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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.6  Salvador  2004

 

ARTICULAÇÕES

 

Psicanálise e Hospital Geral: limites e possibilidades

 

 

Luiza Sarno; Andréa Fernandes

Hospital Aristides Maltez/Núcleo de Oncologia da Bahia

 

 


RESUMO

A partir do questionamento sobre os limites e as possibilidades da inserção do psicanalista no hospital geral, buscou-se analisar os trabalhos desenvolvidos nos hospitais gerais sob o viés da ética, que pode ser a ética da tutela, a ética da interlocução ou a ética do desejo. Considerando que a ética orienta a prática clínica, propõe-se diferenciar a intervenção psicoterápica pautada na escuta analítica.

Palavras-chave: Psicanálise, Hospital, Instituição, Psicoterapia, Medicina.


 

 

O presente trabalho parte de uma questão fundamental colocada à prática psicanalítica: quais são as condições que possibilitam a psicanálise?1 A prática clínica como psicóloga no Hospital Aristides Maltez fez com que essa questão se desdobrasse em duas outras indagações: quais os limites e possibilidades da inserção da psicanálise no hospital geral? E, mais especificamente, quais as possibilidades de ação da psicanálise dentro de um hospital oncológico. Os questionamentos ora expostos nortearam a construção da monografia, por mim apresentada, sob a orientação da profa Andréa Fernandes, no curso de especialização em Teoria da Clínica Psicanalítica da UFBA. Na presente exposição buscamos retomar algumas das conclusões alcançadas, ao ser investigada as condições mínimas para a psicanálise no hospital, em especial em um hospital oncológico, através do exame da ética aí implicada.

As particularidades da clínica médica num hospital geral podem se mostrar avessas ao saber psicanalítico. A demanda dirigida ao corpo médico sustenta-se sobre um sintoma como sinal de uma doença que espera ser autentificada pelo saber da medicina. Logo, a partir da queixa do paciente cabe ao médico dar um significado a esse sintoma que determinará o tratamento a ser feito. A definição segundo a qual saúde é o “silêncio dos órgãos” mantém uma forte relação com o Outro do controle que, através de um código de ética, orienta uma terapêutica que tem por objetivo tanto o bem-estar, como a remissão dos sintomas e por fim a cura. Surge então um desdobramento da questão norteadora desse trabalho, frente ao predomínio da ordem médica, qual o lugar para a psicanálise no hospital?

É justo no abalo da ética médica que é possível delinear-se um lugar para a psicanálise. Este lugar configura-se a partir do surgimento de um sujeito. O sujeito de que se trata está fora do alcance dos cuidados médicos uma vez a medicina tendo sua promessa de cura abalada a ele nada pode oferecer. Desse encontro tiquê surge a psicanálise. Através de um recuo na história, encontramos as histéricas que revelaram ao Dr. Freud que “os fenômenos do corpo não estão livres de uma representação psíquica, ainda que o sujeito não saiba que representação é essa”2 . Na atualidade, constatamos que nas diferentes circunstâncias em que o sintoma orgânico aponta para o real da morte ele causa horror ao corpo médico da instituição que atingido no seu saber abre espaço para o discurso analítico. Vemos então que a divisão entre corpo e mente cria a possibilidade de um campo de ação da psicanálise, pois o que se espera de um psicanalista é que ele possa tomar o corpo como algo não separado do psíquico .3

O real do corpo ao fazer furo no saber médico, atingindo a noção de saúde definida pela medicina, revela que tanto no hospital geral como no hospital oncológico a terapêutica vai orientar-se da clínica das especialidades à clínica do sujeito. Comecemos pelo exame da prática clínica realizada no hospital geral.

No hospital geral, cabe aos médicos interpretar o sintoma do paciente, traduzindo o seu mal-estar para uma linguagem médica. No hospital geral existe uma oferta de serviços de clínica médica nas mais variadas especialidades. A movimentação do paciente, neste espaço terapêutico, é demarcada pela leitura que é feita do seu sintoma pela equipe médica. O sintoma sendo interpretado como signo de uma doença fará com o paciente dirija-se diretamente para uma especialidade médica. Entretanto, se o sintoma apresentado pelo paciente não pode ser interpretado dentro do conjunto de significados de uma dada especialidade, o paciente terá, inicialmente, uma consulta com um clínico geral que determinará o encaminhamento posterior.

A clínica médica evidencia-se como uma clínica da decodificação. Trata-se de uma prática que se sustenta numa decodificação entendida como “a conversão de uma mensagem codificada (signo/ sintoma) em linguagem inteligível (significado/ doença)”4 . Quando esta decodificação do sintoma como signo de doença não se encaixa no conjunto dos significados médicos a própria equipe médica encaminha o paciente para os psicólogos que são convocados a lidar com aquilo que resiste a simbolização. Configura-se, assim, a clínica do sujeito.

O exercício da clínica do sujeito está condicionado ao corpo ser tomado em duas dimensões: a de corpo epistêmico e a de corpo libidinal5 . Vemos aí esboçar-se o corpo do sujeito acometido por um sintoma na sua vertente tanto de significante como de gozo. Na sua vertente significante, o sintoma é sempre singular o que faz com que o corpo seja tomado numa dimensão epistêmica na qual é franqueado ao sujeito em análise construir um saber para dar conta deste sintoma. Já na sua vertente de gozo, o corpo porta um sintoma que aponta um modo particular de satisfação encontrado pelo sujeito para lidar com sua falta-a-ser e é o que lhe serve na sua relação com o real como insuportável.

Sabemos que tanto a medicina como a psicanálise orienta-se por uma ética. A definição da ética como “estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente à determinada sociedade, seja de modo absoluto”6 fundamenta a clínica médica que trata o sintoma como um sinal que precisa ser interpretado, decifrado e classificado pelo médico. Neste contexto, o paciente vem ao médico para falar do seu sintoma. O diagnóstico médico preconiza então que o paciente apresenta uma queixa que tem o sintoma (o mal-estar) como resposta. Já para a psicanálise, que se orienta por uma ética na qual o sujeito é convidado a bem dizer o seu sintoma, o sintoma “torna-se psicanalítico” quando o mal-estar em si não está em primeiro plano, mas quando o sintoma revela-se como uma questão epistêmica para o sujeito, justificando porque o diagnóstico psicanalítico visa a causa do sujeito e não a da doença .7

A presença de equipes multiprofissionais revela que existem várias éticas que determinam a ação dos diferentes profissionais dentro do ambiente hospitalar. A questão da ética articula-se com a investigação central do nosso trabalho sobre os limites e as possibilidades da inserção da psicanálise no hospital geral, em especial em um hospital oncológico. O trabalho de Jurandir Freire Costa 8 acerca da assistência psiquiátrica prestada à saúde mental orienta a nossa investigação, na medida em que, encontramos no artigo citado a análise das diferentes éticas que orientam cada ação seja ela médica, psicológica ou psicossocial. Destacaremos, sobretudo, a ética no modelo médico e no modelo psicológico.

De acordo com Jurandir Freire Costa, o modelo médico funciona sob a ética da tutela na qual o sujeito é tomado como objeto de cuidado. Cabendo ao médico estabelecer normas de condutas que deverão ser seguidas, pois a ética da tutela é baseada na ética instrumental “lida com objetos da natureza, que visa prever, predizer e controlar experimentalmente aquilo que é estudado” 9. Como exemplo, temos as intervenções que visam informar e esclarecer sobre a doença e suas conseqüências a fim de permitir um melhor tratamento. Contudo, sob esta ética o sujeito fica sob a tutela do saber médico, portanto submisso, dependente deste saber sem que nenhuma questão epistêmica possa ser esboçada por ele. “O sujeito é privado de razão e vontade em prol da descrição fisicalista do modo como se apresenta” .10

Já no modelo psicológico encontramos a ética da interlocução na qual não há uma dissimetria tão grande entre paciente e terapeuta, como na ética da tutela. O paciente é percebido como competente para buscar soluções para seus conflitos junto ao terapeuta. Por dar ênfase na noção de indivíduo, a ética da interlocução entende o paciente “como dotado de uma consciência e poder de decisão imanentes e autônomos, em relação à ordem social e à cultura que o circunscrevem e o constituem como sujeito de linguagem”11 . Por não considerar o inconsciente, não diferencia o que se quer do que se deseja.

As duas éticas assim expostas, da tutela como a ética da interlocução, implicam numa assistência que visa o bem estar do paciente. Na ética da tutela, o profissional da equipe de saúde se denomina como cuidador e, acreditando deter o saber sobre o que deve ser feito para alcançar esse objetivo, orienta e informa os pacientes os procedimentos que estabelece como adequados, logo, o cuidador é o agente e o paciente o objeto dos seus cuidados. Na ética da interlocução, o poder do cuidador se autolimita, pois, o paciente é concebido como competente para buscar soluções que possibilitem seu bem estar, estabelecendo, assim, numa terapia, uma relação intersubjetiva.

É importante ressaltar que os modelos apresentados “guardam sempre uma distância inevitável, e mesmo desejável, de seus princípios gerais”12 . Tal ressalva justifica-se pelo fato de que os agentes destes modelos (médicos, psicólogos) “são diferentes entre si em sua trajetória pessoal e profissional”13 .

Retomando a questão inicial do nosso trabalho sobre quais são as condições que possibilitam a psicanálise, constatamos que ela incide, de acordo com o discurso da analista, sobre o analista que numa análise deve ocupar o lugar do agente que causa o desejo de saber do analisando. Toda esta lógica funda-se na noção de “inconsciente, que por nunca se calar, impede qualquer ideal de equilíbrio e harmonia entre o corpo e a mente”14 . Desta forma, o analista orienta-se por uma ética segundo a qual não é possível estabelecer o que é o bem para o outro, pois o que o caracteriza o humano é ser marcado por uma falta estrutural que o constitui enquanto sujeito desejante, e para quem a plenitude do bem estar mostra-se da ordem do impossível.

Partindo do pressuposto que a ética fundamenta uma práxis, nos indagamos que lugar para a psicanálise no hospital oncológico, onde o tempo da urgência faz com que o instante de ver, o momento de compreender e o momento de concluir estão sobrepostos. Neste contexto, a morte recorrentemente presente convoca o saber médico a combatê-la sem levar em conta a subjetividade do sujeito, que se submete a tratamentos invasivos e agressivos. A ética da tutela impõe-se então fazendo com que o paciente num hospital oncológico dirija sua queixa ao médico, não se implicando no seu sofrimento e até mesmo esperando que o autentiquem como doente, como aponta Lacan (1966) em “O lugar da psicanálise na medicina”. Na contra-corrente da ética do bem estar, trazemos um caso atendido no Hospital Aristides Maltez no qual a escuta da paciente deu-se de acordo com a ética do bem dizer condição que torna possível um tratamento analítico.

 

A OFERTA PODE GERAR A DEMANDA

Em março de 2000, Margarida é encaminhada pelo seu mastologista para o ambulatório do Setor de Psicologia do Hospital Aristides Maltez. A primeira sessão acontece antes da cirurgia de mama (mastectomia total da mama esquerda). Neste atendimento, revela dúvidas com relação aos futuros tratamentos e expressava medo de morrer. Preocupava-se com a alteração do seu corpo e questionava de que forma isso repercutiria na sua vida. Após a alta hospitalar e com o início da quimioterapia, marca atendimentos ambulatoriais, passando a se queixar dos efeitos colaterais do tratamento. Relata, chorando e de forma confusa, que sua filha de cinco anos também passou por esse tratamento há dois anos atrás. Afirma que naquele período ela foi forte, chegando a ser elogiada pelos médicos. Agora ela quer ter uma vida normal, voltar a trabalhar e adaptar-se as mudanças decorrentes do tratamento. Questionada se precisa ser forte, ela responde que a religião a fortalece. No atendimento seguinte ela falta não dando continuidade ao acompanhamento.

Em fevereiro de 2003, volta a marcar atendimento informando se sentir deprimida e com fantasias de recidiva da doença. Deixou de trabalhar, não consegue estudar e perdeu interesse pelo sexo. Ao retornar o atendimento ambulatorial, Margarida formula uma questão epistêmica: por que tudo em sua vida foi precoce? A partir de uma oferta de escuta analítica, Margarida formula uma demanda onde entrevemos o movimento de retificação da sua posição subjetiva. É assim, que Margarida nas entrevistas preliminares vai realizando uma passagem de falar do mal-estar, pautada no sintoma como resposta, para falar, pautada no sintoma como questão. Ela relata que começou a trabalhar com 14 anos, pois engravidou, que se casou e teve filho com 15 anos, separando-se do primeiro marido cedo e teve câncer de mama cedo. Informa que teme morrer cedo, apesar de não querer morrer, acha a vida muito difícil, pois não se tem certeza de nada, podendo adoecer e morrer a qualquer momento. As entrevistas preliminares prosseguem possibilitando um espaço para esse sujeito através da ética do bem dizer se confronte com algo que o causa que ele não sabe que sabe.

Concluindo, é no hiato aberto pelo real na clínica médica que um espaço para a psicanálise pode vir a constituir-se na instituição hospitalar. Neste sentido, cabe destacar que contrária à ética do bem estar que fundamenta a demanda dirigida ao médico, a psicanálise orientada pela ética do bem dizer sustenta que através da oferta de uma escuta analítica uma demanda outra possa daí surgir.

 

 

NOTAS

1 Esta questão trazida por Miller (1987, Percurso de Lacan ) está presente desde Freud nos seus artigos sobre a técnica e retomada por Lacan em diferentes momentos de sua obra, em especial, “A direção da cura” e os textos sobre a escola.
2 MORETTO, M.L., O que pode um analista no hospital? São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. p. Nº.
3 Idem.
4 HOUAISS, A, Dicionário eletrônico da língua portuguesa.
5 Cf. MILLER, J. A, “Elementos de biologia lacaniana” in Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise Minas Gerais, 2001. SOLER, C., “O corpo no ensinamento de Jacques Lacan” in Papéis do Simpósio. Belo Horizonte: Simpósio do Campo Freudiano de Belo Horizonte, 1989.
6 HOLLANDA, Dicionário da língua portuguesa.
7 MACHADO, M. R., “O diagnóstico na psicanálise: da clínica dos fenômenos à clínica da estrutura” in Psicanálise: pesquisa e clínica. Figueiredo, A C.,(org.). Rio de Janeiro: IPUB/CUCA, 2001.
8 COSTA, J. F., “As éticas da psiquiatria” in FIGUEREDO, A C., SILVA FILHO, J., F. (org.) Ética e saúde mental. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
9 Idem, p. 63.
10 Idem. Jurandir F. Costa afirma ainda que “o denominador comum é a objetivação do sintoma ou doença como algo que o sujeito tem, que o acomete, e sobre o qual ele tem pouco a fazer, senão seguir as prescrições, que podem ser medicamentosas ou educativas”, p. 63.
11 FIGUEIREDO, A C., Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: a clínica psicanalítica no ambulatório público. Rio de Janeiro: Relumé-Dumará, p.64.
12 Idem, p. 65.
13 Idem.
14 CIRINO, O, Psicanálise e psiquiatria com crianças: desenvolvimento ou estrutura. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

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