ‘Nosso objetivo não será dissipar todas as peculiaridades do caráter humano em benefício de uma “normalidade” esquemática, nem tampouco exigir que a pessoa que foi “completamente analisada” não sinta paixões nem desenvolva conflitos internos. A missão da análise é garantir as melhores condições psicológicas possíveis para as funções do eu: com isso ela se desincumbiu de sua tarefa’ (pág. 284).

Antes de encerrar, gostaria de recomendar a leitura de um interessante texto de autoria de W. Erb, escrito em 1893 , reproduzido por Freud no seu artigo “Moral Sexual ‘Civilizada’ e Doença Nervosa Moderna” de 1908 6, onde poderemos constatar que as preocupações da nossa era atual, da pós-modernidade, são bem similares às de então, não havendo pois, uma significativa diferença à luz dos pontos levantados nesse artigo pelo autor, que já se preocupava com a pressa; com a tecnologia; com o consumismo; com o mundo das comunicações; com os conflitos religiosos, sociais e políticos; com a busca desenfreada de prazeres intensos; com as paixões e com a sensualidade proposta pela literatura da época, apresentando aos leitores ‘personagens patológicas com sexualidade psicopática’; e por último para a minha surpresa: ‘nossa audição é excitada e superestimulada por grandes doses de música ruidosa e insistente. Que música seria essa? Valsas de Strauss? O que diria o autor hoje a respeito das aparelhagens de som instaladas nos porta-malas dos carros reproduzindo pagode e músicas do tipo bate-estacas ? E as festas nos condomínios?

Alguém já disse que os poetas nos precedem e foi assim que comecei citando um e agora encerro o meu trabalho citando outro deles, Manoel de Barros:

“A maior riqueza do homem é a sua incompletude “.

 

 

NOTAS

*Aluno do Curso Básico de Técnica Psicanalítica do Círculo Psicanalítico da Bahia.
1 Freud, S.- E.S.B.- Vol. XI - Pág.184.
2 Ib. - Vol. XVIII Pág.. 129.
3 Ib. - Vol. XXI.
4 Ib. - Vol. XXII.
5 Ib. - Vol. XXIII.
6 Ib. - Vol. IX pág.s188 e 189.

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