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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.7  Salvador  2006

 

CAMINHOS DO DESEJO

 

O analista na relação do sujeito com o desejo

 

 

Eny Lima Iglesias *

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

A autora discute a relação do sujeito com o desejo partindo das questões levantadas no debate ocorrido na França a partir da publicação do "O livro negro da Psicanálise. Viver e pensar melhor sem Freud" abordando a crítica feita por E. Roudinesco.

Palavras-chave: Sujeito, Desejo, Atualidade, Psicanálise.


 

 

Nesses tempos de tantos questionamentos e quebra de tantos padrões ficamos perplexos ante o que nos espera. No último mês de setembro de 2005 foi lançado na França um livro intitulado: "O livro negro da Psicanálise.Viver e pensar melhor sem Freud". A obra está composta de textos reunidos por uma editora, e redigida por 40 autores que dividiram em quatro partes. Elisabeth Roudinesco1 fazendo seus comentários e críticas acerca do livro diz: os dados são falsos, as afirmações inexatas, as interpretações por vezes delirantes. Escrito em uma linguagem denunciadora e violenta, apresenta uma total radicalidade a toda e qualquer tentativa de explorar o inconsciente, ao tempo em que visa reduzir o indivíduo a soma dos comportamentos. Fica implícito o convite aos pacientes para deixarem seus terapeutas e juntarem-se àqueles que atualmente seriam os únicos a poder curar a humanidade de seus problemas psíquicos: os terapeutas conigtivos comportamentais.

Os autores acusam os freudianos de terem invadido a mídia com golpes de propaganda e mentiras. Freud é o mais atacado: mentiroso, falsário, propagandista, pai incestuoso, misógino, viciado em cocaína, dissimulador, um ditador que enganou o mundo inteiro com uma falsa doutrina. A psicanálise seria assim desprovida de saber clínico e os psicoterapeutas acusados de serem os servidores da falsa ciência freudiana. O Édipo é uma mentira. Freud também é acusado, como todos os seus sucessores, de ter deixado seus pacientes em estado de desordem atroz e de ter inventado falsas curas. Francoise Dolto, por exemplo, é colocada como responsável pela crise da família ocidental, e mais, teria transformado em tirânicas e impossíveis de educar a totalidade das crianças de hoje em dia. Todos os movimentos psicanalíticos são denunciados como lugares de corrupção e os psicanalistas são acusados de terem cometido crimes: 10.000 mortos na França, entre toxicômanos, que foram introduzidos em ineficazes tratamentos de substituição.Os psicanalistas são igualmente acusados de terem infligido verdadeiras torturas interpretativas por isso os responsáveis por esse livro conclamam o grande público e a mídia a desconfiar dos tratamentos psicanalíticos: deixar o divã, parar de tomar antidepressivos e confiar nos terapeutas cognitivos comportamentais para solucionar seus problemas. A terminologia usada evoca o processo de caça às bruxas: mistificação, impostura, possessão, premeditação, assassinatos, mortes, complô etc. Tal é o vocabulário freqüente na escrita azeda desses que se tomam por grandes especialistas da história das ciências, da medicina, d a psiquiatria etc., e que têm como visão da história o eixo do bem e do mal: o mal sendo Freud, seus subordinados e seguidores, o bem é o grande exército vingador de seus caluniadores, ligados à medicina de pobres e que estão partindo em cruzada contra a arrogância midiática e intelectual dos malvados analistas que alastraram o império terrestre aplicando convenções e mentiras.

A França e os países latino-americanos são tratados de países atrasados, como se a psicanálise tivesse encontrado refúgio ali por razões obscuras, enquanto era banida nos países civilizados. Roudinesco lembra que a psicanálise integra o programa do "baccalaureat" e não pertence a nenhuma comunidade psicanalítica, mas à história da cultura universal, está implantada em 41 países e em via de expansão nos países do bloco soviético, onde esteve proibida, assim como no mundo árabe e islâmico. A crise da psicanálise, diz ela, que é real, tem múltiplas causas que nunca são evocadas pelos autores, que abandonaram todo espírito crítico para se voltar à denúncias extravagantes.

Roudinesco acha que o objetivo desse lançamento editorial é de um lado prejudicar a psicanálise e seus representantes - que em contexto de crise, na França, se soma ao de votação de uma lei sobre o estatuto dos psicoterapeutas. O outro objetivo do livro é realizar uma clássica operação de comercialização.

Roudinesco acrescenta nas suas observações que a grande maioria dos psicanalistas se afastou da vida pública e de todo engajamento político (por opção ao trabalho na clínica), esse recuo foi nefasto. Porque ao recusar o engajamento no social deixaram o lugar para aqueles que desonram a disciplina com diagnósticos violentos ou proposições ridículas sobre as transformações da família, costumes e novas práticas sexuais, não contribuem com a necessária crítica à própria doutrina preferindo disputar suas querelas intermináveis na cena pública.

Por último, ela espera que a nova geração psicanalítica não se engane sobre a significação desse Livro Negro que, certamente, conhecerá o destino de todas as publicações desse gênero explosivo. Deve-se à novíssima ideologia da revisão sistemática um dos principais elementos dessa pulsão avaliadora que invadiu as sociedades liberais e reduziu o homem a uma coisa e o sujeito a uma mercadoria, ao tempo em que pretende obedecer aos princípios de um novo humanismo.

São impactantes as considerações feitas pelos autores do "Livro Negro" e ainda mais significativos os comentários finais de Roudinesco sobre o impacto na opinião pública e principalmente nos pacientes em sofrimento. Ela afirma que este impacto prejudicará o conjunto da comunidade psicanalítica caso insista em desconhecer as querelas historiográficas e os debates em curso no mundo inteiro, nos últimos 20 anos.

Quero orientar esse trabalho visando debater essas questões que causam tanta intriga e dificuldades.Estamos nos meandros do desejo e é pela fala, como lugar do desejo,onde estão os recursos que precisamos, mas , como Sócrates nos ensina, o desejo é antes de tudo falta de recursos.2

Diz Lacan que nossa função, nossa força, nosso dever, é certo, e todas as dificuldades se resumem no seguinte: é preciso localizar aí o significante faltoso. O desejo não pode se situar, se colocar, e ao mesmo tempo se compreender senão nesta alienação fundamental, que não está simplesmente ligada à luta do homem com o homem, mas à relação com a linguagem3, pois a imposição do significante sobre o homem é ao mesmo tempo aquilo que o marca e o que o desfigura.4

A crise da psicanálise faz parte da ambivalência estrutural do ser humano. Desde o descobrimento da psicanálise por Freud observamos que toda a história do movimento psicanalítico está permeada por dificuldades que decorrem do fato que nem tudo é significante na estrutura do sujeito. O sujeito barrado é efeito do significante que na sua mobilidade e criacionismo engendram a oposição e origina as formações do inconsciente e, dessa forma, coloca em evidência o sujeito do inconsciente. Entretanto, não é suficiente pensar a prática analítica com o campo significante: o sujeito é por um lado efeito do significante e por outro se apresenta na experiência analítica com uma inércia, uma resistência proveniente da sua estreita vinculação, através da fantasia com o objeto. Temos na estrutura um outro elemento que é o objeto. Já o objeto se comporta de modo totalmente contrário, determinando a inércia visível na própria consistência da estrutura neurótica. Essa inércia é a fundadora da repetição onde se situam todas as dificuldades do trabalho psicanalítico.

Freud em 1920, em Além do Principio do Prazer diz que subjacente a compulsão à repetição está a pulsão de morte. A pulsão é definida como força constante, imperiosa e radical e que busca satisfação.Essa satisfação é impossível,diz Freud, porque o objeto que daria a satisfação à pulsão seria das Ding,5 a Coisa, não existe. Isso obriga a pulsão a insistir o tempo todo para conseguir um objeto que a satisfaz parcialmente. Precisamos de alguns recursos para que essa força pulsional destrutiva não funcione de forma autônoma e automática.

Por isso entramos na fantasia para que ela limite o gozo, reduza o empuxo ao gozo e desse modo a pulsão de morte é sexualizada, ou seja, entra no registro do gozo fálico. Esta é a função da fantasia, dominar o gozo por meio da relação com o objeto, o meio de sossegar o gozo colocando-o dentro do princípio do prazer. O gozo por seu próprio movimento se dirige ao desprazer e não ao prazer. Além do princípio do prazer o que existe é uma dimensão de gozo e a fantasia aparece como meio de articulação com o que corresponde ao princípio do prazer. A fantasia é uma tela que filtra o real. O próprio comportamento da pessoa é uma demonstração de suas fantasias. A fantasia se apresenta ao trabalho analítico como um limite e como uma resistência à intervenção do analista, em decorrência de que há uma pergunta sobre o Outro que tenta ser respondida pela fantasia. O excesso de gozo que define a fantasia fundamental se apresenta na experiência como o não tocado, não atingido diretamente pelo significante. "A fantasia vai servir de suporte para o desejo" 6. É por onde circula o desejo, e o objeto vai estar em torno do que gravitam nossas fantasias. O -objeto a - não se situa como um objeto cujas qualidades específicas satisfariam o desejo por sua presença ou frustrariam por sua ausência, sua função é ser causa de desejo, suscitá-lo. O objeto a tem varias aparências imaginárias que Lacan denominou i (a), ou seja, imagens de a que podem ser construídas por intermédio do simbólico, dos significantes do Outro. Mas a dimensão que mais importa é seu estatuto real, que lhe confere sua ex-sistência, é essa dimensão que Freud chamou das Ding, a Coisa.7

Tudo começa a partir do real, ele constitui a base da estrutura do sujeito falante. O simbólico tem seu lugar efetivamente a partir do real. Do campo do simbólico o sujeito pode olhar para o falo ou olhar para o furo. O olhar contínuo para o furo pode ser considerado como da mesma ordem que a psicose, e a exclusão do furo, ou seja, o contínuo olhar para o falo, homóloga à estrutura da neurose.8

A análise opera no simbólico, seja caminhando do imaginário para o real, seja, ao contrário do real para o imaginário. A análise faliciza, sexualiza onde o furo se exarceba e perfura onde o falo se exorbita. Nesse sentido a direção do tratamento deve levar em conta a tendência masculina ou feminina predominante no sujeito. Há de fato uma frequência mais acentuada da posição masculina pelos sujeitos e isso se explica pelo horror ao feminino.9

Constatamos também, pela própria experiência analítica, que o sujeito é marcado, perturbado pelo sintoma, na medida em que o sintoma é também aquilo que o liga a seus desejos. É porque não sabe o que fazer com seu sintoma que o sujeito procura uma análise. É um enigma produto da articulação significante que se exibe nas formações do inconsciente, sendo que cada uma delas se relaciona com o sintoma.

Que queres? Essa é a pergunta do desejo. Desejo esse que está vinculado à questão sobre o desejo do Outro que é a causa da angústia e do sintoma que o sujeito apresenta. A psicologização do mundo atual obriga o homem a dar conta de seu sintoma ao tempo em que o desobriga, enquanto sujeito, a ser responsável por ele. A psicanálise traz a responsabilização do sujeito para sua patologia ou sua angústia. A constituição do sujeito do desejo é correlata e idêntica à castração10."

A psicanálise promete ao sujeito uma verdade acerca do seu desejo, pois a verdade é o que se escuta, se produz, nas entrelinhas da cadeia significante. Porém, o poder significante está limitado pelo real que não pode ser atingido pelas significações. A essência do sujeito é esse vazio, esse oco decorrente da falta originária que indica não haver nenhum objeto para tamponar a falta do sujeito.

Miller acha que os significantes propriamente analíticos multiplicaram-se e cada vez mais eles estão produzindo a inércia dos pacientes em análise. A ponto de que hoje se poderia dizer que a inércia do paciente é nossa obra coletiva e que, de certo modo é o resultado do próprio discurso analítico11

Chegou o momento de repensarmos esses significantes analíticos. Alguns deles são causadores de mais dificuldades que outros: a duração das análises, a duração das sessões, o uso do divã e as intervenções do analista estão, para mim, entre os que causam mais discordância. Alguns clientes, no primeiro contato telefônico perguntam: você fala nas sessões ou é daqueles que ficam calados? Qual é a sua linha de trabalho ? Quanto tempo dura a consulta?

Por que essas questões ficaram tão impregnadas com uma conotação distorcida e causa de tanta caricatura entre os pacientes e a mídia ? Será que para os ditos: analista que fala-analista mudo, sessão curta-sessão longa, correspondem ao jogo das identificações imaginárias do analista que está alienado no significante do Outro? O desejo não tem que corresponder necessariamente ao desejo do Outro. Cada sujeito deve responder à cultura de sua época de forma única, particular e singular. Por isso nossa época está exigindo que repensemos o trabalho analítico como o do artista que deixa que o outro complete a obra criada. Como disse Quinet, na Jornada sobre “Angústia e as escolhas do sujeito," o sujeito escolhe entrar na alienação significante. È uma escolha forçada, pois a definição do sujeito impõe o outro e o assujeitamento que vem do outro. Aceitar a dependência do outro porque a partir daí é que virá a definir-se como sujeito. Ao entrar no simbólico, na cadeia significante, perde-se o ser de gozo, perde-se a imortalidade e entra-se na temporalidade. Precisa-se então passar pela alienação para voltar à separação.

Freud colocou a necessidade de um tempo de trabalho prévio antes de acontecer a análise para retificar a posição subjetiva do paciente e introduzi-lo no discurso analítico. Isso foi interpretado como preparação para o divã. Por que tantos clientes abandonam o trabalho analítico quando vão para o divã ? Será que muitas análises poderiam acontecer fora do divã ?

Diz Miller "que há uma parte da experiência e da prática que consiste em tranqüilizar e moderar o paciente. Quando chegam em pânico ou angustiados, há algo como uma necessidade de vida de moderá-los, passar-lhes segurança, dar-lhes certa serenidade12 ". Por que isto, hoje, é escândalo para alguns analistas? Por que se assiste cenas públicas tão provocadoras como da novela América onde a cliente entra e sai do consultório do psicanalista sem ouvir uma palavra ? Isso não faz parte da psicanálise que Freud e seus continuadores praticam. Não há como negar que a psicanálise traz embutido no seu exercício um efeito terapêutico. Hoje os lacanianos falam em psicanálise aplicada, em efeitos terapêuticos rápidos como se pudesse fazer assepsia da psicanálise, dizendo que é absolutamente distinta de uma psicanálise breve que lida com a extirpação do sintoma e não com o gozo que comporta o sintoma. A matéria prima do trabalho do analista resulta de pedaços, fragmentos de sonhos, fragmentos de lembranças, idéias que passam pela cabeça do paciente. Pequenos pedaços, eis nossa matéria prima. Freud em 1937, Construções em Análise, diz:" a partir dessa matéria prima, por assim dizer, cabe a nós restituir aquilo que queremos obter". O que nos interessa é o recalcado.O recalcamento quer dizer que o inconsciente não surge senão através de pedaços, fragmentos. Freud esclarece o trabalho do analista: inventar uma coerência para os pedaços. O fragmentário do inconsciente pede construção e a comunicação da construção pode provocar nos pacientes lembranças. A verdade não é exatidão. Ela também não é um delírio, mas ela é estruturada como uma ficção. É falando nas entrelinhas que se fala de modo justo13.

O dito do paciente se completa no analista. O analista vai construindo o saber e o paciente ouvindo de formas variadas que o gozo absoluto está totalmente fora da estrutura psíquica, ele não se inscreve de maneira alguma. O que se inscreve, na estrutura, no lugar do gozo absoluto, é a angústia. Na angústia ele está vivenciando o registro do real. A angústia é o afeto por excelência como também o melhor remédio para a angústia é o desejo. O desejo reintroduz para o sujeito, a referência à falta originária.

 

BIBLIOGRAFIA

Coutinho, Jorge. A. – Fundamentos da Psicanálise – De Freud a Lacan. Vol. 1. 3 ed. Jorge Zahar Editor.Rio de Janeiro.        [ Links ]

Freud, S. – Além do Principio do Prazer. Ed. Standard Brasileira. Vol. 18. Imago.        [ Links ]

Miller, J. A. – Percurso de Lacan. Jorge Zahar Editor. 1987         [ Links ]

 

 

* Psicanalista. Sócio fundadora do Círculo Psicanalítico da Bahia
1 Roudinesco, E – Notas de leitura e comentários a propósito do “Livre Noir de la Psychanalyse ".Paris, 29 de agosto de 2005
2 Lacan, J – Seminário 8, pg. 209
3 _______ – Idem, pg. 274
4 Lacan, J – Seminário 8, pg. 294
5 Miller, J. A. – Percurso de Lacan, pg. 133
6 Lacan,J – Seminário 8, pg.242
7 Coutinho, J – pg. 140
8 Coutinho, J – pg. 98
9 _________ – Idem, pg. 101
10 Lacan J – Seminário 8, pg. 288
11 Miller, J. A. – Percurso de Lacan, pg. 109
12 Miller, J. A. – Percurso de Lacan, pg. 98
13 _________ – Orientação Lacaniana, N. 17, pg. 106

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