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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.6  Salvador  2004

 

O PSICANALISTA

 

A(s) psicanálise(s)... obedientes ou criativas?

 

 

Stetina T. M. Dacorso*

Círculo Brasileiro de Psicanálise- Seção RJ

 

 


RESUMO

O presente trabalho visa analisar a transmissão da psicanálise nas instituições: universidade, grupos e sociedade. Questionamos se a produtividade criativa dos pioneiros persiste ou ficou sucumbida nas exigências de estatutos e regimentos. Exigências decorrentes e necessárias frente ao mundo que vivemos, incluindo a ampliação dos limites de ação do homem moderno, gerando um impasse na psicanálise.

Palavras-chave: Psicanálise, Transmissão, Instituição, Criatividade.


 

 

A psicanálise tem sido analisada em sua eficácia, objetivos, contratos, ética, pressupostos, cientificidade... e inúmeros outros itens pertinentes a nossa época e a respeitabilidade de um saber. Discussões que se desenrolam tanto dentro quanto fora do “gueto” psicanalítico.

Há muito tempo, nosso ato clínico e sócio-político-econômico deixou de ser marginalizado ou não reconhecido... tornou-se tão inserido que querem reconhecê-lo legalmente. O psicanalista se tornou um profissional respeitável, invejado e também degradado. Em abril/68 Anna Freud já se preocupava com o lugar social que o analista ocupava:

Ao examinarmos de perto as personalidades que, por escolha própria, transformaram-se na primeira geração de psicanalistas, não nos resta nenhuma dúvida sobre suas características. Eram as pessoas avessas às convenções as que duvidavam, aquelas que estavam insatisfeitas com as limitações impostas ao saber; entre elas estavam também as excêntricas, as sonhadoras e as que conheciam o sofrimento neurótico por experiência própria. Esse tipo de inserção passou por uma alteração decisiva, a partir do momento que a formação psicanalítica foi institucionalizada e sob essa forma mais rigorosa, passou a atrair um tipo de personalidade diferente. Além disso, a auto-seleção deu lugar ao exame criterioso dos aspirantes à carreira que resulta na exclusão dos mentalmente perturbados, dos excêntricos, dos autodidatas e dos que têm vôos excessivos da imaginação e promove a aceitação dos indivíduos sóbrios e bem preparados, suficientemente trabalhadores para querer aprimorar sua eficiência profissional (2000, pg. 130.)

A fala de Anna vai de encontro a todas as questões que temos debatido, basta lançar um olhar aos temas que norteiam nosso encontro. Estava Anna Freud com razão? Estamos mais exigentes; mais normais, menos criativos; menos sofridos; menos doidos na nossa condição humana? Isto nos torna menos sonhadores; menos rebeldes; mais competentes e burocratas na ou da psicanálise? Fico pensando que nossos atuais excêntricos, transgressores e rebeldes, são destrutivos com os laços coletivos de grupos e instituições. Pouco preocupados com causas maiores...
Roudinesco diz de forma iluminada – aquilo que temos conhecimento: nada é mais próximo da patologia do que o culto da normalidade levado ao extremos. É nas famílias mais normais que surgem os comportamentos mais loucos, criminosos e desviantes.

Num primeiro momento foi necessário que a IPA agisse de forma normativa para uma expansão segura e respeitável da psicanálise, eliminando os perigosos transgressores, rebeldes e os muito sedutores... Num segundo momento, a nosso ver, surgiu a coerção. A profissionalização do saber freudiano acabou provocando um efeito de distanciamento das questões sociais... Neutralidade do cidadão-psicanalista.

Ocorre uma ampliação dos limites para aceitar condutas das pessoas: outrora, duvidosas, transgressoras e desrespeitosas, hoje compreensíveis, aceitáveis e modernas. Esta situação faz com que em nossas sociedades construamos estatutos e regimentos mais exigentes e rígidos, de forma a salvaguardar uma transmissão séria e respeitável.

Na história da vida coletiva, as instituições foram criadas para atender carências. As necessidades do mundo atual mudaram. As sociedades de psicanálise procuram acompanhar as novas exigências: formação em 2/3 anos; reprodução do modelo acadêmico de créditos; não exigência de produção teórica assídua, porque os alunos não tem tempo(?), não entregam no prazo (?), ou não querem fazer (?). as 3 sessões de análise por semana passaram para 2 sessões e já se aceita 1 vez por semana.

Com tantas sociedades, os candidatos procuram aquela que serve aos seus interesses: a mais convenientes; menos exigente e com pouca “frescura” porque o mundo é outro... Até onde e no que podemos flexibilizar? Muitas vezes, nossas dificuldades, nos levam a institucionalizar transgressões, desvios e exceções.

Escrevendo sobre transmissão, Romildo Rêgo Barros fez uma distinção entre transmissão e difusão. A primeira se refere a um estilo e a segunda a uma mensagem. Consideramos que as duas dizem respeito a transferência. Tanto no ato de transmitir quanto no da difusão, há o comprometimento visceral com a experiência analítica e com a nossa história. Ficamos nesse lugar de forma específica e singular. Não há como nos eximirmos da nossa responsabilidade com o que acontece a nossa volta.

As sociedades submetem-se a academicismo e burocracias, que mesmo não sendo excessivas, são a base da sobrevivência institucional. O espaço para a rebeldia criativa fica pequena e os formandos são cientistas repetidores. A psicanalização das condutas institucionais não nos tem ajudado a sair das dificuldades e nem encontrar soluções mais efetivas.

O prof. Freud parece que estava certo, o saber psicanalítico não se presta ao ensino, não se esgota, não se prende a rigores acadêmicos e nem a velocidade de nosso tempo. Então, o que fazemos?

Nesta era imediatista, transgressora e temente à dor, a criatividade cabe a cada um de nós no privado do setting, com cada sofredor que sôfrego nos procura. Muitas vezes, estes atos ficam no silêncio, para não afetar nossa imagem imbuída do respeito de nossos pares. A espontaneidade fica impedida. A mordaça invisível silencia a fala livre. Esta situação contamina o pensar. Resultado: pensa-se pouco!

Outra questão: como acatar as regras da sociedade que escolhemos e respeitamos e aos mesmo tempo, sermos rebeldes transgressores e criativos sem levá-las ao caos destrutivo?

As gerações mais novas estão mais próximas das questões sociais. Sua atuação vai para comunidades, periferias, ambulatórios. Querem cursos de pouca duração, não se vinculam às instituições e nem cultuam mestres. Neste contexto nossa preocupação é a superficialidade dos conhecimentos e o risco de um ecletismo duvidoso.

Mais uma questão: parafraseando Birman; o ideal das maravilhas oriundas do resultado da psicanálise se perderam frente os heróis arrogantes, masoquistas lacrimejantes e depressivos deserotizados, surgidos de “n” teorias de processos analíticos. Quem vai se dispor a anos de análise? Quem quer ser realmente um analista?

Precisamos, urgente, de reformas institucionais, mas além de não sabermos por onde começar, também ficamos atemorizados. Como falar, viver, ouvir e ser tocado pela psicanálise sem sentir incômodos e mal-estar?

São as questões que trago para discutirmos. Que possamos conversar apesar do barulho desse grito confuso do admirável mundo novo.

 

BIBLIOGRAFIA

CALES, Robert. Psicanálise: a experiência Norte-americana. In Freud: Conflito e cultura. ROTH, Michael S. (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.        [ Links ]

BARROS, Romildo do Rêgo. Ética: a psicanálise e sua transmissão. In Ética, psicanálise e sua transmissão. FRANÇA, Maria Inês (org.). Petrópolis: Vozes, 1996.        [ Links ]

BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.        [ Links ]

ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.        [ Links ]

 

 

NOTAS

*Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Brasileiro de Psicanálise- Seção RJ. Professora de Psicologia do Centro de Ensino superior de Juiz de Fora. Mestre em Psicanálise.

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