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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.6  Salvador  2004

 

O PSICANALISTA

 

Entre o ser e o fazer: novas formas de sintomas e a prática psicanalítica

 

 

Tarcísio Andrade

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

O que o autor propõe nesse trabalho é examinar o deslocamento entre a posição de ser, a qual carrega consigo determinantes como a herança genética, o destino e a constituição psíquica do sujeito, para a de fazer, a exemplo da construção do corpo, da vida, das relações afetivas e da felicidade. Perpassa o tema a produção , o consumo e o imediatismo que se refletem nas demandas dirigidas ao psicanalista na atualidade.

Palavras-chave: Psicanálise, Transmissão, Instituição, Criatividade.


 

 

O presente texto, fruto do encontro entre o registrado na literatura e as vivências do autor, ‘e uma tentativa de contextualizar as formas de constituição e apresentação do sujeito da atualidade e o psicanalista no exercício de sua prática. Sem se propor a ser original nos seus enunciados, ele adentra veios de elaborações que pela sua amplitude e interdisciplinaridade carecem de futuras complementações.

A prática psicanalítica desde as entrevistas iniciais, incluído ai a formulação do contrato de trabalho, à condução da análise propriamente dita, - a qual pressupõe a transferência, a associação livre, a atenção flutuante, a abstinência e a neutralidade – tem sofrido modificações visíveis nos últimos 20 anos. De que lado está a mudança? Ela se deve ao cliente? ao psicanalista? ao mercado de trabalho? Ou a todos eles?

Motivado pela prática clínica, por discussões levadas a termo com outros colegas e pela obra de alguns autores entre eles Cotardo Caligaris, Juan-David Nasio, Jean Clavreul, Charles Melman e Emiliano Galende, os dois últimos, em particular, com suas obras “O homem sem gravidade:Gozar a qualquer preço” e “De Um horizonte incierto: Psicoanálisis y salud mental en la sociedad actual”, respectivamente, o autor tem se indagado sobre uma das marca da pós-modernidade, que ‘e o ter em detrimento do ser. Levando-se em conta a tendência atual à movimentação contínua e a aferição do sucesso pela produção, ele toma como motivo de reflexão, não mais o ser, mas o fazer em oposição ao ter.

 

O CASO DE C: A VIDA A GENTE FAZ

Partindo da motivação clínica, considere-se a seguinte situação. C, um homem jovem, casado, pai de um filho de 4 anos, e encaminhado ao psicanalista por um médico clínico com diagnóstico de síndrome do pânico. Em conseqüência do plano Collor seu pai, recém egresso de uma empresa onde era gerente, e com planos de montar o seu próprio negócio, teve confiscado todo o dinheiro destinado a esse objetivo e sofreu o seu primeiro infarto. Desse momento em diante, em detrimento da continuidade dos estudos, C passou a trabalhar e progressivamente assumiu o papel de suporte da família, composta da mãe e de vários irmãos. Há 11 anos, período em torno do qual se deu a morte do seu pai pelo segundo infarto, passou a ser funcionário de uma financeira, onde tem progressivamente galgado posições mais diferenciadas. Recentemente, C tem acordado no meio da noite com palpitações sudorese e sensação de abafamento, tendo sido por cinco vezes atendido em serviços de emergência. Em consulta com um cardiologista esse lhe diagnosticou síndrome do pânico, prescreveu Sertralina 50mg/dia e o orientou a procurar o psicanalista.

Sinto-me melhor relata C. Já consigo um certo controle dizendo a mim mesmo que não é nada, que não tenho nada e que os sintomas não vão aparecer, mas ao adormecer é como se meus pensamentos se descuidassem e aí os sintomas ocorrem. C relata ainda que o seu filho de 4 anos tem tido crises de agressividade com a babá: “ quando estou no trabalho e ela telefona dizendo o que está acontecendo com ele, fico todo atrapalhado. O que fazer com uma criança de 4 anos?” Indaga. “Na minha presença e na de minha esposa nada disso acontece, meu filho é o sonho de consumo de todo pai”. Ele já está em acompanhamento com uma psicóloga ,conclui.

O filho como sonho de consumo, colocado por C, chama atenção para o lugar a ele reservado na família. O despreparo para lidar com suas manifestações afetivas e a transferência do problema para o psicanalista, lembram o sujeito alexitímico que tendo perdido o pai, e se sentindo estranho em sua aparente indiferença, indaga ao psicanalista: como comportar em um momento como esse?

Na continuação do seu relato, C fala das diferenças entre ele e a esposa que também trabalha fora o dia todo. Mas ela nos momentos de folga gosta de ficar em casa na rede; não se preocupa muito com a aparência e não valoriza, como ele, a freqüência das relações sexuais. “Gosto de aproveitar a vida: em vez de ficar em casa prefiro passear com o cachorro, ver a lua; a pessoa precisa se cuidar para alimentar o interesse do outro, do contrário nenhum casamento se sustenta, o interesse sexual também alimenta a relação”. Diz ele.

Ouvindo esse homem o analista tem a sensação de que a vida dele não acontece, ele a faz. Em constante movimento em nome da boa forma e do sucesso profissional, ele acrescenta ao seu trabalho na empresa de finanças a prática de natação ao meio dia e o curso universitário após o final do expediente, só retornando à casa tarde da noite. Para se divertir prefere sair e tomar um whisk em uma boa companhia a ficar em casa. É possível que a natureza do seu trabalho tenha a ver com a recomposição financeira do pai internalizado na sua condição de provedor da família e com o qual ele também se identifica nos sintomas cardíacos. O relato das atividades de C, suas preferências e valores, bem como a referência ao descuido do pensamento possibilitando a emergência dos sintomas dão a dimensão da sua necessidade de controle de suas sensações e da relações com o outro, e do pouco espaço para a subjetividade do encontro consigo mesmo.

 

A CONSTRUÇÃO DO CORPO

Na atualidade assiste-se de forma crescente, além das tentativas de controle sobre as sensações e as relações objetais, as tentativas de controle do corpo em suas formas físicas. Essas ‘ultimas cada vez mais marcados pela pobreza, e mesmo a ausência, dos efeitos de linhagem, ou seja de representações simbólicas.

Recentemente num evento sobre adolescência, o título de uma das mesas redondas “O uso de anabólicos esteróides na construção do corpo do adolescente”, ratifica essa percepção. Ele remete à possibilidade de um corpo a ser construído, distante portanto do contemplado nos aspectos constitucionais de alguém que é alto ou baixo, gordo ou magro, bonito ou feio; atributos esses muitas vezes relacionados a características familiares geneticamente determinadas, ou mesmo adquiridas. “Puxou a fulano” e uma expressão a cada dia menos ouvida.

A construção do corpo, seja mediante a prática de exercícios físicos, do uso de anabolizantes, de dietas especiais, de cirurgias plásticas, de produtos de beleza e de inúmeros outros recursos com o propósito de lhe dar novas formas ou retardar, e mesmo anular, o envelhecimento, é uma marca dos tempos atuais, onde o flácido, o distendido, o enrugado são sinônimos de menos valia, em oposição ao tenso, ao liso, ao tenro. Que o diga a enorme expansão do mercado de cosméticos e de outros recursos de estética. Ao se tratar da construção do corpo adolescente, mediante o uso de anabólicos esteróides, cujo uso efetivamente se concentra entre adolescentes e adultos jovens, corre-se o risco de focar apenas nesse grupo etário os processo de “construção” do corpo, quando na verdade o maior consumo de cirurgias plásticas e de outros recursos de rejuvenescimento não se dá entre adolescente, mas em populações de mais idade.

Mas de onde vem a necessidade de domínio sobre o corpo, na intensidade aqui mencionada. “A construção do corpo” contido no título da mesa redonda citada acima nos dá a idéia de um corpo domado e submetido ao arbítrio de quem o possui. Na prática sabe-se que não é assim: o corpo físico é palco de uma série de transformações, inclusive de natureza mórbida e/ou degenerativa algumas vezes colocadas fora do controle dos mais avançados recursos da ciência.

O corpo enquanto envelope do sujeito ‘e lugar de inscrição da íntima relação entre continente e conteúdo, sendo um o palco da atuação do outro, como bem expresso nas doenças somáticas psiquicamente determinadas, ou na representação psíquica das doenças físicas. E isso ‘e de fácil verificação na execução de atos tão simples como a corriqueira troca de passos em que consiste o ato de andar, o qual é absolutamente único para cada pessoa, só se justificando enquanto expressão da identidade psíquica, única para cada sujeito.

O que se passa então na preponderância do corpo tomado no real de sua estrutura física. No dizer de Charles Melman, num registro de presentificação onde nada há a ser representado porque o real dá conta de tudo. Ao real nada falta. É isso o que efetivamente acontece; ainda que às custas de grande esforço e mesmo da mortificação em que se constitui o trabalho físico de horas de musculação diária e/ou do preço a ser pago pelos efeitos colaterais do uso de anabólicos esteróides androgênicos, alguns deles graves como a atrofia testicular, ou mesmo letais como o câncer de fígado. Nessa mesma linha está a mortificação dos participantes de algumas modalidades esportivas que na busca do pódio dedicam grande parte do seu tempo a treinamentos intensos e desgastantes, dos quais, não raro, resultam lesões físicas importantes que põem em jogo a própria carreira.

A situação descrita acima também pode ser identificada na rotina de trabalho estafante a que se entregam muitas pessoas cujo objetivo é a aquisição de bens de consumo, algumas vezes completamente deslocados de sua função, a exemplo do que se passa com a aquisição de um automóvel em que se goza mais do seu corpo do que da sua utilidade como meio de transporte. Nesse particular considere-se a situação de um adolescente que na eminência de receber do pai o seu primeiro carro evidencia todo seu interesse por um determinado modelo, pela roda de liga leve e pelo aerofólio, ficando em segundo plano a utilidade do mesmo para além da condição de um objeto de mostração.

Seja a mortificação pelo exercício físico, pelo treinamento, pelos efeitos colaterais dos anabolizantes, pelo trabalho motivados pela construção do corpo perfeito, pela busca de sucesso, pela acumulação de bens; todas essas situações se aproximam de uma outra a toxicomania, em que está em pauta o controle das sensações, a busca do prazer na forma, na medida e no momento desejado, ainda que o preço a pagar seja a exclusão social, as sansões penais, a overdose, a AIDS.

 

A DESVALIA DO HOMEM NOS DIAS ATUAIS

É possível que a intensidade das demonstrações de controle do homem sobre si mesmo e sobre o mundo que o cerca, seja diretamente proporcional à sua desvalia. Cada dia se usa menos a palavra destino na acepção de algo sobre o qual não se detém o controle. Vive-se uma verdadeira intolerância ao sofrimento. E isso se expressa de várias formas: seja na medicalização do humor - nos dias atuais não há mais lugar para a tristeza - quase sempre rotulada de depressão; seja nas promessas encontradas na religião em enunciados como “pare de sofrer”; ou no controle de comportamentos tidos como fora do padrão, haja vista o uso crescente de metilfenidato (ritalina) em um número cada vez maior de crianças, sob o rótulo de hiperativas ( Transtorno de Déficit de Atenção e Hiper-atividade –TDAH.

A desvalia do homem da atualidade se evidencia de várias maneiras. A violência cotidiana nas grandes cidades, é uma delas. Já não se sente seguro em atos tão banais como ir a esquina comprar um jornal. A esse propósito Jean Jacques Courtine em seu texto Os stakhanovistas do narcisismo atribui a Sam Fussel, um “body-builder”, a declaração de querer se tornar invulnerável, colocar o mundo à distância, intercalar a carapaça espessa dos músculos entre a fraqueza do eu e a violência das ruas de New York.

As mesmas leis que hoje abrigam reivindicações e direitos antes impensáveis também vulnerabilizam. Tome-se como exemplo o ordenamento do solo quando se permite que a poucos metros de um edifício, seja erguido um outro tomando toda a vista e ventilação dos moradores daquele primeiro, tudo sob o amparo da “Lei”. Ainda assim vive-se a ilusão do controle, inclusive sobre um número crescentes de eletrônicos que preenchem cada vez mais o que seria o tempo ocioso da vida em casa e cujos recursos cada vez mais sofisticados - embora quase nunca completamente utilizados - em um processo incessante de aperfeiçoamento, se tornam obsoletos em um tempo cada vez menor. Trata-se de um efeito de mercado premido pela produção e embasado na mais valia pelo acúmulo – mais que isso pela exibição de bens de consumo - ainda que em verdade, aqueles que os utilizam quase nunca saibam os princípios que regem o seu funcionamento. Tomando-se como exemplo equipamentos mais simples, quantas pessoas sabem qual o principio de funcionamento de um aparelho de fax, de um DVD – e mesmo o que significam essa sigla - do mecanismo de transmissão via satélite e tantos outros equipamentos de uso cotidiano.

 

A EDUCAÇÃO DOS FILHOS: ENTRE O SER E O FAZER

Ser tem haver com o encontro consigo mesmo e por conseqüência com a falta e o excesso - seja de satisfação ou de frustração - que o recobrem. O ser é se ver na foto e se expor ao olhar do outro, onde a tomada do momento leva ao risco de não re-editar o traço, o lugar, a pose em que se pretende cristalizado o sujeito da atualidade. Enquanto isso ele faz, ele produz a foto, ele propicia ao outro, dentro de uma relação imaginária com os seus ideais, o que supostamente o outro necessita, e o faz em nome desse último.

E assim na educação dos filhos, baseada, na maioria das vezes, na provisão de cuidado em detrimento da preocupação. Tomando-se como metáfora da relação pais e filhos a canção “Sapato 36” de autoria de Raul Seixas (1977) quando ele diz: “eu calço é 37, meu pai me dá 36, dói, mas no dia seguinte aperto meu pé outra vez; e adiante: “porque cargas d’água você acha que tem o direito de sufocar tantas coisas que trago em meu peito” e conclui com:“pai estou indo embora, quero partir sem brigar, já escolhi meu sapato, que não vai mais me apertar. A diferença no tamanho dos sapatos retrata a relação: cuidado X preocupação. A escolha dos próprios sapatos, traduz a autonomia dos filhos ao se tornarem independentes. Filhos independentes e autônomos, significa filhos que vão embora, que traçarão seu próprio caminho, o que implica, portanto, em separação, perda de controle. Mais que prover os sapatos, ajudar a escolhê-los traduz o verdadeiro papel dos pais. A provisão dos sapatos é da ordem do cuidado – como o ‘e o bom colégio, o intercambio, o curso de inglês a aula de futebol - e pode implicar apenas na entrega do dinheiro necessário a sua aquisição, algo da ordem do fazer. Já a ajuda na escolha dos mesmos, pressupõe além da presença física, um saber sobre a preferência e os valores do outro, algo que é da ordem do ser, num encontro de subjetividades e como tal, sujeito a incertezas e desencontros.

 

UM SUJEITO QUE EVANESCE

As novas formas de sintomas colocam em evidência a ação em detrimento da reflexão ou seja, o fazer em detrimento do ser. Essa é, sem duvida, a marca maior da pós-modernidade, no lastro da hegemonia do capitalismo – em um mundo em que nenhum outro sistema lhe serve de contraponto - onde o sujeito passa a ser definido pela sua capacidade de produção e de consumo. Algumas reflexões provocam mesmo a indagação: de que sujeito se trata, uma vez que ele se evanesce no turbilhão de mudanças, que de per si não são apanágio da atualidade, mas que se processam a uma velocidade, antes nunca vivida? Considere-se como exemplo o exercício do direito, dos valores morais, da solidariedade que, em algum grau, constituem a todos e que a qualquer momento precisam ser abandonados como forma de auto-preservação. Suponha-se uma das seguintes situações: 1) um automóvel bate no fundo de um outro parado em um semáforo, ou 2) uma família com uma criança desacordada nos braços de um dos supostos pais, a margem de uma avenida, pede ajuda. Se esses fatos acontecem à noite ou mesmo durante o dia em lugares de pouco movimento, o motorista em um ato de preservação de sua integridade física e mesmo da própria vida, pode tomar atitudes completamente diferente dos princípios que o constituem, porque desconfia tratar-se de alguma modalidade de assalto. Nesse mesmo sentido vai a orientação passada aos filhos - embora impulsivamente nem sempre cumprida por eles e pelos próprios pais - de que em caso de assalto, não esbocem qualquer reação e entreguem tudo sem oferecer resistência. Tantas outras situações – a maioria sublimiares - desmontam o sujeito em nome do coletivo, do socialmente aceito, do politicamente correto e mesmo do que estabelece a lei.

 

O SER, O FAZER E O OFÍCIO DO PSICANALISTA

As novas formas de sintomas trazem, ao psicanalista, demandas de fazer, enquanto o ato psicanalítico, em sua essência – associação livre, atenção flutuante, abstinência e neutralidade - o situa do lado do ser. No desafio da condução desse desencontro inicial me valho de Emiliano Galende quando menciona que “o analista silencioso, a espera de associações livres do paciente, ou da demanda de analise por parte deste, pode se sentir impotente diante de um paciente que não demanda, ainda que peca ajuda, que não associa, ainda que fale, e que não se vincula transferencialmente, ainda que não seja psicótico nem deprimido”.

A tentativa – para não dizer a impostura - por parte do psicanalista, da retificação subjetiva de demandas dessa natureza não infreqüente resulta em abandono do tratamento, ainda durante as entrevistas preliminares. Possivelmente essa é a causa de evasão de um percentual significativo de pessoas que fazem uso de drogas, quando desconfortáveis em suas práticas - embora isso não signifique desejo de abstinência –, resolvem por si próprio, ou com a ajuda de alguém, procurar um psicanalista. Quando isso acontece, não ‘e ao psicanalista, definido pelos balizadores da prática psicanalítica, que elas efetivamente procuram, embora esteja ai preservado o lugar do sujeito suposto saber. Mas de um suposto saber como o conferido inicialmente ao médico, o qual muito rapidamente ele espera seja exercido, sob forma de algo que se concretize na ajuda por ele procurada. Essa passagem, entre ser o objeto da necessidade do outro, – lugar ocupado pela droga para o toxicômano – e a subjetivação do seu ato/sintoma se constitui no desafio da clínica psicanalítica diante de um numero significativo de pessoas que demandam ajuda do psicanalista na atualidade.

No paralelo entre o discurso médico e o discurso psicanalítico traçado por Jean Cravreul em seu livro a Ordem Medica, ele encerra o capitulo com o seguinte parágrafo: “Enfim, não poderíamos desconhecer que o médico pode ser levado pessoalmente a adivinhar que seu doente tem outra coisa em mente do que se oferecer ao discurso médico, o que o conduzirá a ter, às vezes, uma escuta de seu doente que não visa introduzi-lo nesse discurso. Mas nisso ele deixará de ser médico, o que não quer dizer que ele será por isso capaz de sustentar a posição de psicanalista. Que ele seja, então, levado a renunciar a medicalizar a demanda que lhe e feita já e dar prova de uma rara audácia”. Esse parágrafo deixa claro que ao discurso médico interessa o que do paciente pode ser inscrito – tornado real – no saber da instituição médica, que o profissional ali representa. A ela interessa o signo enquanto tal, ou seja aquilo que representa alguma coisa que uma vez colocada em um quadro de referências ira compor um diagnóstico e por conseqüência uma recomendação de tratamento. Algo, portanto, da ordem do fazer. Para o psicanalista, não é do signo que se trata, mas de significantes enquanto representação do sujeito que pensa, no que de sintonia houver entre pensamento e desejo, ponto de revelação, portanto, de sua autenticidade.

Diante das novas formas de sintomas, enquanto não se instala uma análise, ou mesmo no curso desta, parafraseando clavreul pode-se dizer: o psicanalista ao se permitir o lugar de objeto da necessidade do cliente deixará de ser psicanalista, o que não quer dizer que ele deva por isso sustentar a posição de médico. Que ele seja, por algum tempo ou momentaneamente, levado a renunciar a retificação subjetiva da demanda que lhe e feita já e uma prova de uma rara audácia. Esse desafio, tornar-se ainda maior quando o psicanalista se permite medicar seu cliente. Os significativos avanços da psicofarmacologia de um lado e do outro a intolerância ao sofrimento que marcam os dias atuais, definitivamente, colocam o psicanalista na encruzilhada entre o ser e o fazer.

 

 

NOTAS

1.Calligaris, C. 1966. Crônicas do individualismo cotidiano. Ed Atica. Sao Paulo, Brasil.

2. Clavreul, J. 1983. A ordem medica – Poder e impotência do discurso medico. Ed. Brasiliense. Sao Paulo, Brasil.

3.Galende, E. 1977. De un horizonte incierto – Psicoanalisis y salud mental en la sociedade actual. Ed. Paidos. Buenos Aires, Argentina.

4. Kormam, V. 1995. Y antes de la droga, Que. Ed. Grupo Igia. Barcelona, Espanha.

5. Melman, C. 2003. O homem sem Gravidade – Gozar a qualquer preço.Ed. Companhia de Freud. Rio de Janeiro.

6. Courtine, J. 1993. Os stakhanovistas do nacisismo. Communicatinos, n 56, 81-114.

7. Nasio, J . 1999. Como trabalha o psicanalista. Ed Jorge Zahar. Rio de Janeiro.

8. Nasio, J. 1996. O livro da dor e do amor. Ed. Jorge Zahar. Rio de Janeiro.

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