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versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.6  Salvador  2004

 

ARTICULAÇÕES

 

Adoecimento psíquico em mulheres portadoras do vírus HIV: um desafio para a clínica contemporânea

 

 

Joana Finkelstein Veras I; Milene Mabilde Petracco II

 

 


RESUMO

Este trabalho objetivou realizar um entendimento do sofrimento psíquico de mulheres portadoras do vírus HIV. Sustentamo-nos em nossa prática, em textos psicanalíticos, em estudos sobre AiIDS e sobre os significados da morte, considerando a representação social da epidemia e suas repercussões na subjetividade. Destacamos o adoecimento psíquico das pacientes expresso através do sofrimento melancólico, relacionado a aspectos inconscientes da sexualidade, trazidos à tona frente ao diagnóstico, à confrontação com o tema da morte e á forma de subjetivação da sociedade contemporânea.

Palavras-chave: Vírus HIV, Adoecimento psíquico, Melancolia, Sexualidade feminina, Clínica contemporânea.


 

 

INTRODUÇÃO

O interesse por escrever sobre este tema partiu de diversos questionamentos e reflexões que foram surgindo a partir da escuta de pacientes, principalmente mulheres, que convivem com o HIV. Embora cada pessoa tenha sua singularidade e signifique a presença do vírus em seu corpo de acordo com a mesma, muitos dos conflitos manifestos nos relatos evidenciam questões em comum, principalmente no que se refere à confrontação com o tema da morte e dos sentimentos descritos pela vivência de ter o vírus da Aids, muito freqüentemente relacionados a características de estados melancólicos.

Tristeza profunda, sentimentos de vazio, auto- estima muito baixa, recriminações pessoais... esses foram os conteúdos que mais apareceram nos atendimentos e, cada vez mais, se fizeram presente algumas questões: por que esse padrão de queixas, esse sofrimento tão intenso? As informações sobre a Aids estão ai... não tem cura mas é uma síndrome controlável, o tratamento oferecido é eficaz! Por que essa depressão tão profunda?, É como se a vida se resumisse ao fato de ser soropositiva, (o que era expressado pelas pacientes em um tom e com feições como se o mundo devesse a elas uma postura de pena por sua situação).

Não queremos responder a essas perguntas de forma conclusiva e sim pensar sobre elas, tentando clarear o que foi trazido por essas mulheres que atendemos. E é isso que tentaremos fazer neste artigo, com o objetivo de destacar que a realidade do HIV se coloca como um desafio na clínica contemporânea.

 

CONTEXTUALIZAÇÃO SOCIAL DA AIDS

Desde seu surgimento, a epidemia da Aids tem passado por várias transformações. Deixando de lado o status de doença relacionada a determinados comportamentos de risco, a relação heterossexual, atualmente, é uma das formas mais importantes da transmissão do HIV. O número de mulheres em idade fértil infectadas pelo vírus representou 85,5% dos casos de Aids na população feminina no período de 1980 - 2002. (Coordenação Nacional de DST/Aids, 2003).

Ao mesmo tempo, houve também, uma significativa mudança no tratamento oferecido à população portadora do vírus, tornando o Brasil um dos países de referência mundial nesse sentido. Atualmente, 100% das pessoas que preenchem os critérios estabelecidos pelo Ministério da Saúde têm acesso ao tratamento com os medicamentos anti-retrovirais, através do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso possibilitou aumento significativo na qualidade de vida dos indivíduos portadores do HIV (Coordenação Nacional de DST/Aids, 2003).

A representação social da Aids ainda continua muito carregada de preconceitos. Inicialmente, falava-se na existência de grupos de risco, em que seus supostos componentes seriam “promíscuos ou doentes”, tornando a Aids uma doença do outro. Essa negação influenciou a dimensão que tomou a epidemia, pois ao invés de prevenção o que se fazia era segregação, como se os ditos grupos de risco não pudessem ter contato com os ditos grupos sem risco. Atualmente, o peso dessas crenças continua a repercutir, embora as informações e a conscientização em relação ao tema estejam mais claros. Sexo e drogas continuam sendo temas tabus na contemporaneidade e, psiquicamente, o peso de carregar um estigma de promíscuo é devastador, pois leva à confrontação com aspectos inconscientes da sexualidade, com a castração, a proibição, questões narcísicas que se não forem elaboradas poderão aprisionar o sujeito num sofrimento sem fim.

 

SOBRE O HIV E SUAS REPERCUSSÕES PSÍQUICAS

Em relação à questão da morte, parece evidente que um diagnóstico positivo para o vírus HIV evoque esse tipo de fantasias e pensamentos, afinal, além da Aids ser uma epidemia mundial que já dizimou muita gente, seu significado passa por outro tipo de morte: a psíquica. Os acontecimentos que marcaram a história da epidemia evocam a morte, vivência que o sujeito desconhece, ou conhece através da experiência do outro, não sendo um registro do que se passou consigo mesmo. Freud (1988/1915), em seu texto sobre a morte colocou que “é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo , podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores” (p.327). Dessa forma, pode-se dizer que a angústia presente nos pacientes soropositivos também tem relação com essa confrontação com o desconhecido, que se mostra antecipadamente durante a vida e que quando for conhecido não haverá seguimento da mesma. Por isso é que Freud coloca que nunca estaremos suficientemente prontos para aceitar morte. No inconsciente, estamos convencidos de nossa imortalidade, pois vivemos na impossibilidade de pensar e de falar sobre uma experiência pela qual nunca passamos, colocando-nos frente a nossas limitações, desafiando nossa onipotência.

O preconceito social que perpassou as duas décadas da existência do HIV ainda perdura, aumentando o sofrimento de quem, além de ser acometido por um vírus que mata o que mantém a vida em nossos corpos, as defesas, sofre sentindo-se humilhado por ser considerado promíscuo, sujo, descuidado. No entanto, é muito freqüente escutar das mulheres que vivem com o HIV que, mesmo tendo sua família, companheiro e amigos como aliados, aceitando-as sem preconceitos, elas sentem-se “desprezíveis e nojentas”.

Além disso, a presença da morte aparece, muitas vezes, em seus relatos como sendo um fato que ocorrerá iminentemente, tirando-lhes a possibilidade de cuidar de seus filhos, os quais aparecem como o maior motivo para a continuidade da vida: “eu só não tiro a vida por causa deles, porque sei que ninguém vai cuidar deles melhor do que eu”. Uma gestante que não se tratava antes da gravidez, tendo suas defesas (CD4) num nível muito baixo refere “foi com a gravidez que eu tive força para me tratar, ela veio para me acordar”. Percebe-se nisso uma complementar contradição, vida e morte convivendo juntas. A morte, na presença do HIV e a vida, na capacidade de procriar e cuidar, aparecendo como a prova de que se pode viver e dar vida, mesmo com a sombra da morte . A esse respeito, Cotovio (1992) afirma que o paradoxo vida e morte que passa a fazer parte da vivência das mulheres que convivem com o HIV geram enorme angústia: “a representação da mãe, enquanto mulher que dá a vida, opõe-se aquela de mulher perigosa” (p.260). Essas duas representações coabitam no inconsciente e a doadora de vida pode transformar-se em doadora de morte.

Como já mencionado, sabe-se que um diagnóstico reagente para o vírus HIV e mesmo o desenvolvimento da Aids não é mais considerada uma condição física terminal, devido aos avanços médicos, principalmente em relação à medicação antiretroviral, que inibe significativamente a ação do vírus no corpo. Pode-se dizer que, se uma pessoa adere bem ao tratamento médico, o que é facilitado em grande parte pela elaboração psíquica da presença do HIV em sua vida, ela está frente a uma doença crônica controlável, tendo uma expectativa de vida longa. Porém, o imaginário social e a simbologia que o HIV desperta tornam plausível a exposição do entendimento de Kübler- Ross (1998), quem dividiu, através de seus estudos, quatro etapas de reações típicas de pacientes que tomam conhecimento de uma doença terminal, sendo vistos como partes do processo natural de quem recebe uma notícia de diagnóstico clínico grave.

O primeiro estágio caracteriza-se pela negação e isolamento, no qual a pessoa tem uma tendência a não aceitar que o diagnóstico é real. Ela serve “como um para- choque depois de notícia inesperadas e chocantes, deixando que o paciente se recupere com o tempo, mobilizando outras medidas menos radicais” (Kübler- Ross, 1998, p. 44). A negação, geralmente, é uma defesa temporária, não permanecendo por muito tempo e sendo logo substituída por uma aceitação parcial. É claro que a intensidade da defesa e sua duração dependerá muito de cada paciente, de acordo com sua estrutura psíquica e da forma como lidou com suas perdas ao longo da vida. No contato com pacientes soropositivas, foram freqüentes os relatos de mulheres que não fizeram o pré- natal, mesmo cientes de sua condição, “por medo dos efeitos dos remédios”; ou mesmo tendo realizado o tratamento não revelaram a quase ninguém de seu diagnóstico, trazendo a fantasia de que a não revelação evitaria de confrontá-las com a realidade de possuir o vírus. Houve situações, menos comuns em contatos com essas pacientes, em que uma aceitação parcial ficou evidente. Uma gestante trouxe situações conflituosas de sua vida que não se restringiam ao HIV, fazendo um balanço de sua vida e de suas escolhas e reflexões do tipo “a vida continua....” Observa-se que em relação a um diagnóstico de HIV, as pacientes tendem a demorar mais a aceitar a realidade em relação a outras doenças, já que a contaminação está permeada por rígidas construções sociais quanto ao que significa uma pessoa ter o vírus da Aids. Ou seja, elas deparam-se com a vergonha, humilhação e discriminação em relação aos outros e a si mesmas e são colocadas cara a cara, principalmente, com sua vulnerabilidade frente a suas atitudes sexuais, tema tão cheio de tabus em nossa contemporaneidade. “Eu sempre fui certinha, tive poucos homens em minha vida, não posso ter pegado isso”; “eu achava que quem tinha eram pessoas da vida ou que usavam drogas”.

Geralmente, quando a negação não sustenta mais a realidade do paciente e ele começa a aceitar a novidade do diagnóstico, surge a pergunta: “Por que eu?”. Segundo Kübler Ross (1998) a reação mais freqüente à falta de respostas para esse questionamento é a raiva, segundo estágio do processo de aceitação da doença. Revolta, irritação, inveja e ressentimentos são manifestações muito comuns, as quais são direcionada para os mais distintos objetos (família, profissionais de saúde, amigos, etc). Podemos dizer que quase unanimemente, as pacientes em algum momento, trouxeram esses sentimentos, referindo “eu não consigo me controlar, é uma irritação constante”; “meu filho e meu marido não tem nada a ver e quando vejo estou descontando neles” “me irrita até a voz das pessoas”. É como se fosse um extravasamento da raiva por não poder continuar a vida em seu ritmo natural, por questionar se os planos feitos até então poderão ou não ser concretizados, por ter que passar a depender de acompanhamento médico e remédios para o resto da vida.

Depois da revolta, é comum que surja um conjunto de reações que caracterizam o estágio da barganha. Há uma tentativa de negociação, seja com Deus, com os médicos ou com a família, para que o paciente possa “comportar-se” e fazer o tratamento à risca. É como se ele tentasse entrar em um acordo para que não seja ele o único que perde. Em relação ao HIV é muito comum que surjam negociações ligadas ao recebimento de cesta básica e ao pagamento de passagens para os meios de transporte até a unidade de tratamento (no que se refere aos pacientes atendidos pelo SUS). Isso porque a maioria dos pacientes soropositivos vivem em situação sócio- econômica muito precária. Psiquicamente, essa é uma questão muito delicada, pois pode acabar indo ao encontro de fantasias dos próprios pacientes relacionadas a serem pessoas dignas de pena por incapacidade de fazerem-se responsáveis por seus problemas.

O quarto estágio caracteriza-se por um estado de depressão, que desenvolve-se quando não há mais como negar a doença, seja pelo aparecimento de sintomas, pelo constante contato com o tratamento médico e/ou medicamentoso ou por outros fatores que confrontem a pessoa com a realidade fatual da situação. Assim, “seu alheamento ou estoicismo, sua revolta e raiva cederão lugar a um sentimento de grande perda” (Kübler Ross, 1998, p. 91). As perdas podem ser diversas, conscientes ou inconscientes, concretas ou fantasiosas. Entre as trazidas pelas pacientes aparecem, principalmente a nível inconsciente, a perda da possibilidade de obter prazer através do sexo, a da capacidade de cuidar dos filhos e de procriar, a do status social, ou seja, questões ligadas ao feminino. Perdas conscientes referem-se principalmente à dependência em relação aos remédios (perda da saúde). A confrontação com esta realidade pode levar ao desenvolvimento de um quadro depressivo mais sério, a uma vivência de melancolia profunda, na qual nos deteremos mais adiante.

O quinto e último estágio proposto pela autora é o da aceitação. Como ela trabalhava com doentes terminais, coloca que, essa etapa é atingida por aqueles que tiveram um tempo suficiente para elaborar a situação, externando seus sentimentos e aceitando-os ao longo de seu desenvolvimento. Ou seja, aqueles que não morreram antes da elaboração. No caso dos pacientes com o vírus da Aids, essa perspectiva é mais otimista, pois atualmente, quem consegue aderir ao tratamento tem longa perspectiva de vida, o que possibilita uma elaboração gradual. Acreditamos que o apoio psicológico neste processo pode ser uma brilhante possibilidade para ressignificar a convivência com o HIV, construindo através da fala, da escuta e da relação transferencial novos sentidos para a vida através da vivência de ser portador do vírus HIV.

Quanto à melancolia, Moreira (1998) coloca, através de sua prática, que a reação a um diagnóstico positivo para o HIV costuma caracterizar-se por “um fundo mergulho na depressão” (p.25), mesmo quando a pessoas é assistida por profissionais preparados no manejo da comunicação de resultados. Sem dúvida, a repercussão psíquica desse diagnóstico ainda é devastadora. Uma paciente em profundo estado melancólico traz “essa doença dá na cabeça”, depoimento este que vai ao encontro de muitos outros referentes à mudanças na vida após o conhecimento do diagnóstico, mesmo depois de anos: “desde que eu soube meus planos foram todos por água a baixo, nada tem um porque”; “eu tenho tudo para ser feliz, trabalho, um marido que gosta de mim, uma família que me apoia, mas eu não consigo tirar esta irritação de dentro de mim, essa angústia que dá”.

Freud (1988/ 1917), em seu texto “Luto e Melancolia”, traz uma importante definição e diferenciação entre os significados de luto e melancolia. Entre os traços principais desta última aparecem um intenso desânimo ligado a uma considerável diminuição e até uma cessação de interesse pelo mundo, a perda da capacidade de amar, a inibição de atividades, a baixa da auto- estima, que se expressa em manifestações de auto- recriminação e freqüentes pensamentos delirantes de punição.

A auto- punição aparece de forma muito intensa no depoimento das pacientes. Parece que elas se punem constantemente por terem se infectado, o que se expressa através de suas atitudes tomadas perante a vida após o diagnóstico. “Entrei de cabeça nas drogas e comecei a trabalhar na noite, não tive cabeça para me tratar”. “Soube durante a gestação e tirei meu filho (...) noto que estou me afastando cada vez mais do meu filho mais velho”. Cabe ressaltar que a maioria das pacientes que atendemos encontravam-se em estado físico estável, muitas nem precisando tomar medicação antiretroviral, ou seja, a morte concreta não estava próxima. No entanto, fica claro que o sentimento predominante é de “morte em vida”, através de seus relatos de exposição a situações, as quais levam a pensar em um gradual suicídio psíquico.

Em relação ao luto, Freud (1988/ 1917) o define como tendo as mesmas manifestações que a melancolia a não ser pela preservação da auto- estima. O luto é vivenciado durante um período de tempo frente à perda significativa de um objeto, sendo sentida de forma consciente pela pessoa, diferente da melancolia, na qual o objeto perdido é inconsciente.

Certamente, qualquer notícia de doença gera um processo de luto, pois há ai uma perda concreta, a da saúde, da vitalidade, além de que o paciente passa a depender para a vida toda de cuidados médicos e de remédios. Porém, a escuta de mulheres soropositivas mostrou que seu sofrimento vai além do luto pela perda de um objeto concreto, pois além de seus relatos refletirem que a auto-estima sofreu grandes prejuízos, o objeto perdido, o que falta é nebuloso, não tem forma, porque é como se fosse tudo, como se toda a vida dessas mulheres não tivesse mais sentido a não ser pelo fato de sofrer por sua condição, ou seja, seu sofrimento é também da ordem do inconsciente.

No luto, verificamos que a inibição e a perda de interesse são plenamente explicadas pelo trabalho do luto no qual o ego é absorvido. Na melancolia, a perda desconhecida resultará num trabalho interno semelhante, e será, portanto, responsável pela inibição melancólica (...) No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego. O paciente representa seu ego para nós como sendo desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível; ele se repreende e se envilece, esperando ser expulso e punido. (Freud, 1988/1917, p.168).

Ainda neste texto, Freud afirma que, freqüentemente, as mais violentas auto- acusações de um melancólico não se dirigem somente a ele, mas sim, com modificações, a alguém que o paciente ama, amou ou deveria amar, e além disso, “derivam dos prós e dos contras do conflito amoroso que levou à perda do amor” (Freud, 1988/1917, p.170). Assim, Freud entende que o comportamento dos pacientes se torna mais claro. A forma queixosa e maçante dos mesmos se colocarem evidenciam que eles não se envergonham de mostrar seu sofrimento, pois tudo o que dizem é, na realidade, destinado a outra pessoa. Além disso, não se mostram submissos e humildes frente aos outros, dando a impressão de sentirem-se constantemente desconsiderados e injustiçados.

Muitos relatos refletem esse funcionamento inconsciente, nos quais fica claro uma auto- recriminação, porém sempre atribuída a alguém ou a algo de fora delas, como se o mundo tivesse que gratificá-las por sofrerem tanto, sem sentirem-se satisfeitas com nada que lhes é oferecido pelas pessoas ao seu redor. “eles dizem que eu não sou a mulher ideal para ele, eles vão ver, quando o bebê nascer eu não vou deixar eles chegarem perto”; “eu não deixo meu filho e meu marido usarem o mesmo sabonete que eu, nem os mesmos talheres, mesmo sabendo que não passa e é uma coisa minha, eu sei que meu marido não se importaria de usar as mesmas coisas que eu”.

O processo psíquico que leva a um estado de melancolia pode ser entendido através do tipo de escolha objetal realizada, que se deu através da ligação da libido a uma pessoa. Um posterior desapontamento em relação a essa outra pessoa amada destruiu a relação objetal, através da impossibilidade de deslocar a libido para outro objeto, voltando-a para o próprio ego. Assim, ocorre uma identificação do ego com o objeto abandonado, havendo a transformação de uma perda objetal para a perda do ego. Diferente do que acontece quando um psiquismo consegue investir em diferentes objetos depois de ter se frustrado com outros anteriores, o melancólico não se viu possibilitado a fazer isso, pois desenvolveu uma forte fixação em relação ao objeto amado, além de que sua catexia objetal teve pouco poder de resistência para seguir investindo. Daí, decorre a inibição melancólica (Freud, 1988/1917).

Sobre essa inibição depressiva pela perda do objeto, Bleichmar (1983) coloca que esta não se restringe ao objeto perdido, estendendo-se a todos os demais, devido ao fato de que o desejo em relação ao primeiro acaba abarcando todo o espaço psíquico do sujeito. Há uma fixação a esse desejo e ao mesmo tempo ele é visto como irrealizável.

Ao falar em desejo, fixação, catexia libidinal não haveria como não nos remetermos ao narcisismo. Parece que os estados melancólicos estão estreitamente associados a um tipo narcisista de escolha objetal. Esta suposição de Freud continuou sendo revisada e pensamos que é atual e coerente. Vemos na escolha objetal narcisista uma regressão ao narcisismo, na qual a perda do objeto amado constitui uma proveitosa oportunidade para que a ambivalência nas relações amorosas se faça efetiva. É como se na intensa auto- punição do melancólico há uma vingança em relação ao objeto original e essa tortura ao outro através de sua doença expressa a hostilidade para com ele, a qual não pôde ser expressada de outra maneira. Inicialmente, o objeto era visto como ideal. Após a frustração em relação ao mesmo seus atributos são tomados como sendo do próprio ego.

Tomando os depoimentos das mulheres portadoras do HIV que escutamos e pensando no tipo de atributos culturais que dão a uma mulher sua valorização fazemos uma relação de seu sofrimento com estados melancólicos. O ideal feminino (subjetivo e social) está ligado ao papel materno, à beleza, ao cuidado, ao pudor, à sua capacidade de ter prazer e dar prazer apesar das dificuldades. No momento em que estas mulheres se vêem frente a um vírus de transmissão sexual por falta de cuidados (uso do preservativo) vêem destruída todas as possibilidades de ser uma mulher completa. Impõe-se a proibição de ser mãe, ou pelo menos, restrições no papel materno (pelo risco que se tem de transmissão através da gestação e da amamentação), de ter prazer genital sem correr o risco de prejudicar sua saúde e a saúde do outro, de ser vista pelos outros como alguém pudorosa. Essas perdas fazem a mulher reeditar de forma drástica sua vivência edípica, na qual foi percebida uma falta (do falo) e uma proibição (obtê-lo através de seu pai ou substituto paterno). A repercussão dessa vivência foi recalcada por culpa da hostilidade sentida pela figura materna, que é seu objeto original, ou seja, o ideal. Agora, com a presença de um vírus que mata em seu corpo, a mulher tem o desafio de manter em equilíbrio tudo o que retornar da vivência de castração.

Porque falar em reeditar a vivência edípica de forma drástica? Este processo psíquico pressupõe uma re- vivência das experiências anteriores ao Édipo, as quais impuseram perdas que foram ressignificadas com o mesmo. Essas perdas (narcísicas), como o desmame, o controle esfincteriano, a castração, enfim, gradativas proibições, foram confrontando o sujeito com suas fantasias de onipotência e demandando do mesmo a necessidade de investir libido em novos objetos (Falcão, Veras, Macedo, 2002). Dessa forma, a presença do HIV traz à tona todas estas questões, porém, com um colorido mais intenso, pois confronta o sujeito concretamente com a sexualidade “mau praticada”. A dualidade feminina “puritana x promíscua”, com a qual toda mulher convive e ressignifica a cada momento, para a mulher soropositiva passa a ter uma outra conotação. É como se o HIV simbolizasse a confirmação do pólo da mulher promíscua, o que acaba sendo confirmado pela representação social da feminilidade.

Labaki (1998) destaca outra perda importante a ser elaborada na vivência de ser soropositivo, que também tem relação com o narcisismo. A autora coloca que a Aids resgata a condição humana de desamparo, por evocar o tema da morte e o medo da perda do amor do outro, sem o qual não se é sujeito. Esse medo se refere às proibições impostas aos desejos pulsionais da criança como condição de ter o amor de quem proíbe. O HIV pode simbolizar para o sujeito a confirmação da não aceitação dessas proibições, colocando em risco o apreço por parte do outro. Além disso, o suposto desafio às proibições (ataque ao outro) traz culpa, decorrente dos impulsos mais primitivos do sujeito, entre eles, o da própria morte do objeto: “O medo da morte, que nos domina com mais freqüência do que pensamos, é, por outro lado, algo secundário e, via de regra, o resultado de um sentimento de culpa” (Freud, 1988/1915 p.336).Isso pode ser retratado através do relatos das pacientes que sentem-se “nojentas e sujas”, afastando-se muitas vezes das pessoas de seu convívio. Pode-se dizer que elas sentem-se culpadas e temerosas de destruir o outro com sua condição. Cotovio (1992) traz uma analogia que faz pensar em outra vivência de desamparo: o corpo do bebê é protegido durante o início da vida por anticorpos maternos e o portador do vírus da Aids acaba sendo levado a essa situação primeira, na qual suas defesas imunológicas não reagem mais.

Birman (2000), ao afirmar que vivemos em uma cultura do narcisismo, destaca que, na contemporaneidade, o eu encontra-se em posição privilegiada na construção da subjetividade, diferente dos primórdios da modernidade, em que noções de interioridade eram mais valorizadas. Entra aí a questão do corpo, que é o lugar no qual são colocados os atributos ideais do que nos vende o mundo moderno. Este corpo, torna-se então, o maior símbolo do autocentramento em que vivemos. O vírus HIV se instala no corpo e ataca o que nele tem de vida (as defesas), ou seja, não só as fantasias inconscientes da sexualidade são colocadas em questão, mas também o imaginário social destinado ao corpo e sua importância na construção da subjetividade. Pode-se pensar ai que o sujeito passa a ter que conviver com um corpo desarmado frente a uma sociedade que coloca o mesmo como sendo a fonte de força e poder. Dessa forma, o corpo aparece, mais uma vez na história do adoecimento psíquico, como lugar que expressa as angústias e o sofrimento do ser humano.

 

CONCLUSÕES – POSSÍVEIS DESTINOS...

Considerando as repercussões psíquicas de um resultado reagente para o vírus da Aids, através do contato com mulheres nessa situação, e levando em conta o imaginário social sobre a construção da subjetividade feminina e sobre a morte ou tudo o que remeta a ela, fica mais claro de entender o sofrimento melancólico presente nos relatos das pacientes.

Os pontos discutidos neste artigo apontam, de forma resumida, para algumas das questões que a realidade do HIV traz como desafio para a prática clínica, sendo que muitos ficaram em aberto, trazendo a possibilidade de continuar abrindo o leque de reflexões e de re- pensar sobre o já pensado.

O impacto da Aids na subjetividade é um dos desafios da clínica contemporânea. A angústia presente nos pacientes soropositivos, que traz claramente a reflexão pessoal sobre os temas da morte, vulnerabilidade, onipotência... pode ser ressignificada através da escuta psicológica, seja ela em tratamentos prolongados como a psicoterapia ou mesmo em modalidades de atendimento mais focais, como os que ocorrem dentro de um hospital. Acreditamos também que o trabalho com grupos é muito benéfico, pois possibilita a troca de experiências de pessoas que se sentem marginalizadas pela sociedade e que freqüentemente trazem a dificuldade de sentirem-se entendidos por quem não está em sua situação. A auto- ajuda e a possibilidade de escutar depoimentos com preocupações semelhantes às suas fortifica o ego através da identificação, o que torna essas trocas muito terapêuticas.

 

BIBLIOGRAFIA

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NOTAS

I Psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS
II Formanda pela Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul -PUCRS

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