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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.6  Salvador  2004

 

A INSTITUIÇÃO

 

Os im-passes na instituição psicanalítica

 

 

Viviane Gambogi Cardoso*

Grupo de Estudos Psicanalíticos (GREP) - Belo Horizonte, MG

 

 


RESUMO

A autora aborda o tema sobre a transmissão da psicanálise e a formação do analista, o qual tem nos instigado bastante ultimamente devido ás intensas discussões impostas pelas tentativas de regulamentação da psicanálise. O trabalho é resultado de um estudo em cartel sobre o mesmo tema. A partir do texto de Lacan “Proposição de 9 de outubro de 1967”, propôs-se pensar sobre a estrutura de uma instituição psicanalítica e seus impasses. Lacan discute nesse texto a proposta do passe com a finalidade de teorizar sobre o surgimento de um analista na lógica do final de análise. Após Freud, houve uma padronização da análise, assim como uma burocratização da instituição psicanalítica, o que poupou o trabalho de lidar com o real. No lugar de um rigor teórico, criou-se regras cada vez mais rígidas, padrões pré- estabelecidos, que longe de fazer surgir o sujeito do inconsciente, o fazia sumir, ou ainda, consumir, consumir tempo, dinheiro... Lacan, em sua “Nota italiana”, diz que o final de análise é marcado por um saber no real, que “ não é nada fácil, pois é preciso inventá-lo, ou seja, fazer ali algo com.

Palavras-chave: Transmissão, Formação, Real, Passe.


 

 

Este trabalho é produto de um estudo em cartel sobre o tema da transmissão e formação do analista, o qual tem sido intensamente debatido nas comunidades psicanalíticas a partir das discussões impostas pelas tentativas de regulamentação da psicanálise.

O texto que norteia o trabalho desse cartel é a “Proposição de 9 de outubro de 1967” de Lacan, em sua duas versões, cujo teor nos faz pensar sobre a estrutura de uma instituição psicanalítica e seus impasses. O passe foi aí proposto com a finalidade de teorizar sobre o surgimento de um analista na lógica do final de análise, o qual, após Freud, não havia sido tratado com o devido rigor. No lugar desse rigor teórico, criou-se regras cada vez mais rígidas, padrões preestabelecidos, que longe de fazer surgir o sujeito do inconsciente o fazia sumir, ou melhor, consumir, consumir tempo, dinheiro... Com a padronização na análise e a burocratização na instituição, poupa-se o trabalho de lidar com o real. Vera Polo, em seu texto “Alguns apontamentos sobre a relação formação- escola”, distingue, a partir de Lacan, duas maneiras de conceber esse real: a primeira, o eqüivaleria ao incurável do sintoma (o que se extrai da análise- o sinthome); a segunda, o definiria como o objeto a, o mais de gozar que não faz laço social. Portanto, estamos diante de um “osso duro de roer”, que muitas vezes é substituído por um “filé” para facilitar o trabalho, ou melhor, para não dar trabalho. O resultado disso é uma estagnação e cristalização desses padrões e das posições instituídas, elidindo qualquer fundamentação ética. Lacan, na “Nota Italiana”, diz que o final de análise é marcado por um saber no real, que “não é de modo algum fácil. Pois é preciso inventá-lo” (p.53), ou seja, fazer aí algo com. Sabemos que a verdade é não toda, sempre resta algo sobre o qual não se pode dizer, sendo justamente com esse indizível que vamos lidar no final de uma análise, senão cairemos em uma infinita cadeia que nos levará a uma análise infinita. No final, o que resta é o ato.

Em sua proposição, Lacan parte do seguinte princípio: “o analista se autoriza por si mesmo”. O que se extrai de uma análise é um analista. O final da análise é marcado por essa passagem de analisante à analista. A Escola será testemunha dessa garantia não só através de seu ensinamento, mas também por meio da instauração de uma “comunidade de experiência”. Entende-se por essa experiência a própria experiência de análise, ou seja, a psicanálise tomada em intensão, que deverá ser verificada pela escola em sua função de extensão, ou seja, de transmissão. Lacan propõe então o passe na tentativa de fazer uma mostração de que daquela análise se retirou um analista. Assim, não se exclui a garantia da escola, porém ele diz que não é com essa garantia que o analista opera.

O analista advindo dessa passagem é a queda, o dejeto, mas não qualquer um. Daí ser somente o analista, não qualquer um, que se autoriza por si mesmo. Para tanto, não basta se saber dejeto para o outro, há que se entusiasmar com a transmissão. Lacan, na Nota Italiana, diz que se não houver entusiasmo, “pode ser que tenha havido análise, mas analista, não há nenhuma possibilidade”. (p.52) Assim, tornar-se analista é se dispor à transmissão com todos seus percalços, dentro ou fora de uma instituição psicanalítica.

E quanto ao ensino da psicanálise? Pode-se pressupor a existência de um enodamento entre o ensino e a transmissão representados no círculo de Euler. A zona de interseção entre estes dois campos, criada a partir desse nó, aponta para uma estrutura de corte. É dessa estrutura que se extrai o estilo, com o qual o analista opera e pode inventar, ir além da cola, da identificação com os ideais. A Escola de psicanálise encampa esses dois registros, do ensino e da transmissão, pois ela apresenta uma parte formal, de ficção e outra real, de pura falta, as quais se mesclam para deixar cair o objeto a, objeto causa de desejo.

Lacan diz que o ensino da psicanálise não pode ser um saber pré- digerido. E faz a seguinte pergunta: “Como ensinar aquilo que a psicanálise nos ensina?”( em Direção do tratamento e os princípios de seu poder) Marco Antônio Coutinho Jorge, em seu artigo “Jacques Lacan e a estrutura da formação psicanalítica”, comenta a afirmação contida nessa pergunta de que há um ensino que se passa no âmbito da experiência psicanalítica, o que levou Lacan a dizer que toda análise é didática. Assim, se o ensino também se dá aí, há que se levar em conta a transferência e, conseqüentemente, o sujeito suposto saber que a concebe. Freud diz que o que se aprende na transferência jamais se esquece.

Na proposição, em sua primeira versão, encontramos uma longa explanação sobre o surgimento do sujeito suposto saber. A implicação de um significante a outro qualquer no matema da transferência tem como efeito o sujeito. Assim, o sujeito é o significado da pura relação significante, ou seja, ele está aí suposto sob a barra (sub-posto). O saber também não é menos suposto que o sujeito e representa a sua própria cadeia inconsciente.

S —>Sq

$

Suposto
——————
Sujeito...Saber

O analista ocupa uma função ternária com a introdução desse significante qualquer. O saber sobre o inconsciente implica um empreendimento do analisante. Ao analista, cabe colocar-se como puro desejo de saber. Ele não pode se identificar com o sujeito suposto saber. O lugar do não- saber é central, pois permite o deslizamento da cadeia de significantes e torna possível a emergência do saber do Outro. É com o não- saber que o analista opera.

No final de análise, o analisante se sabe pura falta e puro objeto. Com o passe, Lacan quer provar se realmente surgiu o desejo do analista, ou seja, se no momento da destituição subjetiva, “advém o desejo que permite ocupar o lugar do des-ser, justamente por querer de novo operar o que implica de separação (.....) o agalma”.(p.15) Ele tenta romper com a hierarquia das posições pré- estabelecidas, questionando a passagem de analisante à analista. Foi uma maneira que encontrou parta lidar com o real do final de análise e sua operação na instituição. Porém o passe do inominável acaba muitas vezes por se confundir com o passe da nomeação. O AE, assim denominado aquele que fez o passe, se eqüivaleria ao S(A barrado), porém se a nomeação prevalecer no passe, se não houver o passe proposto, este poderá retroceder ao I(A). Foi o mesmo que sucedeu com os analistas da IPA, que na ânsia de seguir cegamente os passos de Freud, colaram no pai ideal. Lacan dissolveu o passe, e portanto nos passou um im- passe que continua até hoje rondando os porões da psicanálise.

 

BIBLIOGRAFIA


LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 937p.         [ Links ]

_________. Nota Italiana, p.50-53. In: Documentos para uma Escola II- Lacan e o Passe- Publicação da Letra Freudiana- Escola, Psicanálise e Transmissão, Rio de Janeiro, ano XIV, n.0’.
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_________. Proposição de 9 de outubro de 1967- 1a versão, p.7-19. In: Documentos para uma Escola II- Lacan e o Passe- Publicação da Letra Freudiana- Escola, Psicanálise e Transmissão, Rio de Janeiro, ano XIV, n.0’.         [ Links ]

_________. Proposição de 9 de outubro de 1967- Proposição sobre o psicanalista da Escola, p. 29-42. In: Documentos para uma Escola- Publicação da Letra Freudiana- Escola, Psicanálise e Transmissão, Rio de Janeiro, ano1, n.0.         [ Links ]

JORGE, M. A. Jacques Lacan e a estrutura da formação psicanalítica.         [ Links ]

POLO, V. Alguns apontamentos sobre a relação formação- Escola. Belo Horizonte, abril de 2002.         [ Links ]

 

 

NOTA

*Psicanalista, sócia efetiva e coordenadora do Instituto de Formação e Estudos complementares do Grupo de Estudos Psicanalíticos (GREP) - Belo Horizonte, MG

 

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