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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.6  Salvador  2004

 

A INSTITUIÇÃO

 

O que regula a psicanálise?

 

 

Rosângela Gazzi Macedo

Instituto de Estudos Psicanalíticos - IEPSI -Belo Horizonte, MG

 

 


RESUMO

A autora trata da questão da regulamentação da profissão de psicanalista abordando os conflitos a ela inerentes

Palavras-chave: Regulamentação, Instituição psicanalítica, Ética.


 

 

As sociedades psicanalíticas de Minas Gerais e do Brasil, através de movimentos como o da Articulação e do Movimento Mineiro, vêm se reunindo para discutir sobre a proposta de regulamentação da profissão de psicanalista. Esses movimentos provocam e convocam os analistas a um debate sobre o lugar da psicanálise no mundo atual, retomando seus próprios conceitos e a sua ética.

A psicanálise, desde a sua invenção por Freud, contou com uma extra-oficialidade que a beneficiou, não demandando para si nenhum tipo de legislação oficial, pois tais regulamentações iriam se contrapor ao seu campo de trabalho que é o do sujeito do inconsciente e cuja ordenação não se dá pela via da legislação vigente em outros campos sociais.

A psicanálise é uma função que se opera a partir da experiência do analista no interior da sua própria análise, e é por isso que a formação do psicanalista é tão complexa. E, pela mesma razão, ela não existe como profissão autônoma em nenhum lugar do mundo.

Legalizar, então, a psicanálise é desconhecer exatamente o seu princípio fundamental, ou seja, a descoberta do inconsciente.
O fazer do psicanalista não se rege por normas, estatutos elaborados ou a partir de acúmulo de conhecimentos que se impõem a priori. Refere-se a um campo muito específico e particular. É um saber diferenciado em que a análise pessoal é a experiência fundamental para se tornar analista.

A proposta básica da psicanálise de sustentar a singularidade, o sujeito da diferença, sofre com a possibilidade de uma regulamentação da profissão de psicanalista, o risco de perder, justamente, o que ela tem a oferecer que é a chance do sujeito situar-se como desejante, de elucidar esse desejo irredutível, indomável que constitui o que há de mais particular em cada um. Incluir na vida o impossível de se arranjar - de não ter como eliminar o mal-estar é ter, como nos diz Freud, a possibilidade de trocar a miséria neurótica pela miséria humana.

Os psicanalistas, em defesa dessa incompletude, dessa não resposta, de um real impossível de dizer, são jogados num vazio difícil de tolerar e são confrontados com a constante questão da sobrevivência da psicanálise.
Como, então, articular o impossível de se escrever do real da experiência psicanalítica, algo atópico, fora do mundo, que Lacan situou como imundo, às leis comuns a que somos submetidos? Como instituir a formação do analista? Como fazer o nó entre o saber inconsciente, o saber teórico e o saber fazer?

Na verdade, o psicanalista está sempre se deparando com o cerne da psicanálise, ou seja, a sua dimensão da falta, esse descentramento do homem que não é dono do seu destino, nem sequer da sua palavra. A psicanálise dirige a sua atenção para uma coisa inteiramente diferente, ela se volta para o fato de que, a partir do significante, o sujeito pode criar o nada, e é, a partir do momento em que cria em si mesmo o nada que o sujeito tomará seu prumo. Há, então, a possibilidade de fazer uma escrita, uma inscrição de um significante novo que marca a ausência de significante no Outro. O Outro, inconsciente, é barrado, ou seja, algo do saber está definitivamente perdido sobre a barra do recalcamento primário.

O paradoxo da existência da psicanálise reside no fato de que o sujeito, enquanto sujeito do inconsciente, é constituído como uma questão cuja própria estrutura se define por não ter uma resposta pronta, acabada. Lembrando o texto “A analise é leiga” podemos dizer que os psicanalistas são detentores de um saber leigo, marcado por um não saber. Mas é por essa não resposta, por esse não saber, que muitos movimentos vão no sentido de renegar a existência subjetiva para que esta questão do impossível desapareça.

Sabemos que não há um conceito, uma essência de analista, mas há algo, o desejo do analista, que sustenta a psicanálise, e cabe às instituições psicanalíticas abrir espaço para fazer dessa impossibilidade sua questão.

As sociedades psicanalíticas têm sido um espaço onde a formação teórica-clínica é sistematizada. Porém a análise pessoal, experiência fundamental para se tornar um analista, não pode ser disciplinada ou normatizada. Não há como fiscalizar algo que é de caráter subjetivo e particular a cada um.

É interessante destacar, ainda, como que, a partir da ameaça do projeto de regulamentação, as instituições psicanalíticas se reconheceram. Sabemos que não há um significante estável para reunir os que operam no campo da psicanálise, não tem como coletivizar porque os caminhos são particulares. O caminho mais fácil seria o de reunir todos em torno de um significante ideal, o caminho da psicologia das massas, caminho mais fácil, mas obturador da possibilidade de inventar e do desejo.

O desafio que se coloca aos analistas, hoje, é sustentar a tensão entre esses dois discursos, o do sujeito do inconsciente e o discurso comum penso que esta é a sua ética.

É uma questão ética porque não se trata de uma questão técnica, implica num trabalho cuidadoso de como podemos reconhecer um psicanalista na sua singularidade e diferença.

E, fazendo valer o desejo de analista, devemos manter nossas discussões sobre as propostas de regulamentação da profissão de psicanalista. É importante sustentar esse espaço de discussão para que algo novo possa surgir, onde cada um e cada sociedade possam se apresentar. O “novo” no sentido de um significante novo que marca uma relação diferente do sujeito com a falta. É necessário um trabalho e certa insistência no desejo para que possamos levar adiante a causa analítica.

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