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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.6  Salvador  2004

 

O PSICANALISTA

 

O admirável mundo novo, o abominável cliente novo e o improvável analista novo

 

 

Marli Piva Monteiro

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

As novas exigências em todos os setores da vida moderna propõem uma forma sedutora de tratar clientes para mantê-los fiéis pelo maior tempo possível. Mas este cliente procura excelência, rapidez, preço mais conveniente e grande disponibilidade de atendimento com opção como delivery análise ou análise por e- mail. O novo analista, disputando o mercado selvagem se credenciará ao ISO 9004. A análise, por seu turno, encurtada, simplificada, subvencionada a preços aviltantes seria transformada em “brie-a brac” ou em Terapia do tipo “fait pour vous”. Ainda haverá espaço para os jurássicos conceitos de “constituição do sujeito”, “transferência”, “desejo” e “falta” ? A pergunta que se impõe no momento dirige-se não ao analista, mas é dele que parte e se dirige à análise “Che vuoi ?

Palavras-chave: Sujeito, Cyber cliente, 3º sujeito, Transferência, Analista.


 

 

Ao escrever seu romance “O admirável mundo novo”, Aldous Huxley não podia imaginar que muito mais cedo do que poderia supor, suas teorias se fossem confirmando. Suas fantasias realizadas transformaram o mundo social e científico mas repercutiram, conforme previra, no aspeto afetivo, decisivamente.

O homem atual preocupa-se cada vez menos com a frustração e os conflitos, pois consegue transformá-los em protestos, revoltas, indignação e bandeiras de lutas de minorias discriminadas. O novo homem, neste novo mundo admirável, não indaga mais de seu desejo pois para ele nada lhe parece ser específico, desde que pode ser preenchido ilusoriamente a seu bel prazer, posto que as condições são muitas e as leis de proibição ignoradas. O vazio do desejo é foracluído. É a psicanálise que se interroga agora Che vuoi? E a esta pergunta impõem-se as respostas mais obscuras.

A maior dificuldade atual do psicanalista é conseguir um contexto em que o cliente, posicionado como aquele que sabe o que quer e do modo que quer, procure algo além de um prestador de serviço que o atenda da forma mais eficiente e mais rápida possível, com a menor exigência de esforço ou colaboração de sua parte. Por exemplo, quer livrar-se da insônia porque esta o impede de trabalhar e precisa estar sempre atento e produtivo 24 horas por dia mas sem insônia ou cansaço. Não quer nem pode arriscar uma dependência medicamentosa pois não pode deixar de dirigir, quer uma medicação que lhe possibilite dormir, quando achar que deve e manter-se alerta, quando necessário, sem reduzir sua capacidade sexual ou se possível até melhorá-la. O desafio para o psicanalista é, no curto espaço de tempo que o paciente lhe concede, criar uma demanda de análise. Conseguirá? E se não conseguir o que deveria fazer? Propor um acompanhamento nos moldes sugeridos, atendendo às suas necessidades? Encaminhar o cliente? Rotulá-lo de inanalisável? Em qualquer dos casos estaria atuando em desacordo com a ética do desejo. Infelizmente, porém é preciso encarar a situação com coragem. Em nosso país inflacionado de analistas, de terapeutas de todos os tipos e também de pobreza, de desempregados, como poderia o analista sobreviver se encaminhasse a um colega psiquiatra todos os clientes desse tipo? Vamos ser honestos e realistas – não lhe sobraria praticamente nada. O cliente atual vive numa sociedade que iguala, onde o que se almeja é ser parecido com o outro, fazer o que ele faz, possuir o que ele tem, ter os mesmos direitos, confundir-se na multidão. A essencialidade não lhe importa. E. Roudinesco chama a atenção para o processo de depressialização (ou seja, a tentativa de tornar tudo depressivo), numa idealização romântica de internalizar o sofrimento tornando-o poético e eliminando o inconsciente, vivenciando a angústia existencial consciente, na firme proposta do anonimato, na tediosa experiência da satisfação plena, ancorada na vivência depressiva, conforme expressa a autora. Como se o mito depressivo assegurasse a liberdade de um existir exaurido no tédio e apoiado nos fármacos ou nas esdrúxulas crenças e rituais, como também no culto à imagem corporal ao preço do uso de anabolizantes e energéticos ou de atos mais radicais como as tatuagens, os “piercings” ou até procedimentos cirúrgicos mais complexos como o recorte da língua para torná-la bífida. O homem atua sobre o seu corpo modificando-o na forma e na função, faz-se o criador, o próprio deus. “A psicofarmacologia encerrou o sujeito numa nova alienação, ao pretender curá-lo da própria essência da condição humana”, afirma Roudinesco. O homem é igualado ao semelhante do mesmo modo que as doenças se igualam enquanto sintomas, ante um tripé constituído pelos psicotrópicos, o pragmatismo e a elocubração. As mulheres não necessitam mais das paralisias histéricas para dizerem das suas dores, pois podem gritar nas ruas, suas reivindicações, os gays desfilam em passeatas quando outrora gemiam, debatendo-se nos divãs. Se o comportamento dos clientes tornou-se obsoleto, a psicanálise, segundo Jacques Derrida, também se tornou “remédio ultrapassado” e maquilada de tanta neutralidade, purismo e ortodoxia, está se transformando numa “praxis para escolhidos”, psicanálise para os psicanalistas e esse é um grande perigo – converter- se em pseudo poder como a monarquia inglesa. Enquanto isto, a sociedade cada vez mais narcísica e perversa tenta evitar a qualquer custo, o sofrimento e a frustração, o mais rápido possível. Não lhe interessam a falta, o desejo, a subjetividade. Pouco se importam com as verdadeiras raízes dos seus conflitos e dramas, querem saber como livrar-se deles e voltar logo, às novas tentativas de satisfação. A psicanálise, como possibilidade de transformação existencial do sujeito, tem dado lugar à possibilidade de explicar e justificar o que a política e a bioquímica facilitam nas atitudes dos sujeitos. Assim, crimes, suicídios, torturas e todo tipo de transgressões são esclarecidos com explicações psicanalíticas ou rotulados nas DSM como distúrbios, transtornos, etc. A partir desse domínio do racional sobre a psiquê é fácil perceber o alívio da sociedade por apreender na compreensão o sucedido, como também confundir a psicanálise com as religiões, o ocultismo, o xamãnismo ou a necessidade de utilizar seus conceitos fundamentais em bases fisiológicas ou anatômicas, deslize aliás, no qual o próprio Freud incorreu no seu “Projeto”. O psiquiatra Eric Kandel chega ao extremo de enfatizar, em artigo publicado na Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul que “A biologia é o futuro da psicanálise” e justifica o fracasso da psicanálise, asseverando: “O decréscimo do impulso da pesquisa psicanalítica não é devido a fatores subjetivos, presentes entre os psicanalistas, mas a fatos históricos de significado mais amplo: a situação psicanalítica já deu tudo o que continha. Está esgotada quanto a possibilidades de pesquisa, a menos até que possamos conceber novos paradigmas”, para Kandel, a psicanálise não avança porque “gera idéias que não é capaz de testar”. Os relatos psicanalíticos são subjetivos e parciais, o que torna a psicanálise pré-científica, diz Boring, por ele citado no mesmo artigo. Mais adiante, Kandel ainda no mesmo texto, acrescenta que as instituições psicanalíticas ficam assim livres de compromissos com outras instituições científicas e com a própria biologia. As propostas por E. Kandel elaboradas, para unir a Biologia à Psicanálise, consistiriam em determinar a natureza dos processos inconscientes, definir a natureza da causalidade psicológica e psicopatologia, relacionar as experiências precoces à predisposição à patologia mental e as experiências pré-conscientes e inconscientes ao funcionamento da cortex pré-frontal, a orientação sexual e finalmente os resultados da psicoterapia sobre a mudança estrutural da mente e a contribuição da psicofarmacologia combinada à psicanálise.

Ora, é entre o consciente e o inconsciente que Freud situou o sujeito. Sujeito que de acordo com Melanie Klein, foi situado descentrado, tanto no espaço psíquico, quanto no tempo analítico. É a noção de identificação projetiva que irá permitir compreender um sujeito que mantém interdependência com o objeto e vice-versa. Este é o ponto crucial na evolução do conceito de sujeito, situado na interseção sujeito – objeto, transferência-contratransferência, no desenvolvimento humano e no processo analítico. Este o sujeito que visa a psicanálise como bem o define Ogden. Um sujeito que surgiu, lembrando Winnicott, no espaço potencial entre a mãe e o filho ou no “setting” entre o cliente e o analista. É a partir dos estudos de Winnicott que podemos já delinear a criação do 3º sujeito de que nos fala Ogden. É uma desconstrução que vai marcar a diferença do sujeito até aqui constituído e o pensamento lacaniano. Para Lacan é a visão radical entre significante e significado, permitindo o deslizamento dos significantes que estabelece o “hiato ou intervalo”, a estrutura principal da cadeia significante, onde o sujeito vai surgir significante, referido a outro significante. Lacan nos permite definir o 3º sujeito como uma ilusão de compreensão (elemento básico da desconstrução), pois os significantes que criamos são sempre falsos e têm embasamentos igualmente dúbios. A proposta lacaniana é da desconstrução do texto manifesto para tentar um aproximação com o que não foi intencional (o latente), lapsos, claudicação, hiatos, chistes, erros, etc. O sujeito lacaniano é este sujeito da desconstrução, produzido pela cadeia significante ou pelo grande Outro, se preferirem. Quem fala é o Outro, ou antes o sujeito é falado pelo Outro. Desse modo, o sujeito falante está definitivamente separado do sujeito do inconsciente – ele é apenas falado pelo Outro. E é o falante que comete as falhas, os lapsos, as claudicações e tropeços que vai permitir a aproximação com o outro – o sujeito do inconsciente. Entre os dois existe uma distância abissal e para permitir que o processo ocorra é indispensável instituir alguém no lugar deste Outro para dar início à análise. Não admitir este espaço e esta distância é inviabilizar a análise. Winnicott não podia admitir que no contexto da análise, o sujeito ou o analista existissem separadamente. Daí a asseveração de Ogden de que intersubjetividade e subjetividade negam-se mas criam e preservam uma à outra. É a experiência de estar ao mesmo tempo dentro e fora da intersubjetividade analista- analisando que faz emergir a noção de 3ºanalítico. Como na relação com o Outro é necessário investir no texto, integrar-se e entregar-se na relação de intersubjetividade para produzir um novo texto – a leitura. Mas nem todos os leitores se comportam desse modo, há meros reprodutores de textos , como alguns que mantêm uma distância capaz de captar as palavras em sua superficialidade e perder a polissemia, o essencial. Cogito se os clientes que procuram atualmente a psicanálise nas condições que já referimos, estariam dispostos a um confronto com a intersubjetividade ou se um analista conseguiria neste futuro analisando, uma demanda de análise. A angústia, o medo, a insônia são pequenos incômodos que pretendem afastar logo, como o fazem com seus próprios clientes indesejáveis, hackers, trojans, e virus. Pagam pelo melhor serviço, no menor espaço de tempo. . Cada dia mais liberado e destemido, o homem do século XXI propõe-se ousar mais e mais e sente-se mais ávido de novas emoções, faz sexo em grupo só de homens ou de mulheres, mantém paralelamente dois relacionamentos com pessoas de sexos diferentes, experimenta drogas convencionais ou não, bebe agora infusões de fitas de video, além de gasolina, cheira cola e desodorantes ou injeta-se anestésicos para cavalos. De sensação em sensação sempre insuficientes e estimulado sempre a procurar novidades, chega ao ponto de deixar-se contaminar pelo vírus da AIDS, através de aidéticos escolhidos como convidados especais de uma festa com honras de portador de um presente especial (the gift), como bem retratado no filme do mesmo nome. Presente que simboliza o falo, poder extremo para quem o porta – poder de vida e de morte. O cliente atual, altamente informado, já traz seus conteúdos catalogados. Através da mídia, da participação em congressos profissionais, abertos ao público e dos cursinhos das instituições psicanalíticas que durante muito tempo fingiram ignorar a crise da psicanálise, suprindo a falta de clientes nos consultórios, com os alunos facilmente aliciados. E quantos clientes teriam surgido após os cursos!!! Começam as análises quase analistas, a ponto de se auto autorizarem. O passe para eles é bilhete de entrada. Isso inviabiliza ou pelo menos contribui para obstaculizar bastante o processo analítico, a criação de um 3º sujeito advinda do encontro entre um analista e um cliente, receptor e emissor de mensagens, respectivamente que como na interpretação da leitura cria um outro sujeito que não é o 1o nem o segundo mas tem a ver com ambos – o sujeito leitor/analisando ou no caso do análise, o sujeito do inconsciente. Sujeito que não foge da sua história por mais que a tente renegar como Édipo e Laio, conforme lembra Thomas Ogden. A experiência desse encontro que desestabiliza a auto-identidade e faz com que o sujeito se defronte com a alteridade, confunde-nos e nos torna convictos de que não poderemos passar por ela, incólumes. Por essa experiência passam analista e analisando como leitor e autor recriando-se a cada nova tentativa de leitura / análise. A construção do 3º sujeito , ou sujeito do inconsciente circula, como no ato de leitura, entre o desconstruir e construir de cada um dos sujeitos, estabelecendo uma espécie de restauração que define processo e sujeito como produtos. Mas é relevante destacar que este 3º sujeito não é absolutamente o mesmo para nenhum dos dois. A criação do 3o sujeito envolve entrega-despojamento que o novo cliente reluta em fazer na nova análise a que se propõe. A pergunta que me fiz em meu artigo “A ilusão de um futuro”, de 1995, volta-me constantemente - Pode o mundo inteiro sofrer transformações e só a Psicanálise passar ao largo? Nossos clientes nos procuram de formas muito diferentes daquelas que estávamos acostumados a receber.

L...não consegue entender porque a mulher não aceita o seu direito de exercer a sexualidade plena. Por que tem que abrir mão de seus namorados ou de gozar da bissexualidade?

G...gostaria de fazer terapia de casal com a companheira.

P...quer fazer a cirurgia para mudar de sexo e V... para colocar o anel no estômago para emagrecer e ambos os cirurgiões condicionaram a operação à terapia prévia.

U...veio me procurar porque tem câncer e todo mundo diz que é bom fazer análise nesse caso. Está convencido de que faz parte do bom resultado do seu tratamento oncológico.

Será que estas novas facetas da sociedade não repercutiram no inconsciente? Será que é ainda o Édipo a pedra de toque da estrutura do sujeito? Seria no mínimo ingênuo responder que nos casais homossexuais, cada um adota o papel de pai ou mãe.

Não tardará o dia em que receberemos este cliente: Procurei o sr. ou a sra. porque preciso proceder ao meu des-ser, encontrar meu significante primordial Não quero porém me submeter a um processo de transferência imaginária, quero ser sujeito do meu próprio desejo. Meu problema, sempre foi com o grande Outro e se o sr(a) não me ajudar, não vou conseguir vencer meu Édipo, nem transpor o rochedo da castração. Não é discurso de mestre, não; sei que devo enfrentar as frustrações porque aqui vale o seu desejo. Haja semblante de “a” hein?

Ante este SSP (Sujeito Suposto Poder) o que lograria um analista com o Sujeito Suposto Saber? É possível a um tal indivíduo supor um saber a alguém, mesmo por pouco tempo? A este abominável cliente interessa um Fazer que suponha ou não, qualquer tipo de Saber, pouco importa. Qual seria o lugar ocupado por um provável analista? Será ele capaz de desestabilizar essa apaziguadora sensação de domínio? Além do mais, as constantes concessões que o analista tem que fazer durante a análise, encharcaram a relação analista-analisando, de realidade. As trocas de horários, as justificativas pelos atrasos, deixaram de ser dados de análise para se tornarem justificativas e motivos justos. A negociação dos pagamentos, propostas de parcelamentos e cheques pré datados tornaram-se rotinas. O número de sessões semanais reduziu-se a ponto de proceder-se a atendimentos quase ocasionais.

Será que os analistas estão fazendo análise ou é outra coisa o que fazem? Será que os clientes estão realmente construindo com seus analistas um processo analítico? Ou será que a psicanálise está se tornando uma profissão em extinção, a menos que os analistas o admitam, reconheçam e comecem a pensar em medidas heróicas para garantir a sua sobrevivência.

Conforme o cineasta Gilles Vallet “Cinema e psicanálise nasceram na mesma época, têm a mesma vocação: “Permitir que as pessoas vejam o mundo de uma maneira diferente” e sem dúvida com muita razão, Jean-Jacques Beneix, diretor do filme “O enigma do divã “ cujo titulo original, muito sugestivo, é “Mortel transfert”, declarou ,“Ser psicanalista é uma das últimas profissões de alto risco que temos por aí”.

Nesse admirável “setting” novo, o analista tem dificuldade para situar-se, para histericizar o cliente ao qual “os saberes” do analista não interessam, pois ele já os tem. O que ele quer é que o analista, seja lá quem for, e seja lá como for, lhe proporcione os meios de reduzir sua ansiedade, depressão, seu sofrimento, enfim. O analista já não consegue colocar o cliente dividido no conflito, contraditório – ele está cheio de certezas. Vê-se então o analista como o músico a quem pediram que execute uma peça mas subtraíram-lhe a partitura.

O novo cliente é um cyber cliente, acostumado à rapidez e superficialidade da informação da Internet, afastado do mundo real, cada vez mais mergulhado no mundo virtual, fazendo negócios sem nem sequer conhecer seus clientes. Faz amor por e-mail e tecla sua paixão nas salas de bate papo. Numa entrevista no programa Roda Viva, dizia o filósofo Newton Bignoto, “A hipertrofia da intimidade destrói o bem público” O cliente cyber não sai de casa porque não precisa nem quer ser incomodado, mas vivendo enjaulado, engaiolado e só, vem perdendo o direito aos bens, que concordamos serem bens de todos, a liberdade, a tranqüilidade, a segurança.

O sujeito da modernidade é o inesquecível “Cidadão Kane” de Orson Welles, produzido em 1941 e considerado uma das obras primas do cinema de todos os tempos. Ë o sujeito que quer reformar o mundo, mas construindo um mundo só seu e acaba vítima da sua própria armadilha. Seu narcisismo articulado de forma metafórica mas ao mesmo tempo linear, cristalina, surge no estabelecimento da primeira relação afetiva que culmina num casamento sem amor nem consideração, numa desatenção clara e objetiva, típica do amar narcísico que se basta a si mesmo. A segunda relação, extraconjugal é também apática, isenta do colorido apaixonado das relações proibidas e sigilosas, pretendendo a satisfação concreta de um pálido sonho inconsistente, quase – capricho, mencionado “en passant” pela mocinha pobre, encantada com o homem rico que lhe faz a corte e que dela se apodera para assegurar seu prestígio, sua vontade e confirmar sua onipotência. A cantora lírica-blefe é imposta pelos seus jornais que a ovacionam e promovem. Mr. Charles Foster Kane ignora a todos e impõe-se como o dono do dinheiro, da divulgação e da verdade incontestável. Sua alucinada onipotência alcança o auge na construção do palácio-museu, repleto de estátuas que o fitam em muda e admirada contemplação. Seus quadros, de valor duvidoso e extremo mau gosto, garantem-lhe uma sensação de opulência, segurança e poder que a fortaleza do alto da montanha reflete. Mas Xenadu, como toda utopia, é o paraíso-inferno onde se faz enterrar junto com a muda e passiva companheira que no final decide abandoná-lo para sobreviver. As caixas, na cena final, que vão se transformando em prédios de concreto, retratam o mundo vazio e desprovido de emoções – o admirável mundo novo – limpo, perfeito, porém órfão de emoções. A busca incessante do objeto do desejo, objeto inalcançável e eternamente perseguido, agalma, dom, Santo Graal é a comprovação da eterna insatisfação, da impossibilidade que a morte e somente ela lhe tira das mãos e da boca – ROSEBUD – botão de rosa esconde ao mesmo tempo o segredo e o despertar da flor – mulher arredia e irreal, reafirma o sujeito quando não é mais nada, Édipo em Colono e sua única possibilidade de vir-a-ser.

 

BIBLIOGRAFIA

BENEIX, Jean-Jacques – “ O enigma do divã” (sinopse do filme). Diretor – Jean- Jacques Beneix, Produtora – Bavaria Film International, 2000.        [ Links ]

ROUDINESCO, E - Por que a Psicanálise – Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.        [ Links ]

KANDEL, R, Eric - “A Biologia e o futuro da Psicanálise” Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul 2003; 25 / 01:jan/abr : 139-165.        [ Links ]

OGDEN, Thomas – Os sujeitos da Psicanálise, Casa do Psicólogo- Clinica de Psicanálise Roberto Azevedo, S. Paulo 1996.        [ Links ]

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VALLET, Giles – “O enigma do divã” – (sinopse do filme) Diretor – Jean-Jacques Beneix, Produtora – Bavaria Film International, 2000.        [ Links ]

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