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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.6  Salvador  2004

 

ARTICULAÇÕES

 

O mal-estar do professor em sua relação com a violência do aluno

 

 

Renato Sarieddine Araújo

 

 


RESUMO

Neste estudo busca-se compreender a gênese do mal-estar dos professores de segundo grau, no contexto da contemporaneidade. O trabalho docente foi analisado a partir da dimensão imaginária do reconhecimento, vista como inerente à função de educar e confrontada com um lugar diverso ou “descartável” em que o aluno o representa.

Palavras-chave: Mal-estar, Contemporaneidade, Professor.


 

 

Este trabalho tem origem na investigação realizada para dar corpo a algumas questões suscitadas a partir da grande freqüência de relatos de professores e matérias veiculadas na mídia em geral, onde o aparecimento do tema da violência associava-se à instituições escolares, como nas seguintes situações: a) relato ouvido pelo rádio, no horário eleitoral gratuito de 2002, de uma professora, candidata ao governo de Minas Gerais, que havia se deparado, na feira de artesanato de Belo Horizonte, com um adolescente que vestia uma camiseta onde se podia ler a frase “não mate a aula, mate o professor”; b) as freqüentes queixas que se ouviam, vindas de diferentes professores, acerca do desgaste a que estavam submetidos; c) constantes descrições de cenas de violência, vividas ou presenciadas por professores, no ambiente escolar.

O tema da violência, abordando questões que envolvem professor e aluno, tem sido bastante discutido e veiculado nos meios de comunicação, a exemplo da reportagem divulgada pelo jornal “O Estado de São Paulo” de 15/04/2001, intitulada “Porque será que eles nos odeiam tanto?”. Esta reportagem apresentava o relato de um professor de matemática de uma escola de periferia da zona leste de São Paulo, com 2.400 alunos de 1º e 2º graus. Nessa escola, certo dia, um aluno drogado, dentro da sala de aula, bruscamente e em tom de ameaça, perguntou ao professor, alvo da reportagem, se ele tinha seguro de vida.

Fatos como este geraram curiosidade e questionamentos suficientes para o desenvolvimento de um estudo a respeito do mal-estar do professor, em relação à violência do aluno. Consideramos que esta não é uma questão simples, já que a escola reproduz certos sintomas sociais contemporâneos, os quais, segundo o psicanalista Éric Laurent (1999), exigem uma leitura diversificada, em função de sua causalidade múltipla.

Os resultados, como se poderá ver, permitem pensar que a violência identificada na escola está situada em um contexto mais amplo que os muros da mesma. Isto porque, enquanto um sintoma próprio do mundo contemporâneo, regido pelos apelos do que Lacan (1993) chamou de discurso capitalista, a violência geradora de mal-estar, denuncia sérias desregulações naquilo que diz respeito ao laço social, o que inclui o vínculo educativo e a autoridade epistêmica.

Segundo os professores 1, a maior recorrência, de violência do aluno no contexto escolar são de fenômenos como a apatia, a desatenção e o desinteresse dentro da sala de aula. Entretanto, fora da sala de aula, a violência é relatada como falta de delicadeza e de cordialidade dos alunos para os professores, por exemplo, quando não são cumprimentados pelos alunos nos corredores da escola.

Através do levantamento dos dados, observa-se também que o mal-estar do professor está vinculado a variados fatores do seu cotidiano, além da sua relação com o aluno. Referem-se à questão salarial que consideram proporcionalmente injusta, pois dedicam-se integralmente ao seu trabalho, ao conteúdo da disciplina que o professor tem a obrigação de ensinar e que, por vezes, não condiz com o que o professor acredita, também entra na origem do mal-estar destes profissionais. A relação com outros professores é uma fonte de sofrimento, assim como a falta de reconhecimento do seu trabalho pela comunidade em geral, incluindo-se aí os alunos, os pais, e a diretoria do colégio.

Todos os professores que responderam ao questionário dizem sentirem-se mal quando, apesar de sua dedicação e seriedade, o aluno permanece desinteressado na sua aula, ou não consegue assimilar a disciplina ensinada, não apresentando resultados desejados. Os alunos demonstram apatia ao que eles ensinam e têm até mesmo apatia ao professor, isto, segundo os professores é uma desconsideração por parte dos alunos.

Percebe-se a partir das respostas dos professores entrevistados a descrição de situações vividas, onde é transmitida uma idéia de que estes professores se sentem colocados em um lugar de pouca importância em relação aos seus alunos. Como disse o professor entrevistado, “consideram o professor como empregado seu”. Esta afirmação demonstra que uma lógica do discurso capitalista (LACAN: 1993) está inserida no contexto da relação professor/aluno. A educação vislumbrada como um gadget, ou objeto ao qual se paga para ser consumido. O professor é um representante da lei, da autoridade e no discurso capitalista não há lugar para a lei. A lei neste registro não serve sequer para dar prazer transgredindo-a, ela simplesmente é ignorada (SANTOS e TEIXEIRA: 2004).

Na narrativa do livro Totem e Tabu, Freud descreve o mito da horda primitiva. Esta horda teria um pai tirano que tinha a exclusividade na posse sexual das fêmeas, negando aos seus filhos a realização de seus desejos sexuais. Os filhos, para se livrarem de tal opressão, se unem e assassinam o pai. O desejo de tomar o lugar vazio que outrora era ocupado pelo pai toma conta de todos. Contudo, o medo de ter o mesmo fim que teve o pai faz com que os filhos desistam de tal ambição. Abrir mão de por em ato o desejo de dominar os outros irmãos e recalcá-lo, para permanecer existindo, pode ser visto como o primeiro fundamento do laço social. “Os preceitos do tabu constituíram o primeiro ‘direito’ ou ‘lei’. [...]O primeiro resultado da civilização foi que mesmo um número bastante grande de pessoas podia agora viver reunido numa comunidade” (FREUD: 1930, p. 120-121).

Existem outros elementos que fundam o laço social, além do medo e do desejo de auto-preservação. Lacan, no “Seminário 17”, se refere a quatro modos de “organização da comunicação, sobretudo da linguagem, específica das relações do sujeito com os significantes e com o objeto, que são determinantes, para o indivíduo” (CHEMAMA: 1995, p. 47), esses modos de organização da comunicação, ou discursos, geram e regulam as formas do laço social. Em 1970, Lacan refere-se à quatro discursos: o discurso do mestre, do universitário, da histérica e do analista. Trabalhando nos dois primeiros discursos, o do mestre e do universitário, Lacan recorre à chamada dialética do senhor e do escravo, extraído a partir do pensamento de Hegel, para tratar do tema do reconhecimento, da consciência de si ou da subjetividade. Hegel (1992) ao se referir, abstratamente, a um combate de vida e de morte entre dois sujeitos, mostra que um deles, ao se colocar diante da possibilidade da morte, se angustia e prefere a rendição e a escravidão. Contudo, o texto hegeliano se funda numa concepção dialética da História, o que faz com que os lugares de senhor e de escravo não sejam perenizados, sendo intercambiáveis, o que indica também a permanência de uma luta não apenas entre eles, mas uma luta determinada pela própria dinâmica da história humana, das relações entre os homens. Assim, em seu texto, Hegel mostra que o verdadeiro senhor não é aquele que venceu o escravo. Na verdade, o senhor absoluto é a morte.

Nesta alegoria hegeliana, um laço se faz entre estes dois personagens, mas somente depois do momento da rendição, pois muda-se da simples lógica da violência “ou ele, ou eu” (BERGERET: 1984, 104). Passa-se, então, a existir da parte do escravo, um dos dois itens essenciais para o fundamento do laço social: a renuncia ao desejo de dominação do outro (assim como aconteceu no estágio posterior à horda primitiva, no livro de Freud, “Totem e Tabu”). Em contrapartida, fica evidente, na figura do senhor, o segundo elemento necessário à efetivação do laço social, que é uma espécie de demanda do outro, o reconhecimento. Pois só assim o senhor pode se constituir subjetivamente, como senhor.

Em 1970, ainda no “Seminário 17”, Lacan localiza o mestre e o escravo do seu tempo. O papel do escravo estaria encarnado no universitário e o do mestre 2, na universidade, que detém o saber. Logo, ele afirma que na modernidade, o discurso dominante seria o do universitário.

Conseqüência: tirania do saber, que exige, a qualquer custo, a obediência ao mandamento do saber, a ordem que se apresenta como a verdade da ciência. Essa ordem pode ser assim formulada: “Tudo pelo o saber!” ou “Saiba tudo sobre tudo, sem nada deixar escapar”. Podemos continuar a formulação do imperativo epistemológico: “Não importa o que aconteça, continue avançando; continue trabalhando para o saber”. “Não importa os meios nem os fins - não deixe de produzir saber”. (QUINET: 2004, www)

Pode-se aqui, para avaliar a importância desse discurso, evocar uma passagem do “Fausto” de Goethe, em que o protagonista faz um pacto com Mephistópheles, negociando a sua alma, colocando-a como moeda de troca pelo grande “objeto de desejo” daquele tempo, isto é, o saber.
Contudo, em “Televisão” (1974) Lacan corrige-se do que afirmara em 1970, no “Seminário 17”, e localiza o mal-estar da modernidade nas relações dos homens com o capitalismo. No lugar do escravo universitário e do mestre universidade, ele coloca o escravo como proletário e o mestre como capitalista e, daí, o nome discurso capitalista. Afirma que o discurso dominante na nossa sociedade é o capitalista e “não o discurso da universidade como discurso do mestre moderno.” (LACAN apud QUINET:2001; p.16)

Logo, nos dias de hoje, o Fausto contemporâneo não trocaria a alma pelo saber, mas sim pelo dinheiro, que representa a promessa de obtenção do gozo pleno, através da aquisição dos gadgets, que funcionam tamponando a falta, em uma lógica perversa de querer foracluir a castração (ALBERTI, 2000). Os gadgets são os objetos, objetos esses oferecidos pela sociedade regida pelo discurso capitalista, como objeto de desejo. Afinal, o discurso capitalista é o carro chefe da atualidade, regido por imperativos, dele vem a ordem imperativa: “goza!”.

O gozo não é mais impossível, pois a via da fantasia não garante mais que o gozo se limite à transgressão da lei. O gozo emerge sob a forma de um real sem lei, e não contra a lei, na contemporaneidade. Ele não se opõe a essa ou aquela restrição legal. Ele se apresenta desencadeado pelas vias simbólicas, como puro sem sentido. (SANTOS e TEIXEIRA: 2003, www)
Na lógica do discurso capitalista, o sujeito é seduzido a se destituir do seu mal-estar e da sua insatisfação, ou seja, o discurso capitalista sugere a possibilidade de gozo completo e acaba promovendo, nas configurações da lógica da mais-valia, o rompimento do laço social. Quando o proletário com seu trabalho produz um valor maior do que ele recebe, este excedente ou este plus, torna-se um mais-de-gozar, para o senhor capitalista. Ao capitalista passa a interessar somente este excedente, justamente para com ele gozar. “É como se pudéssemos dizer: o discurso do capitalista não exige a renúncia pulsional” (ALBERTI: 2004, www), já que as relações são estabelecidas com objetos de consumo e não com pessoas (QUINET, 2001). Desta maneira apagando a necessidade subjetiva do laço social nas relações que passam a ser simplesmente em função da lógica do lucro.

Poderíamos ainda, apenas a título de curiosidade, evocar o mito de andrógino, para uma reflexão sobre o discurso capitalista com seus gadgets. Neste mito, dois seres são unidos e recompostos em uma plenitude que “anula a separação dos sexos” (BRANDÃO: 2001, p. 40). As divindades gregas, por exemplo, têm um quê de androginia e não precisam de parceiros para a procriação. O andrógino não precisa de ninguém para se relacionar sexualmente. No discurso capitalista, não é a união de dois seres que traz a “nostalgia da totalização” (BRANDÃO: 2001, p. 41), mas sim o consumo do gadget, o que daria lugar àquilo que Alberti (2004) chama de gozo autista. Não é mais uma parceria que dá a ilusão de uma completude, mas são os objetos, já que “os homens da opulência não se cercam mais de outros homens e sim de objetos – carros, televisões, computadores, fax, telefones; suas relações sociais não estão centradas nos laços com outros homens, mas na recepção e manipulação de bens e mensagens” (Quinet: 2002, p. 90).”

Quando um professor afirmou que: “Há alunos que não estão interessados nas aulas. Parece ser um peso estudar. Já vêm às aulas desmotivados.” Sem dúvida faz referência a sérios conflitos e aqui se pode observar uma questão muito importante, ou seja, a do vínculo educativo, uma forma de laço social.

O vínculo educativo supõe, assim, o agente, aquele cuja função é causar o interesse do aluno pelo legado cultural, pelo patrimônio simbólico que porta, mas o agente deve ser o primeiro a estar causado, causado pelo desejo de educar, que é oposto à homogeneização. O desejo do educador é aquele que não apaga a particularidade do sujeito com respostas estandardizadas. O agente porta, então, um saber, saber que define o vínculo educativo, que é a via da função civilizadora e, por isso, deve ser mantido vivo para que a relação não se torne uma relação do eu-você, imaginariamente geradora de tensões e agressividades. Para que aconteça o processo educativo é também necessário o consentimento daquele que se educa. O sujeito pode dizer sim ou não e Tizio deixa isso claro quando fala que a educação é uma oferta que aspira criar o consentimento que nem sempre acontece (TIZIO: 2003, p. 175).

Mais que nunca se vê que a autoridade epistêmica não pode ser imposta. Ela é autorgada, concedida “a alguém se seu desejo trabalha a letra do texto para vivificá-la com sua enunciação e para criar uma nova ignorância (...) Se não há um mínimo de autoridade epistêmica, não se pode ativar o vínculo educativo”(TIZIO: 2003, p.174). O que acontece, segundo esta autora, é que, na atualidade, temos um problema ético grave, já que há uma abstenção generalizada do exercício da autoridade, em diferentes planos. Os profissionais da área da educação não se isentam disso.

 

BIBLIOGRAFIA

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Arquivo capturado em 06/02/2004

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NOTAS

1 Foram objeto de estudo desta pesquisa 36 sujeitos provenientes de três escolas da rede particular de ensino médio de Belo Horizonte, somando um total de 18 professores e de18 alunos. Estes alunos pertenciam às três séries do ensino médio e, segundo a direção das escolas, já se haviam envolvido em alguma situação considerada inadequada aos padrões daquela escola.
2 No francês a palavra maître, ao contrário do português, é habitualmente utilizada pelo aluno quando este invoca o professor. O termo professeur é empregado apenas em solenidades e somente para os docentes que atingiram o grau mais elevado da titulação hierárquica universitária. Mas como no português, a palavra maître também pode ser empregada para se referir à figura do senhor, contraposta à do escravo.

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