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versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.6  Salvador  2004

 

ARTICULAÇÕES

 

James Joyce e suas epifanias

 

 

Lúcia Azevedo

Espaço Moebius - Bahia

 

 


RESUMO

A noção de epifania é ponto central da concepção artística de James Joyce a respeito da literatura e bordeja toda a sua produção literária. São feitas considerações a respeito deste conceito e de sua técnica, com apresentação de alguns exemplos e pontuações a propósito de uma possível leitura psicanalítica.

Palavras-chave: James Joyce, Epifanias.


 

 

O gênio literário de James Joyce marcou a história da cultura ocidental, por seu modo completamente novo e singular de tratar a palavra e de buscar, na escrita, a verdade absoluta dos fatos. “Ulysses”, uma de suas obras magistrais, foi considerado pela crítica especializada o maior romance escrito em língua inglesa, em todo o século XX. “Epifanias” corresponde a uma sua proposta técnica de escrita e constitui objeto de estudo e debate por parte de literatos e aficcionados da arte. Seu caráter singular, seu feitio de surpresa e non-sense despertaram a atenção da Psicanálise, através da abordagem feita por Lacan no Seminário XXIII, “Le Sinthome”.

Em “Stephen Hero” Joyce diz que suas epifanias correspondem a: “Uma manifestação súbita, quer na vulgaridade do discurso ou do gesto, ou em uma fase memorável da própria mente. Ele acreditava que cabia ao homem de letras registrar estas epifanias com cuidado extremo, visto que elas mesmas são os momentos mais delicados e evanescentes”. 1 2

Epifania é um termo de origem grega e quer dizer “manifestação divina”. Epifania é também uma palavra forte na história do cristianismo; é o episódio pelo qual, aos pastores, é revelada a natureza messiânica do menino Jesus, nascido na manjedoura.

A biografia de James Joyce revela a forte influência do catolicismo, dos jesuítas e da igreja da Irlanda em sua trajetória de vida. O “Retrato do Artista Quando Jovem” pontua, o tempo todo, as querelas do jovem Stephen Dedalus com os dogmas e normas da igreja católica; e revela, ao lado disso, todo o vigor com que o cristianismo moldou a sua vida. De passagem, quero lembrar que este é um romance autobiográfico e seu personagem central é o adolescente Stephen Dedalus. “Stephen Hero”, que mencionei a cima, é uma outra obra de Joyce, também autobiográfica e considerada precursora do “Retrato do Artista Quando Jovem”.

Uma das características mais marcantes da obra de Joyce é seu estilo de dar aos pequeninos acontecimentos corriqueiros do dia a dia o estatuto de fatos heróicos e triunfais. Assim é “Ulysses”. “Ulysses” é a odisséia de um dia comum de 24 horas, ou melhor, das 20 horas de um dia comum na vida de Mr. Bloom. Um dia rotineiro, onde idéias, pensamentos, angústias, dúvidas desfilam de modo fantástico, descrito o mais extensa e detalhadamente possível, assumindo o feitio épico de grande odisséia, em que Mr. Bloom é elevado à categoria de herói do cotidiano. Talvez o próprio título “Ulysses” seja uma grande epifania, como o é todo o romance.

As epifanias são, então, como Joyce as desenhou no “Stephen Hero”: “manifestações súbitas, quer na vulgaridade do discurso ou do gesto, ou em uma fase memorável da própria mente”...“São os momentos mais delicados e evanescentes”. 1 2 E para dar conta disso, dessas manifestações, desses momentos tão delicados e evanescentes, ele se propunha normas estéticas rígidas, que buscassem dizê-los do modo mais absolutamente absoluto. Buscava cercar, intensa e exaustivamente, todos os fenômenos psicológicos, históricos, factuais para que revelassem uma verdade total e derradeira. “A literatura deve ser a vida; lembro-me que uma das coisas que não podia aceitar em minha juventude era a diferencia entre a vida e a literatura”.2 As epifanias seriam, pois, manifestações divinas, expressões absolutas desses momentos mais delicados e evanescentes. E a epifania cristã não foi a manifestação divina daquilo que parecia um episódio tão insignificante, quanto seja um bebê nascido na manjedoura? A epifania foi a revelação de uma verdade, na ótica do cristianismo.

As epifanias escritas e deixadas por ele, assim intituladas, parecem ser em nº de 71. Vou chamá-las de oficiais. Porque, na verdade, sua obra, em todo o conjunto e mesmo em todo o seu percurso é considerada pelos críticos como uma “tessitura de epifanias”. Aquelas que ele assim denominou, correspondem a anotações de fatos comuns, cenas do dia a dia, fragmentos de conversas, anotações curtas e plenas de seu gênio de poeta. Lendo-as isoladamente, ficamos perplexos, parados, paralisados pelo seu absoluto non-sense e pela completa impossibilidade de descobrir-se ali qualquer manifestação divina ou revelação. Que queria ele com essas tais epifanias? Eram “ relatos de sonhos,.. instantes de percepção fascinada de qualquer evento do mundo, sinais do mundo tal como ele os percebia e em sua mais absoluta realidade”. 4 Estas epifanias, escritas assim como fragmentos isolados, não chegaram a ser publicadas. Foram resgatadas depois de sua morte, a partir de suas anotações de próprio punho.5

Em 1956, Silverman publicou 22 delas, datadas de 1900/1904, em uma obra intitulada “Epiphanies”. Posteriormente Peter Spielberg observou que, nas folhas onde estavam escritas estas 22 epifanias, constavam os números 01 a 71, como se fossem números de ordem; com isso, se supôs que faltava conhecer-se mais 49 dessas epifanias. Algum tempo depois, Scholes encontrou 18, possivelmente destas 49 que faltavam, num caderno de Stanislau Joyce, irmão de James e autor da obra “O guardião de meu irmão”. Em 1965, então, Sholes e Richard Kain publicaram estas 18, mais as 22 iniciais, compondo, pois, 40 epifanias, numa obra intitulada “The Workshop of Daedalus”. Estas, modificadas, estão dispersas no corpo de sua obra. Supõe-se que o mesmo se dê com as 31 até então não localizadas. 4

Bem, logo nas primeiras páginas do “Retrato ...” ele inclui a primeira destas epifanias. Ei-la: “Sr. Vance: Oh! a Srª. sabe, ele terá que pedir perdão, Srª. Joyce.

Srª. Joyce : Oh! Está bem. Você está ouvindo isso, Jim?

Sr. Vance: Oh! Então, se ele não pedir, as águias virão e arrancarão seus olhos

Srª. Joyce: Oh! Mas eu estou certa de que ele vai pedir perdão

( Joyce, embaixo da mesa para si mesmo)
Arrancar os olhos
Pedir perdão,
Pedir perdão,
Arrancar os olhos”. 1 5


Qual a manifestação súbita aí? Esta estrofe final será repetida no decorrer do “Retrato...” e também em “Ulysses”. A imaginação do leitor até que pode supor qual manifestação aí se revela, o castigo cruel, a punição.

Para tecer sua escrita, Joyce dizia seguir as categorias do belo, ou categorias de apreensão do objeto , a estética, de S. Tomaz de Aquino. Categorias essas que são: a integritas, a consonantia e a claritas. Ele escrevia, pois, mediante um rigor técnico e estético que se impunha e que se apoiava na mais pura linha filosófica, a de Tomaz de Aquino. 6 7 Integritas é a técnica que permite a apreensão do objeto como um todo;consonantia seria a apreensão das partes que o compõem e da harmonia entre elas; e claritas, seria a revelação da essência da coisa em si.6 7

No “Retrato...” ele traz sua técnica; é o jovem Stephen recitando para seu colega, Lynch: Claritas é quidditas. “Após a análise que descobre a segunda qualidade”, consonantia, “a mente faz a única síntese logicamente possível e descobre a terceira qualidade” (claritas). “Este é o momento que eu chamo de epifania”. 5“Primeiro reconhecemos que o objeto é uma coisa integral (integritas), em seguida reconhecemos que é uma estrutura composta organizada (cosonantia), na verdade uma coisa ; finalmente, quando a relação das partes é aprimorada ... reconhecemos que é a coisa que ela é . Sua alma, seu quê próprio salta para nós das vestes de sua aparência. A alma do objeto mais comum, cuja estrutura está tão ajustada, parece-nos radiosa. O objeto realiza sua epifania”.5

Esta estratégia realmente pode ser percebida na leitura de seu texto. Ele procura desenhar um cenário, seja, p.ex uma cena de campo, mas também um cenário luminoso, olfativo, ou um cenário psíquico dos integrantes da cena, como se quisesse mesmo delimitar um espaço ou um tempo. Realmente, espaço e tempo são particularmente buscados nos mais variadas matizes. E descreve cuidadosa, artística e incansavelmente os mais inesperados pormenores. Ele queria registrar tudo, absolutamente tudo o que se passasse num fiat de tempo, na mente humana e no universo. As vezes me parece que ele desenha uma moldura , um plano de fundo; põe aí as suas cenas, as suas cores. E em seu seio, a claritas, a revelação, a epifania. São assim os textos de “Dublinenses”; a propósito desta técnica o conto “Argila”me parece particularmente exemplar. 8 O difícil é, para o leitor, apreender qual a epifania. Sua escrita, se por um lado é poética, encantadora, fascinante, por outro é, muitas vezes, pesada e cansativa.

Curioso que, p.ex, vai descrevendo determinado evento, vem usando o verbo no passado; a narrativa vem deslizando através de um tempo que era ou que foi. Subitamente ele lança outra cena completamente discordante sobre aquela narrativa, uma cena no tempo presente. Nada avisa a respeito. Faz representar as pessoas por sonoridades,odores, fragmentos de corpo, movimentos de roupas ... P. ex. “Um crânio surgiu suspenso na obscuridade do portal”. 5 Minha imaginação desenha como se, no trecho da narrativa em desenvolvimento, ele colocasse vinhetas, superpostas, com mensagens fora daquele contexto; como nós fazemos com vários lembretes.

Roberto Harari em seu livro ”Como se chama James Joyce?” diz que a escrita de Joyce é metonímica; são restos ou fragmentos que se substituem uns aos outros. 8 Esta fragmentação da escrita, porém, faz de sua obra algo apaixonante. Neste modelo de fraturas do nexo esperado, se desenvolvem os contos de ”Dublinenses”, com seus finais abruptos, absolutamente inesperados, que deixam o leitor desnorteado, que nos tiram o tapete e nos fazem mancar. O mesmo se diga em relação aos títulos. Às vezes até parece que estamos diante da técnica freudiana da associação livre.

Esta ânsia para que a literatura desse conta de tudo, essa busca pela essência, está bem expressa nesta passagem: “Ele se surpreendia examinando uma depois outra, ao acaso, as palavras que se apresentavam ao seu espírito, perplexo de vê-las subitamente despidas de seu sentido” 5. Parece querer seguir o significante até não mais poder, até fazê-lo cristalizar- se, até, pois o âmago mesmo do real. Despir as palavras de seu sentido é evacuar o imaginário. É atar simbólico a real, com esse esvaziamento mesmo do imaginário. 4 9 11 12

Qual, então, a essência do ser, a quidditas, o quê próprio, a verdade que a epifania revela? E o revela a quem? No corpo de sua obra, algumas epifanias se propõem a atingir o cerne, a essência do objeto abordado por sua escrita; outras buscam a essência ou a revelação de algo próprio ao sujeito, escritor ou leitor, através do objeto. Ou seja, o momento epifânico deve fazer o sujeito apreender-se através do objeto. Veja-se este belíssimo exemplo: “As cinzas nuvens recobriam o céu. No entroncamento de três ruas, numa margem pantanosa, um grande cão está deitado. De tempos em tempos, ele levanta o focinho e solta um lúgubre uivo. As pessoas param para olhá-lo e depois continuam sua caminhada. Alguns param, cativados talvez por esta lamentação na qual lhes parece escutar a voz de sua própria dor, que outrora podia falar, mas agora é muda, escrava dos trabalhos e dos dias”. 3

Muito próprio da escrita de Joyce é esta capacidade de falar de tantas coisas, com textos tão compactos, como se falasse, simultaneamente, de tudo; quase na dimensão sincrônica da palavra, fosse isso possível... No texto acima, a revelação epifânica estaria com o sujeito, no caso o leitor identificado aos passantes, e corresponderia a um movimento de o sujeito apreender-se no uivo do cão: “Alguns param, cativados talvez por esta lamentação na qual lhes parece escutar a voz de sua própria dor, que outrora podia falar, mas agora é muda, escrava dos trabalhos e dos dias”. 3

Vejamos uma outra passagem epifânica, do “Retrato...” 5.“Seu sangue começou a sussurrar em suas veias, sussurrando como uma cidade pecadora convocada de seu sono para ouvir sua condenação. Pequenas fagulhas caíam, cinzas poeirentas caíam suavemente, pousando nas casas dos homens. Eles se mexiam despertando de seu sono, perturbado pelo ar aquecido. A peça corrediça foi empurrada para trás. O penitente emergiu do lado do confessionário” 5.

Esta passagem fala “tudo aquilo que era preciso dizer com palavras”, a respeito da decisão, dolorosa, tomada por Stephen de confessar sua “falta”. Veja-se a descrição do cenário, cenário de sua angústia, em seu sangue; a composição com características da fantasmática cidade. E abruptamente ele passa de suas reflexões para a cena do presente, daquele momento, concreto, no tempo presente, em que chega a sua vez de aproxima-se do confessionário.

Helene Cixous diz, a propósito desta passagem: “A passagem do mundo normal ao mundo delirante se faz sem aviso. Há uma continuidade angustiante entre as duas realidades” Parece-me, digo eu, uma irrupção abrupta e angustiante do real, real na acepção lacaniana do termo.

Esta maneira de apreensão do objeto, ou de apresentação literária, que abruptamente quebra a mensagem ou, diga-se, fragmenta-se, faz mancar o leitor, é magistralmente manifesta no fragmento a seguir, onde fica bem claro seu caráter de chiste, de cômico; modo de engate do real no simbólico, sem a articulação imaginária que permitiria a consistência, ou o sentido, ou significação fálica. Vejamos o fragmento: “O artista, como Deus da criação, permanece dentro ou atrás ou além ou acima de sua obra, invisível, requintado fora da existência, indiferente, aparando suas unhas”. 13 14

Mas a epifania que se propunha a ser revelação, termina aparecendo como um enigma. Enigma que revela o modo seu, todo seu, sua singularidade, em aproximar-se ou contornar este real indomável que explode a todo instante em sua pena e transborda em sua fantástica obra literária.

Cito Jacques Aubert: “A epifania.... ao contrário das aparências, é questionamento e não revelação. Questionamento do sujeito da escritura, do lugar de onde ele se origina”. 15 Cito também Catherine Millot: “O brilho da claritas é o retorno, no real, do vazio da significação fálica, vazio que marca o lugar da Coisa, espaço insuportável do gozo que a escritura joycena tentará bordejar. 11

Para concluir, cito esta passagem que se refere a seu encontro fantasioso com Mercedes e que é, a meu ver, a própria expressão daquilo a que ele denominou epifanias: “Não queria brincar. O que queria era encontrar no mundo real a imagem sem substância que a sua alma tão constantemente baralhava. Não sabia onde a descobriria, nem como; mas um pressentimento o advertia sempre que essa imagem, sem nenhum ato aparente seu, lhe viria ao encontro. Haviam de se encontrar sem alvoroço, como se já conhecessem um ao outro e tivessem marcado uma entrevista talvez num daqueles portões ou noutro lugar mais secreto. Estariam sós, cercados pela treva e pelo silêncio; e nesse momento de suprema ternura ele seria transfigurado. Dissolver - se - ia dentro de qualquer coisa impalpável, sob os olhos dela. E depois, então num momento, se transfiguraria”. 5

Vejo aí, sim, uma manifestação que eu digo “divina”, da essência que ele tanto perseguia; da sua própria essência, pois.

 

 

NOTAS

1. JOYCE, J - “ EPIFANIAS”, tradução: B.S. Pinheiro, in Revista da Letra Freudiana, Rio de Janeiro, Relume –Dumará, ano XII, nº 13, 1993 pp 113- 119
2. CIXOUS, HÉLENE - “ A doutrina da epifania e seu contexto” , id, pp 133-143
3. CIXOUS, HÉLENE- “ Evolução da noção de epifania” id, pp 129-133
4. ORELLANA, J. B. – “ Primeros apuntes acerca de las epifanias joyceanas”- El Caldero de la Escuela, Buenos Ayres, nº 60, jun 98 pp 70-79
5. JOYCE, JAMES- “Retrato do Artista Quando Jovem”, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 5º Ed., 2001
6. O’ CONNOR FRANK.- “ Joyce e a metáfora dissociada” , in Revista da Letra Freudiana, opus cit., pp 65-69
7. CHAYES, I. H.- “As epifanias de Joyce”, id, pp 120-128
8. JOYCE, JAMES- “Dublinenses”. Rio de Janeiro, Ed. Ediouro,1992
9. HARARI, R.- “ Como se chama James Joyce?” – Companhia de Freud Ed., Rio de Janeiro, 2003
10. BURGESS, A.- “ Homem Comum Enfim - uma introdução a James Joyce para o leitor comum” Cia da Letras Ed., São Paulo, 1994
11. MILLOT, C. - “ Epifanias”, in Revista da Letra Freudiana, opus cit., pp 144-149
12. LACAN, J.- O Seminário, livro XXIII
13. BEEBE, M. “ A tradição e o novo romance (o artista como herói)”, in Revista da Letra Freudiana, opus cit., pp 52-64
14. ELLMANN, R. “ O desenvolvimento da imaginação” id, pp 70-77
15. AUBERT, J. “Prólogo a um retrato do artista quando jovem”, id, pp 40-51

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