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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.6  Salvador  2004

 

ARTICULAÇÕES

 

O mundo - o (in)mundo

 

 

Marcela Antelo

Escola Brasileira de Psicanálise e Associação Mundial de Psicanálise

 

 


RESUMO

A “ mise-en-scène” do corpo social contemporâneo privilegia a violência como modo de relação com o outro. Seja a violência de massas, ferramentA de segregação, seja a violência da intimidade, o imaginário contemporâneo se propõe como verdade do real.

Palavras-chave: Violência, Psicanálise, Cinema, Mundo.


 

 

A “mise-en-scène” do corpo social contemporâneo privilegia a violência como modo de relação com o outro. Seja a violência das massas, ferramenta da segregação, do racismo, da guerra, do tráfico de armas ou substancias, de corpos operáveis, seja a violência da intimidade, de amores cachorros e de tormentos dentro das quatro paredes de um quarto, de um cubo ou até de um armário.

O cinema como estética geopolítica realiza hoje a profecia do futurista Marinetti: a violência como linguagem fundamental do século. O debate ético, político e estético ao redor da figura da violência esgrimem os argumentos da condenação: naturalização, glamourização, estilização, estetização, despolitização da violência, em soma banalização.
Entretanto, os homens lobos dos homens, impetuosos, clamam por um real mais real brandindo facas, chicotes, mísseis ou xingamentos.

 

A HIPÓTESE MORFINA

Hugo Munsterberg, em 1911, viu um filme mudo e pensou que os meios de comunicação de massas poderiam saturar os sentidos: Num filme, o mundo exterior sólido perdeu seu peso, vê-se liberado do espaço do tempo e da causalidade. “É como se o mundo exterior fosse sendo urdido dentro da nossa mente e, em vez de leis próprias, obedecesse aos atos de nossa atenção”1 . - temia por isso que os filmes pudessem provocar um completo distanciamento do mundo real. O poeta Antonin Artaud, seu contemporâneo, percebeu a ação sensual do cinema desde outro lugar: “O cinema - que é - mais excitante que um fósforo, mais cativante que o amor, exige temas excessivos e psicologia minuciosa. Exige a rapidez, mas, sobretudo, a repetição, a insistência, a volta sobre o mesmo, a alma humana desde todos seus aspectos. No cinema todos somos cruéis ”2. Para Artaud, o distanciamento da vida constituía a superioridade do cinema e não seu maior pecado. “O cinema tem sobretudo a virtude de um veneno inofensivo e direto, uma injeção subcutânea de morfina”. O cinema como excitante notável dos sentidos convoca estados de grande exaltação da alma, suas paixões. Hoje em dia, certa doxa recupera a hipótese morfina e aponta as armas contra uma CNN narcótica, uma MTV anestésica, um Tarantino entorpecente, um Hot Channel hipnótico. Sobretudo, fala-se de aumento do nível de tolerância das audiências, tolerância, necessidade de administração de doses maiores para a obtenção do efeito inicial. O efeito inicial da morfina : estado de satisfação de todos os impulsos e desejos, orgasmo tóxico.

A diabolização da imagem cinematográfica cresce enroscada no cinema e se inscreve na tradição iconoclasta. A mitologia grega foi também usina de imagens em tempos politeístas e pré-industriais e podem se recolher provas arcaicas da condenação do apetite do olho. Privilegiada na enciclopédia infinita das queixas da carne, a fome de ver apalpa as imagens. Olivier Mongin 3, no único livro dedicado inteiramente ao nosso tema que consegui achar, propõe que o olhar devora a violência nas telas para melhor poder ignorá-la na vida, evidenciando um superconsumo. O olhar envolve com sua carne dizia Merleau-Ponty.

O conceito de carne aparece na última elaboração de Merleau Ponty, influenciado por Bataille. “A carne é em nós este excesso que se opõe à lei da decência”. O olhar se aloja na carne. Jacques Lacan pensa o olhar como um objeto, surgido de uma espécie de automutilação que o ser padece. Coincidindo com Merleau Ponty e contra Sartre, separam o olhar do espaço da intersubjetividade, da relação sujeito a sujeito. O olhar preexiste ao visível já que somos seres olhados no espetáculo do mundo diz Merleau-Ponty. Quando o umbral do visível se abre, o olhar se subtrai. O invisível não é o contrario do visível, é sua contrapartida secreta “. Dessa contrapartida secreta do visível se alimenta o olho cada vez mais voraz. Há algo mais que o visível em jogo no cinema. Nietzsche soube fazer a pergunta certa:...” Para tudo que o homem permite fazer-se visível, podemos nos perguntar: o que é que ele deseja esconder?”.

A psicanálise ensina que a vontade do olho se satisfaz sobre o próprio corpo em primeiro lugar, e só depois se dirige ao corpo do outro e retorna sobre si como desejo de ser olhado. O próprio corpo passa então a se sustentar no olhar do outro. A alternância do sujeito que olha e o objeto olhado criam o cenário da violência como função. O prazer e a dor escrevem o alfabeto dos lugares do corpo e sabemos, desde Foucault que o corpo não nos pertence. Ele é objeto da bio-política que traça suas cartografias e regimenta seus gozos. O corpo que somos e não o que possuímos. Não há Hábeas Corpus.

O sexo e a morte, a experiência da satisfação e a experiência da dor se tornam então signos capazes de capturar o desejo do outro, de saciar o apetite do olhar. Se o corpo como carne mortal evoca o horror, o corpo como belo o cobre. Contemplar pacifica, momentaneamente. Conhecíamos o ópio dos povos, agora, a morfina dos espectadores. A tela oferece sossego frente ao vazio que abisma o campo da representação.

No tratamento desse vazio reside a genialidade de um Kubrick, que soube remeter o espectador a experiência do olhar, transformando o cinema em arma contra uma violência que não se pode erradicar. Frente a imagem que olha ao sujeito objetivizando-o, apela no sujeito sua experiência de olhar.

A tela do cinema é a esfinge que espera os caminhantes frente à entrada da cidade lançando-lhes uma pergunta enigmática. Na antiguidade clássica se não se encontrava a resposta, a esfinge devorava o caminhante. Hoje já não se entra mais nas cidades caminhando. Hoje, não há nada definitivo para ver, nada que possa ser simbolizado, nenhuma palavra nem imagem que sirva para efetivamente matar a coisa, pra formular a verdade relativa a nossa ausência de liberdade. Hoje, melancolicamente livres, voltamos para a sala obscura apenas sobra um tempinho. O cinema não é veiculo de exposição, é um assunto de experiência. O cinema não é técnica do imaginário como afirmavam Metz e Baudry, nem o articulador da visibilidade com a construção de identidades, uma máquina de traduzir, como a critica feminista pensa 4. Porque sendo o cinema é experiência a psicanálise não se aplicaria nele procurando decifrar um produto da cultura. Pode sim sentar timidamente na sala escura para aprender o que a experiência cinematográfica pode-lhe ensinar sobre a produção do inconsciente, sobre os pesadelos da consciência.

 

A HIPÓTESE DA VIOLÊNCIA NATURAL

Sigmund Freud que pouco foi ao cinema que nascia ao seu redor trabalhou com a hipótese de um inconsciente ótico, pleno de imagens de castração, evisceração, mutilação, desmembramento, devoraçâo, brutalizaçâo, explosão do corpo, o corpo aberto, habitual protagonista das telas contemporâneas. Full Metal Jacquet, Johny got his gun, Platoon, Paths of Glory, Pulp Fiction, Crash, Dead Ringers, Delicatessen, ...a lista é infinita. Hyeronimus Bosch, Caravaggio, Goya, Francis Bacon anteciparam com pinceis o Atlas do corpo aberto, consolidando a intuição de que o cinema não é espelho e sim tela. Ainda mais, que todo espelho é tela como Jacques Lacan afirmara um ano em Marienbad.

Tela sonora. O encontro com a voz materna como experiência traumática capital já foi trabalhado no famoso texto O umbigo e a voz de Denis Vasse. A relação da música e a voz com a política de extermínio dos campos de concentração da Segunda Guerra também. Imprescindível ler hoje o ensaio de Hannah Arendt 5 sobre a maciça intromissão da violência criminosa na política.

Observando crianças de dois a cinco anos, antes da invenção dos GTA, 1, 2, 3 e 4, de Postal ou Counter Strike, observando os avós de Beavis and Butthead, os bisavós dos anões de South Park, a psicanálise testemunhou a espontaneidade na oposição a lei da decência, no ato de arrancar cabeças, perfurar ventres, separar membros, violar os orifícios de bonecas, ora de porcelana, ora de borracha, sonorizado por gritos vandálicos e sons guturais de prazer que somente os quadrinhos sabem metaforizar. “O ódio como relação com o objeto é mais antigo que o amor... 6” dizia Freud em 1915, apos um ano de guerra mundial, i-mundial, poderíamos brincar com Lacan, o mundo é o imundo

A violência natural é uma falácia. A natureza é uma falácia. Lembremos as sabias palavras de Bertold Brecht: "Nós vos pedimos com insistência: não digam nunca: Isso é natural. Sob o familiar, descubram o insólito. Sob o cotidiano, desvelem o inexplicável. Que tudo o que é considerado habitual provoque inquietação. Na regra, descubram o abuso, e sempre que o abuso for encontrado, encontrem o remédio”.No familiar buscar o insólito, no cotidiano o inexplicável, no visível o invisível.

O desafio ético frente ao tema da violência no cinema pode consistir em escapar-se das armadilhas que nos arma a ideologia: por um lado, a rápida eternização e ou universalização da violência: imagem que deixa invisível a sua determinação sócio-simbolica, histórica. Por outro, a historização ultra-rápida que nos cega para o retorno do que permanece o mesmo através das diversas historizações.

O cineasta João Moreira Salles aponta um caminho. Ele situa o pântano, a zona impura, o impasse da formalização, na dimensão do contato com a violência. Há consenso: a violência é o mal, a questão é o contato com o mal que o cinema se autoriza. Essa autorização é filha do tempo e formata essa organização paixonal que chamamos Eu.

A autorização modela os recintos rituais onde os homens, sozinhos ou em manadas, se entregam á satisfação. Se os gregos se juntavam na praça pública para assistir uma Medeia ciumenta cozinhar seus filhos a fogo lento, os homens de hoje, na solidão do Um por Um, tem 200 canais onde escolher Chronos devorando os próprios filhos, Hermes mutilado, Prometeu amarrado a sua roca por Kratos, o poder, e Bia, a violência, oferecendo seu fígado ao regozijo dos deuses, Icaro queimando suas vãs assas de cera, Orestes assassinando a própria mãe, As troianas e mais massacre de crianças, Clitemnestra assassinando Agamenon, seu marido, Agamenon sacrificando sua filha adolescente Ifigênia, Cassandra esmolada, Suplicantes seqüestradas 7. Nosso temor e compaixão abastecidos poderiam dar pauta aos 200 canais numa época em que a violência era atributo tanto de sublimes deuses como de homens heróicos, numa civilização que como mais nenhuma outra dedicou sua arte a representar a corrente de abjeções que a violência punha em cena, sem ceder um milímetro em combater a violência e promover a justiça e a doçura.

"Não se está pondo em questão a natureza da violência. O dilema não é esse. O que está em discussão é a propriedade de relacionar-se ou não com a violência. O vício é um só: ver e dar testemunho. Ele brota da necessidade de falar do mundo.8 ".
Seja um full contact ou um contacto do terceiro tipo, a questão é calcular a parte que « convém atribuir-lhe à agressividade na economia psíquica”9.

Frente ao invisível na imagem uma gama de suposições se abre, os famosos monstros que o sonho da razão engendra: suposição de veneno, de malefício, de influência, de intrusão física, de roubo, de mau olhado, de secreto, de espionagem, de difamação, de inveja, de atentado a honra, de dano, de exploração, de segregação, caldo onde se aninha o ato violento. “A violência é o que há de essencial na agressão... não é a palavra, é precisa e exatamente o contrário. O que se pode produzir numa relação inter-humana é a violência ou a palavra. Nos confins onde a palavra se demite começa o domínio da violência porque ai reina ainda que não se a provoque10 ”.

 

A HIPÓTESE CANINA

Walter Benjamin que escreveu um ensaio luminoso a respeito da violência, recomendava para toda transmissão possível confiar no relato de anedotas. O titulo das presentes notas se impôs na minha memória, restos das vozes adultas que me rodeavam em 1961. Mondo Cane, um dos documentários mais vistos na historia do cinema, tinha feito trauma na retina e na consciência dos meus pais. Gualtiero Jacopetti, o autor, foi condenado a se defender por anos: “ A ambigüidade, disse em Carta Aberta a um critico da época, é hoje a única clareza possível11 ”. O “shockumentary” que consagrou-se como modelo de racismo e de crueldade, criou gênero, “Mondo Movies”12 e apadrinhou os “snuff movies”. Mondo Cane começa com uma toma de cachorros prisioneiros latindo ferozmente. Os cachorros têm enchido as telas nos últimos anos. Os amores são perros, há Reservoir Dogs, há cachorros em Fight Club, em Snatch e em Natural Born Killers. A última cachorrada já é uma inteira comunidade, la magnífica Dogville que escandaliza hoje as miradas. Ate Spike Lee, mestre na proliferação de raças, os inclui nos seus últimos filmes. A forma metafórica do mundo a partir de Mondo Cane ressoa na república platônica e incorpora o principio da lei da devoração universal que regula um mundo baseado no principio do prazer como era o mundo grego. A parte bestial da alma humana começa empanturrando-se de alimentos e de vinho, segue com a violação e o assassinato e acaba não se abstendo mais de nenhum tipo de alimento. Metáfora que será retomada no mundo gótico com a sedução que exerce o sangue humano e se fecunda no Homem lobo do Homem de Hobbes iluminado. João Moreira Salles mais uma vez, propõe substituir uma citação de Elias Canetti sobre a natureza do poeta. “O artista é o cão do seu tempo”, “Como um cão, corre-lhe os domínios, detendo-se aqui e acolá; [...] é impelido por uma depravação inexplicável: em tudo mete o focinho úmido, nada deixando de lado; volta atrás, recomeça: é insaciável; de resto, come e dorme, mas não é isso que o distingue dos demais, e sim a inquietante obstinação do seu vício.

A psicanálise, prática cuja experiência procede toda do mal-estar13 não pode ficar de boca aberta com o fato de que o cinema, seu irmão histórico, dedique toda sua tecnologia e arte a aguçar a experiência contemporânea da violência num mundo que soltou os cachorros.

 

 

NOTAS

1 XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema : antologia. São Paulo: Editora Graal : Embrafilme, 1983.
2 ARTAUD, Antonin. El cine.Buenos Aires: Alianza Editorial, 1994.
3 MONGIN, Oliver. Violencia y cine contemporáneo. Buenos Aires: Paidós, 1999.
4 LEBEAU, Vicky. Psychoanalysis and cinema. The play of Shadows. Short cuts series. London and New York: Wallflower, 2001.
5 ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
6 FREUD, Sigmund. Obras completas. Tomo XIV. Las pulsiones y sus destinos, Buenos Aires-Barcelona: Ediciones Amorrortu, 1915, p.133
7DE ROMILLY, Jacqueline. La Grèce antique contre la violence. Lê livre de Poche. Paris: Éditions Fallois, 2000.
8 SALLES, João Moreira Salles. No meio. Publicação digital. RJ: 5-7-2003.
9 LACAN, Jacques. A agressividade em psicanálise em Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2000.
10 LACAN, Jacques. Comentários à verneingung de Jean Hyppolite. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2000.
11 JACOPETTI, Gualtiero. “Carta aberta a Gian Luigi Rondi”. Il tempo, 9 -3-75.
12 PIEDADE, Lúcio DF.R. “Mondo films & shockumentaries. Uma introdução à exploração no documentário”. Estudos de cinema. São Paulo: Socine, 2000.
13 LACAN, Jacques. A terceira. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2003. “Ao final de contas, toda nossa experiência procede do mal-estar que Freud observa, em alguma parte, no mal-estar na cultura”.

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