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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.6  Salvador  2004

 

ARTICULAÇÕES

 

Psicanálise e pesquisa

 

 

Miriam Elza Gorender

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

A Psicanálise foi criada com objetivo tríplice: corpo teórico/tratamento/método de investigação. Ao longo de sua conturbada existência, todos os seus três aspectos apresentaram diferentes formas de evolução. Mas enquanto as mudanças teóricas e técnicas têm sido objeto de muitas obras, as formas de pesquisa ligadas ao inconsciente são relativamente pouco estudadas. Este é o objeto do meu trabalho

Palavras-chave: Psicanálise, Pesquisa, Investigação, Metodologia, Epistemologia.


 

 

A Psicanálise atualmente conta com mais de um século de história. Ao longo deste tempo, estabeleceu-se como campo de saber bem constituído, com objeto e métodos que lhe são próprios e que a distinguem de outras formas do pensamento humano. Também como campo de saber não pode deixar, sob pena de tornar-se obsoleta, de progredir em sua teoria e prática. Isto significa não apenas o aperfeiçoamento e mudança em seus conceitos teóricos, mas também a demonstração constante de sua utilidade em aumentar o conhecimento sobre o objeto que a define, o inconsciente. Suas aplicações constantemente extrapolam a clínica onde nasceu para enveredar, desde a época de sua fundação, e pelo próprio Freud, nas mais diversas áreas da atuação humana, como a arte, o funcionamento dos grupos, a ciência, política, etc.

A Psicanálise foi criada com objetivo duplo: forma de tratamento e método de investigação. Ao longo de sua conturbada existência, ambos os aspectos apresentaram diferentes formas de evolução. Mas enquanto as mudanças teóricas e técnicas têm sido objeto de muitas obras, certas formas de pesquisa ligadas ao inconsciente são relativamente pouco estudadas. “Como se realiza, em psicanálise, o progresso do conhecimento?” (Mezan, in Investigação e Psicanálise, p. 50) Neste trabalho procuro revisar e trazer alguns aportes à questão da pesquisa em psicanálise e sua metodologia, enfocando a chamada psicanálise extramuros, ou ‘aplicada’, uma vez que ao longo dos últimos anos esta forma de investigação psicanalítica vem se expandindo, não tanto nas instituições psicanalíticas, mas nas acadêmicas: cursos de graduação, pós-graduação, especialização, etc., funcionando como uma segunda vertente da produção de conhecimento psicanalítico.

Há uma citação em Freud que permanece extremamente atual sobre o tema:

O que caracteriza a psicanálise como ciência não é o material de que trata, mas sim a técnica com a qual trabalha. Pode ser aplicada à história da civilização, à ciência da religião e da mitologia não em menor medida do que à teoria das neuroses, sem forçar sua natureza essencial. Aquilo a que ela visa, aquilo que realiza, não é senão descobrir o que é inconsciente na vida mental (Freud, 1917, p. 453).

Que outras considerações foram feitas ou ainda podem ser feitas sobre o assunto? A impossibilidade do trabalho psicanalítico partindo de premissas prévias ou um saber já constituído é uma unanimidade. Não é possível partir-se de um teorema a ser provado, uma vez que o conhecimento aqui é construído ao longo do caminho. O desvelamento, ou aletheia, é também uma construção, ou mais freqüentemente uma re-construção. Isto é válido para qualquer tipo de investigação do inconsciente.

Mas ao contrário desta unanimidade, a pesquisa “aplicada” ou extramuros encontra resistências e críticas vindas de diferentes quadrantes. Segundo uns, não é psicanálise “pura”, seja lá o que isso for. Para outros, não seria possível o desvendamento do inconsciente a não ser dentro do setting analítico, pois do contrário, como se poderia estar certo de que a interpretação feita sobre uma obra de arte, um comportamento de grupo, ou qualquer outro conteúdo não refletiria apenas o desejo do interpretante, já que não haveria o acesso ao feedback fornecido pelo contato direto e imediato com o analisando? Argumento que tornaria a psicanálise clínica, de consultório, a única possível. E se queremos contestar estes argumentos, a contestação deve ser feita com bases teóricas e práticas sólidas. Não é suficiente que grandes nomes antes de nós tenham feito largo uso da psicanálise fora da clínica. A citação de mestres não pode ser um recurso admissível nos embates da teoria, a não ser que estes tenham algo a dizer que faça bom sentido dentro do tema.

E o que Freud, para começar, teria a contribuir? Por exemplo, no artigo sobre o Moisés de Michelangelo, descreve seus objetivos:

[...]as obras de arte exercem sobre mim poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura, e com menos freqüência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve o seu efeito [...] a meu ver, o que nos prende tão poderosamente só pode ser a intenção do artista, até onde ele conseguiu expressá-la na sua obra e fazer-nos compreendê-la. Entendo que isso não pode ser simplesmente uma questão de compreensão intelectual; o que ele visa é despertar em nós a mesma atitude emocional, a mesma constelação mental que nele produziu o ímpeto de criar. Mas por que a intenção do artista não poderia ser comunicada e compreendida em palavras, como qualquer outro fato da vida mental? Talvez, no que concerne às grandes obras de arte, isso nunca seja possível sem a aplicação da Psicanálise. O próprio produto, no final de contas, tem de admitir uma tal análise, se é que realmente constitui uma expressão efetiva das intenções e das atividades emocionais do artista. Para descobrir sua intenção, contudo, tenho primeiro de descobrir o significado e o conteúdo do que se acha representado em sua obra; devo, em outras palavras, ser capaz de interpretá-la. (Freud, 1914: 253-54).

Para Freud, portanto, o essencial estaria em reconstruir a intenção inconsciente do artista por trás do efeito causado pela obra de arte, supondo-se que o efeito causado no espectador espelhasse a intenção do artista. Ora, isto nem sempre acontece. Ao falar de um objeto outro que não um analisando em seu divã (ou fora dele...), podemos fazer uma leitura em três direções possíveis: o autor do objeto, aquele(s) afetado(s) pelo objeto e o objeto em si. Por exemplo, o autor de um texto, os leitores deste texto e o texto em si. Laplanche defende que é possível fazer uma leitura psicanalítica de textos psicanalíticos, fazendo uso como instrumento do método psicanalítico e suas categorias heurísticas: atenção ao detalhe dissonante, reconstrução do contexto, a temporalidade própria instaurada pela psicanálise com seus conceitos-chave de repetição, retorno do reprimido, o a posteriori. Laplanche propõe “transpor, mutatis mutandis, o método freudiano de análise do indivíduo e seu desejo para as exigências de um pensamento, ou seja, àquilo que, no plano da discursividade, mais se aparenta a esse desejo”, sendo que neste caso “(...) percorrer a obra em todos os sentidos, sem nada omitir e sem nada privilegiar a priori, talvez seja para nós o equivalente da regra fundamental do tratamento”. Isso que dizer, entre outras coisas, destacar, da superfície inicialmente percebida do objeto (Laplanche privilegia o texto escrito, mas o método certamente vale para outras citações), “outras redes de significação”.

Fábio Herrmann propõe o conceito de inconsciente relativo, que defende ser necessário à conversão do método psicanalítico à pesquisa. Segundo ele,

“Cada relação humana comporta múltiplos níveis de determinação. E, para cada um, operações diferentes podem evocar, colocar em evidência, estruturas determinantes de diferente profundidade. A essas estruturas eu chamo de inconsciente relativo: é o que é determinado pelo choque de diferentes representações em um nível dado. (Herrmann, in Investigação e Psicanálise,m p. 137)”.

Um exemplo que esclarece o conceito é o de um texto sobre o qual se fazem vários outros, baseados no primeiro. Assim como o livro que foi escrito a várias mãos sobre o caso freudiano da jovem homossexual. Cada autor assumiu o ponto de vista de um personagem da trama. Herrmann nos dá caso semelhante, a partir do conto Missa do Galo, de Machado de Assis. Em ambos os casos, se os contos reunidos forem examinados, sem que se tenha acesso ao texto fundador, o pesquisador poderá concluir sobre a existência deste texto, e poderá ainda obter uma série de conhecimentos sobre o mesmo. O texto fundador então seria o equivalente ao inconsciente relativo da coletânea de contos. Diz Herrrman,

Cada vez que nos pomos em ação para estudar um conjunto de significações humanas psicanaliticamente, gera-se um inconsciente relativo que tem, que comporta um saber transferencial do estudioso em relação ao objeto estudado. Quer dizer, é como se evocássemos uma transferência. O objeto nos fala, estabelece um campo transferencial semelhante ao estabelecido na situação de consultório, sem que para isso o livro esteja deitado no divã. (Herrmann, in Investigação e Psicanálise,m p. 138).

Outro requisito importante é que a leitura do objeto estudado seja feita dentro de um referencial teórico próprio à psicanálise. Isto pode parecer óbvio, mas sem querer me aprofundar na polêmica “uma psicanálise ou muitas”, é necessário um enquadramento do problema em um referencial teórico. Isto não significa atribuir ao objeto estudado um significado prévio, mas como diz Renato Mezan, “Na situação analítica a teoria funciona como a estrela polar para o navegante: fornece coordenadas para o percurso, permite alguma idéia do rumo a tomar, mas não é o alvo que se quer atingir”. E as coordenadas para navegação devem pertencer ao campo psicanalítico, ou seja, levar em conta seus elementos fundantes: o conceito de inconsciente, de transferência, de repressão. Conceitos operacionais necessários para qualquer funcionamento de uma teoria que se queira chamar de psicanalítica. Qualquer formulação dentro deste enquadre teórico deve ainda apresentar as características de coesão interna, comunicabilidade, verificabilidade e cumulatividade, semelhantes às formulações científicas.

Outra questão: a diferença entre clínica e pesquisa. Em geral, a pesquisa clínica em psicanálise tem sido confundida com o trabalho na clínica. Mas atender pacientes não significa fazer pesquisa ou agregar conhecimento, muito menos elaborá-lo. De fato, não é possível fazer as duas coisas simultaneamente. Ao atender o analisando, o analista deve, ao contrário, livrar-se da teoria para bem escutar. Qualquer formulação teórica só pode ser feita em outro momento que não o da escuta analítica. Caso contrário, o próprio mecanismo inerente ao pensamento e desejo do pesquisador irá interferir no processo da análise, o que é um dos argumentos mais fortes contra o uso de escalas e questionários na avaliação das psicoterapias analíticas, embora o meio médico tenda a não reconhecer qualquer outro tipo de linguagem.

Não considero possível nem recomendável deixar o estudo deste fenômeno fora do âmbito institucional. Não importa que um dos motivos do aumento da participação da psicanálise nos meios universitários seja, a meu ver pelo menos, a nossa atual crise econômica, que dificulta a sobrevivência do psicanalista apenas com o que ganha em seu consultório e que torna atraente a perspectiva da estabilidade de uma carreira acadêmica. Como muitas vezes acontece, a necessidade é a mãe da invenção, e o trabalho no ambiente acadêmico traz a possibilidade de um arejamento de idéias e nova criatividade. Mezan cita o fato de que, se anos atrás a quase totalidade da literatura psicanalítica disponível consistia em obras traduzidas, hoje boa parte provém de autores nacionais. Enquanto que nas instituições há um direcionamento para determinadas maneiras de se pensar e praticar a psicanálise, que em certos casos chega a manifestar-se como censura e proibição de autores e idéias, na universidade tradicionalmente se permite maior pluralidade de pontos de vista em um espaço “mais neutro e menos carregado transferencial e politicamente” (Mezan, Internet, p. 1). Não se trata da ingenuidade de achar que na universidade há uma neutralidade ideal, que sabemos inexistente, mas as questões em jogo são outras, e neste caso trata-se de uma mudança que pode permitir que se crie onde antes, na instituição, o autor poderia circular em torno de seu próprio umbigo.

Outros tipos de aprendizado que costumam ser privilegiados na universidade são os relacionados à escrita e à resolução de problemas. Embora a psicanálise se centre na palavra e linguagem, o fato é que o psicanalista não recebe nenhum ensino específico para a escrita. Os textos psicanalíticos costumam ser redigidos em um estilo que em geral é peculiar à escola ou instituição onde surgiram. A habilidade de elaborar um texto longo com uma argumentação clara, amplamente compreensível, em bom português não vem automaticamente com o título de analista, mas é um requisito indispensável para que se faça uma tese ou dissertação minimamente dignas. Mezan fala do “doloroso aprendizado da escrita”. Além disto, não há também treinamento específico para a pesquisa. A palavra pesquisa pode assumir diversos significados, incluindo a simples busca de informações, e neste sentido até mesmo o próprio estudo pode ser considerado uma forma de pesquisa. Refiro-me aqui à pesquisa que implica em uma preocupação com o chamado “rigor intelectual” e com o trabalho com problemas. Rigor significando uma fundamentação e contextualização das afirmações que constituem o núcleo de cada texto. Sabemos que psicanalistas há que acham cômodo ou elegante não citar suas fontes, emulando Lacan, embora sem sua genialidade. Parece-me que daqueles que se considera mestres dever-se-ia aproveitar o que trazem de original e revolucionário, não seus defeitos.

Lidar com problemas, por outro lado, significa identificar um problema, armá-lo com os instrumentos conceituais adequados, trabalhar com a literatura pertinente e procurar resolvê-lo ou ao menos avançar na sua formulação. Herrmann fala desta dificuldade:

Vejo pessoas tentando fazer uma tese psicanalítica juntando elementos de história de gente (pacientes e não-pacientes) e em seguida colocando algumas teorias psicanalíticas e esperando que Deus ajude a juntar as duas coisas. Deus geralmente se declara neutro nessas horas, inclusive nosso pai Freud. Porque nem Deus consegue juntar uma simples história com teoria psicanalítica e obter alguma coisa. Assim, as teses tendem a ficar capengas. (Herrmann, in Investigação e Psicanálise,m p. 144).

Tal rigor não significa que o pesquisador deva seguir cegamente a postura positivista hegemônica da ciência. Uma pesquisa psicanalítica deve necessariamente lidar com a subjetividade e isto deve ser explicitado em sua própria formulação. Como diz Caetano, ‘não peço desculpas’, especialmente por não fazer uso de uma objetividade que, como bem sabe quem convive minimamente com os biologicistas, é no mínimo suspeita. Sobre isto Carol Sonenreich escreveu um texto contundente, ainda a ser publicado mas disponível na Internet, com fortes críticas contra as atuais classificações psiquiátricas e a chamada “medicina baseada em evidências”. O rigor do pensamento humano inclui a beleza da matemática mas não cabe na estatística. A universidade não vem certamente substituir a instituição analítica, não podendo funcionar como instância formadora ou transmissora, mas pode estabelecer-se entre as duas vertentes um diálogo que, se devidamente manejado, pode ser extremamente frutífero.

 

BIBLIOGRAFIA

FREUD, S. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]
1914. “O Moisés de Michelangelo”
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1917. “Conferências introdutórias sobre psicanálise”         [ Links ]

MEZAN, Renato. Sobre a pesquisa acadêmica em psicanálise: algumas reflexões”. Texto da Internet.        [ Links ]

SILVA, Maria Emília Lino da (Coord.). 1993. Investigação e psicanálise. Ed. Papirus. Campinas, SP.        [ Links ]

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