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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.6  Salvador  2004

 

ARTICULAÇÕES

 

Adeus utopias

 

 

Regina Andrade*

 

 


RESUMO

Os anos 60-70 são conhecidos pela vivência de utopias sociais, sexuais e emocionais. Discutia-se tudo inclusive mobilizações da Sociedade Industrial e das relações dos jovens. Este milênio apresenta nos filmes, uma possibilidade de elaboração do papel dos filhos desta geração. Dentre eles escolhemos Adeus Lênin (2003) do diretor alemão Wolfganger Becker para discutir o tema.

Palavras-chave: Consumo, Juventude, Afetos.


 

 

Para dar início a esta breve apresentação gostaria de justificar o título deste trabalho e marcar o ponto de onde ele se inicia. A inquietação provocada pelas mensagens dos filmes, de textos de imagens, de registros documentais ou ficções imaginárias provoca no pesquisador uma entrada, sem nenhuma permissão, às idéias dos diretores, aos textos dos filmes, uma entrada na tela. Devido a recorrência ao tema do Édipo em três filmes recentes passei à reflexão dos temas da morte, juventude, política e utopias. Os filmes que me provocaram estas indagações são:

AS INVASÕES BÁBARAS – Canadá e França – 2003 . Diretor: Denys Arcand.
BIG FISH – GRANDE PEIXE – EUA 2003 – Diretor – Tim Burton.
ADEUS LÊNIN Alemanha – 2003 Diretor – Wolfganger Becker.

Escolhi Adeus Lênin (2003) para esta reflexão pensando nas relações edípicas do personagem principal do filme e vivências ideológicas e políticas dos outros personagens. Chama a atenção de todos a docilidade dos filhos com relação aos pais, dos três filmes acima citados. Em todos os filmes os pais estão morrendo. No filme Adeus Lênin (2003) quem está morrendo é a mãe, uma senhora que abandonou sua vida particular para se dedicar ao regime comunista na Alemanha Oriental.

Automaticamente pensei na interpretação de uma geração, lutadora e oriunda da década de 60 que está por desaparecer, inclusive seus diretores de cinema, para dar lugar a uma nova leva de jovens que deverão ter cerca de 30 a 40 anos e que, se comporta como uma geração intermediária. Mas, neste mundo contemporâneo não temos mais ilusões e as utopias foram uma por uma desaparecendo.

O significado da palavra utopia é, país ideal em que tudo estaria organizado da melhor forma para a felicidade completa da população (tal como foi idealizado por Thomas More e outros utopistas); projeção de um futuro ideal; quimera, fantasia, concepção irrealizável. Utopia (1515), em sua origem é um livro escrito por Thomas More, produto de seu tempo, um exemplo do renascimento inglês. Há grande semelhança entre este livro e o livro A República de Platão, (382, a C), sobretudo são diálogos sobretudo com relação ao humanismo. As similaridades entre eles são várias: ambos são diálogos e contem a descrição de um Estado perfeito, apesar de razões diferentes. Utopia significa, no texto e correntemente também, “o lugar bom”, ou “nenhum lugar” como referência aos descobrimentos das Américas pode também invocar uma analogia às grandes descobertas inclusive da mente.

Thomas More foi chanceler do rei Henrique VIII e recusou sancionar o divórcio do rei com a Rainha Catarina e por causa disto foi preso e executado. Já no livro observa-se que nenhuma divisão rígida existe e que é muito parecido com a ideologia comunista. Há também uma apologia à família, ao autoritarismo do pai e é muito atenta a função materna.

Mais adiante os intelectuais da Escola de Frankfurt, como Marcuse, Walter Benjamim, e os intelectuais do existencialismo como André Breton, Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, tem um papel decisivo na popularização do termo “utopia” que passou a ser sinônimo de ideologias, políticas ou situações sociais de mudanças acontecidas no mundo durante o século XX após a Segunda Guerra Mundial.

Adeus Lênin (2003) é filmado no outono de 1989, durante a dissolução do comunismo da República Democrática Alemã e da queda do muro de Berlim. A sra. Kerner, (Kastrin Sass) é uma entusiasta do regime comunista, Christiane Becker (Kathrin Sass) é abandonada pelo marido, tendo que criar sozinha seus dois filhos Alexander (Daniel Bruhl)
E Ariane (Maria Simon). Uma vez recuperada do trauma da separação Chris torna-se uma cidadã ativa exemplar, transforma o país em substituto de seu marido, abraçando o idealismo político. Ao ver o filho ser preso em via pública, sofre um ataque cardíaco e entra em coma. Ao retomar consciência, oito meses depois, a Alemanha Oriental já não existe mais. Seu filho, Alex, (Daniel Bruhl), muito apegado a ela, desde que o pai saiu do país há dez anos, determinado a protegê-la de todo tipo de contrariedade, ordena que ela fique na cama e não saia do quarto. Ele imagina que, caso saiba do ocorrido, ela terá um novo ataque. Com a ajuda da namorada Lara (Chulpan Khamatova) e de vários amigos, Alex tenta evitar que a mãe entre em contato com o novo país capitalista. Mas as coisas se complicam quando um dia ele sai à rua e em encontra um mundo completamente mudado onde a vitória capitalista está presente.

O argumento do quarto filme de Wolfgang Becker é genial, mesmo podendo, a primeira impressão, parecer um acontecimento comum ou superficial.

Esta relação edípica entre filho e mãe revela um vínculo imaginário entre os dois cujo pacto principal é a negação da realidade. Como o Édipo é considerado como um conjunto, um complexo de desejos amorosos e hostis que a criança experimenta em relação a seus pais fica esquisito quando somente aparecem os sentimentos positivos. Quem faz clínica já ouviu os pais negarem toda a hostilidade da criança em relação a eles. Mas o que acho mais importante são as conseqüências que este modelo triangular pode oferecer a futura personalidade. Neste ponto só vimos Freud discutir os casos psicopatológicos, onde a neurose já foi estruturada, como o Fragmento da análise de um caso de histeria (1905) conhecido como o Caso Dora em que é relatado as complicações pelas quais passa sua paciente em relação a mãe, ao pai, a uma suposta amante do pai, às empregadas domésticas, etc, apresentando todo um quadro de dificuldades de definição de sua sexualidade. Será desta relação que surgirá o superego e o ideal de ego tão bem explanados em Totem e Tabu (1913-1914). Se o superego é o herdeiro do complexo de Édipo é também o fundador da proibição do incesto. Neste sentido todos os três filmes colocam os limites do permissível ou proibitivo bem a vista.

Por exemplo, a sensibilidade que o filho Alex tem diante da doença da mãe, e a cerimônia com que trata certas situações evidencia a fragilidade do vínculo entre ambos. O abalo provocado por mudanças ideológicas reflete na saúde, a percepção repentina de enganos revelações nunca antes pensadas nem faladas, como a Snra. Kerner que escondeu o verdadeiro paradeiro do pai, podem levar a morte porque rompe com ideologias racionais montadas para o equilíbrio da personalidade. Como diz Noberto Elias (2001) no livro A Solidão dos moribundos, a característica específica das sociedades contemporâneas e das estruturas de personalidade associadas a ela são responsáveis pelas peculiaridades da imagem que se tem da morte e de nossa atitude diante dela. Em outro trabalho, Susan Sontag (1984) A doença como metáfora observa que tem sido um processo penoso chegar a um acordo com a morte em sociedades industriais avançadas, onde a morte tornou-se um acontecimento agressivamente sem sentido.

Mas temos que ouvir o que Sigmund Freud sobre a morte, ele que viveu intensamente as duas primeiras guerras mundiais, foi vítima nessa duas guerras e escreveu um artigo interessante Reflexões para os tempos de guerra e de morte, (1915) cerca de seis meses depois de deflagrada a Primeira Guerra Mundial, na qual perdeu um filho. Neste texto estão algumas reflexões sobre a morte sendo que uma das principais diz que “é impossível imaginar nossa própria morte, e, sempre que tentamos faze-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores” (1919 p. 327). Neste sentido podemos interpretar que a morte pode ser uma utopia no sentido restrito do termo, isto é algo que nos arrebata “para lugar bom, que não é nenhum lugar”. Teríamos aqui que discutir a quantidade de religiões que através da ilusão propõe a subsequência da vida.

O criador da psicanálise pensa que na guerra esta concepção tende a mudar porque “as pessoas realmente morrem, e não mais uma a uma, porém muitas, frequentemente dezenas de milhares, num único dia (idem, p. 329).

Os anos 20, apesar de ser um período de pós-guerra foi tormentoso em especial na Áustria e em toda a Europa. Os países lutavam para recompor suas economias e os austríacos passaram por um período de experiências sociais tensas, enfrentando o impasse entre a “Viena Vermelha” e as províncias católicas, entre o Partido Social Cristão e Social-Cristão. Havia um saudosismo dos resplandecentes dias de glória do império austro-húngaro. Neste pós-guerra a psicanálise cresceu e se firmou como uma fonte para a intelectualidade austríaca e Freud, mais do que nunca foi identificado como judeu.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Freud novamente foi atacado, agora em sua intelectualidade, em sua condição de raça novamente na perda de familiares queridos. Uma das exigências das autoridades austríacas para liberarem Freud e sua família foi o retorno do estoque de suas obras que Martin Freud, prudentemente havia enviado à Suíça. Exigiram este retorno para queima-las. O impasse se formou porque Freud não tinha mais dinheiro líquido em mãos e se não fosse a rapidez da Princesa da Grécia Marie Bonaparte, que não poupou esforços para retira-lo de Viena, ele teria morrido em Campo de Concentração. Grande parte de suas economias foi dada para salvar suas quatro irmãs, uma vez que Anna, a mais velha e Ely (irmão de sua esposa) emigraram para os Estados Unidos e viveram em Nova York durante anos. Mas as outras Pauline e Mitzi foram deportadas para o campo de concentração de Treblinka. Rosa morreu no campo de Auschwitz e Dolfi morreu de fome em Theresienstadt.

Todos seus amigos ficaram inquietos com sua presença em Viena. Coube a Ernest Jones conseguir os argumentos para persuadir Freud a emigrar para a Inglaterra e a Marie Bonaparte, os recursos, na época, dez mil dólares. Freud queria levar toda sua família incluindo os parentes afins, junto com seu médico e família, num total de dezesseis pessoas. A autorização dos vistos de saída foi muito demorado e difícil de conseguirem. A Princesa ficou com os Freud cerca de dois meses provendo-os de recursos e os protegendo das explorações dos bárbaros. Relatam os biógrafos que Marie Bonaparte “foi infatigável nas intermináveis perambulações até os funcionários e as autoridades”.

A estafante viagem da família de Freud teve início em 5 de maio, com a partida de Minna Bernays, irmã de sua esposa e terminou, por fim em sábado, 4 de junho quando deixou de vez sua residência de toda vida o 19, Bergasse, hoje transformado em Museu. Mas como escreveu Freud “a segurança chegou ás 2:45 da manhã de 5 de junho, quando o Expresso Oriente cruzou a fronteira com a França em Kehl” (Gay, 1989, p. 568). Sua passagem por Paris foi repousante na bela mansão da Princesa Bonaparte e no aconchego dos amigos.

Assim Freud aos 82 anos, experimentou o exílio até sua morte no dia 23 de setembro de 1939. Desta última vivência de guerra, pouco sabemos das reflexões de Freud além de nossa imaginação, da primeira guerra temos vários trabalhos e artigos publicados sobre o tema. Em sua obra eletrônica a palavra “guerra” aparece em 93 vezes em várias obras. Dentre os mais importantes temos cartas trocadas entre Freud e Einstein em 1933, que o Instituto para Cooperação Intelectual promoveu para troca de correspondência entre intelectuais “ a respeito de assuntos comuns” no texto Porque a guerra? (1932) e A psicanálise e as neuroses de guerra (1919)

O processo de negação acompanha a angustia de morte da Sra Kerner e Alex. O filho nega, no filme que sua mãe está moribunda e nega que o regime político havia sido modificado e nega seus sentimentos edípicos de hostilidade. Mas é Freud também que nos fala sobre particularidades do Édipo. O personagem tem um pai que desapareceu e que ele foi a busca encontrando-o com uma nova família e com a vida já refeita em situações diversas de sua família original. Apesar do complexo de Édipo, ser considerado por Freud de forma radical, tendo uma compreensão do pai como um arquétipo portador da Lei e como marca inconsciente dos representantes da castração.

Justamente neste sentido a neurose se instala e dela não há como escapar. Nem na rede pessoal nem no tempo social. No texto O futuro de uma ilusão (1927) é muito claro a separação que Freud faz da massa/filho para líder/pai, que é um conceito de Bruner que tenta colocar pai e filho em posição similar revelando uma espécie de acordo entre pais e filhos para que se mantenham as fantasias, as utopias, os sonhos.

Fico assim com a observação de José Bruner no artigo Oedipus Politicus de 1995, no livro Freud conflito e cultura onde ele diz que:

Em parte alguma dos escritos de Freud encontram-se exemplos de pessoas que se rebelem contra déspotas por terem tido sua vida e seus bens, seus direitos e seus interesses ameaçados ou violados por lideres autocráticos. No discurso freudiano as rebeliões aparecem invariavelmente, como obra de massa/filhos que recusam obediência a lideres/pais por não conseguirem tolerar as restrições que estes impõem (Bruner, 1995, p. 85)

Se este teórico percebe assim, o édipo como se fosse uma forma de acordo, a colocação do cineasta Diretor Wolfganger Becker em Adeus Lênin (2003) procede.

Concluindo gostaria de deixar uma pergunta no ar: será o édipo também uma utopia um bom lugar imaginário para o qual nos dirigimos sempre?

 

FILMOGRAFIA

Ficha Técnica:
Adeus Lênin!
(Good By Lênin) Alemanha – 2003 Diretor Wolfganger Becker com Daniel Bruhi, Katrin Sab e Maria Simon
Mulher entra em coma dias antes da queda do Muro de Berlim. Para evitar que ela se assuste após recobrar os sentidos, o filho elabora um plano para disfarçar a vitória capitalista. ( A TARDE – Salvador)
Na Alemanha Oriental em 1989, mãe presencia o filho protestar contra o regime político e ser preso pela polícia. Ela sofre um ataque cardíaco e entra em coma. Alguns meses depois ela recobra a consciência mas o mundo passou por uma série de mudanças. (JORNAL DO BRASIL – Rio de Janeiro)

AS INVASÕES BÁRBARAS
(Lês invasions Barbares) Canadá, França, 2003 de Denys Arcand. Com Rémy Girard, Sthefane Rousseau, Dorothé Berryman e Louis Portal.
Hospitalizado homem recebe velhos amigos e dialoga sobre o fracasso da civilização ocidental. Oscar de melhor filme Estrangeiro. (A TARDE – Salvador)

PEIXE GRANDE
(Big Fish) EUA. 2003. de Tim Burton. Com Ewan McGregopr, Albert Finney, Jéssica Lange, Danny de Vito e Billy Crudup
Narra a história de um homem que conta casos exagerados que encantam a todos menos ao filho adolescente. (A TARDE – Salvador)

 

BIBLIOGRAFIA

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FREUD,S Introdução a psicanálise e as neuroses de guerra. (Trad. Jayme Salomão). In. Obras Completas (vol. XVII, pp. 257-270) Rio de Janeiro: Imago 1974 (Publicada originalmente em 1919)        [ Links ]

FREUD,S Reflexões para os tempos de guerra e morte (Trad. Jayme Salomão). In: Obras completas (vol XIV, pp. 310-341) Rio de Janeiro: Imago 1974. (Publicada originalmente em 1915).        [ Links ]

FREUD, S Recordar, repetir e elaborar. (Trad. Jayme Salomão). In: Obras completas (vol XII, pp. 191-203) Rio de Janeiro: Imago 1974. (Publicada originalmente em 1914).        [ Links ]

GAY, P. Freud, uma vida para o nosso tempo. Tradução de Denise Bottmann. Companhias das Letras, São Paulo, 1988        [ Links ]

GIDDENS, A Modernidade e identidade. Tradução de Plínio Dentzien. Jorge Zahar Editor, São Paulo 2002        [ Links ]

LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Editora Zahar, Rio de Janeiro, 1964        [ Links ]

LAPLANCHE, J. Pontalis, J Dicionário de psicoanálisis. Editorial Labor, Primeira edição, Espanha 1971        [ Links ]

ELIAS, Nobert. A Solidão dos moribundos, seguidos de, Envelhecer e morrer. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. , 2001        [ Links ]

SONTAG, Susan. A doença como metáfora. Rio de Janeiro. Edições Graal, 1984. (Coleção Tendências: v.n 6).        [ Links ]

 

NOTA

*Professora Titular do Programa de Pós Graduação em Psicologia Social da Universidade do Rio de Janeiro (UERJ), autora do livro Personalidade e Cultura (Ed. Revan 2003).

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