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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.7  Salvador  2006

 

CAMINHOS DO DESEJO

 

Criatividade; criação: um viés sublimatório

 

 

Milla Adami *

 

 


RESUMO

O presente trabalho visa explicar, com base na teoria freudiana, aspectos plausíveis no que tange o universo da criação e da criatividade infantil.
Nesse sentido, procurou-se desenvolver um breve apanhado histórico fazendo referência a principais teóricos que também tiveram como tema de pesquisa e estudo da criatividade; criação e do brincar infantil. A partir da descrição do caso do menino de um ano e meio - "Fort-da", pôde-se aludir a relação existente entre o uso da criatividade, da criação a partir do brincar, mecanismo esse comum usado pela criança, como um viés sublimatório.O brincar como forma criativa, ou seja, a criação lúdica como forma de linguagem expressa pela criança, como via de sublimação dos aspectos afetivos.

Palavras-chave: Brincar, Fort-da, Criação, Sublimação, Criatividade.


 

 

Sabemos da importância da contribuição de Freud, no sentido de ter proporcionado modificações às noções já estabelecidas em relação à criança e à infância. Em 1933, retomou a discussão sobre a extensão do campo teórico e clínico da psicanálise para a prática analítica com as crianças. Nessa época, algumas psicanalistas, tais como Anna Freud, Melanie Klein e Sophie Morgentern, já haviam publicado os primeiros trabalhos sobre psicanálise infantil, partindo do caminho aberto por Freud, realizando diferentes leituras do seu texto e, portanto, desenvolvendo teorias diversas e até mesmo opostas em relação à posição da criança como sujeito inconsciente (LUTTERBACCH, apud KISHIMOTO, 1985).1

Sabe-se que a psicanálise de crianças foi autorizada pelo criador da Psicanálise, que trouxe no seu advento marcas de uma especificidade, já anunciada anteriormente por ele mesmo. Pode-se inferir que, a partir de sua teoria, ressignificou, recompôs a criança a partir do adulto. Nesse período (1909), com a Análise de um menino de cinco anos "Pequeno Hans", já mencionava que a criança é psicologicamente diferente do adulto, não possuindo ainda um supereu estruturado. Para Freud, as resistências internas que combatemos no adulto ficam substituídas na criança por dificuldades externas (FREUD, 1913).

A partir de toda essa conjuntura, vale ressaltar que o interesse pela psicanálise infantil só surgirá, efetivamente, com os pós-freudianos. A eles caberá a tarefa de discutir e consolidar as premissas teóricas necessárias à escuta analítica de uma criança. Contudo, torna-se importante salientar que em 1900, no capítulo II de A Interpretação de Sonhos, ao discutir o método da interpretação de sonhos, relatou que a criação poética deveria exigir uma atitude exatamente semelhante àquela utilizada pelo paciente ao associar livremente. Em 1908, Freud também focalizou a questão da criatividade relacionada ao processo de criação literária, onde a criação do adulto é tida como uma espécie de transformação do brincar infantil.

Em 1929, Melanie Klein, não focalizava a criatividade como sendo uma temática específica, mas descreveu o processo criativo como sendo uma tentativa de restauração de danos causados a objetos, sejam esses internos ou externos. Na psicanálise infantil o brincar tomou forma e sentido, passou a ser visto e trabalhado como técnica infantil, chamada de ludoterapia. Para a psicanálise infantil a palavra e o brincar da criança devem ser resgatados em toda sua autenticidade. Essa abordagem vai além da concepção cronológica, objetiva revelar o que há de específico no infantil e na criança. Diante desse universo, Melanie Klein, psicanalista infantil, conjecturava a possibilidade do lúdico não apenas com o propósito de resgatar a relação de amor que a criança pode não ter tido, mas uma possibilidade de se trabalhar mais enfaticamente com o sujeito infantil. A referida autora observou que existem outras emoções em jogo nessa relação, como o ódio, inveja, a sexualidade etc. Verificou, então, que a criança havia perdido a inocência e suas brincadeiras e jogos apresentavam conteúdos sexuais. Para ela, os brinquedos e jogos infantis, tornaram-se processos simbólicos, com sentidos e significações especiais e únicos para cada criança. A análise através do brincar mostra que o simbolismo possibilita à criança transferir não apenas interesses, mas também fantasias, ansiedades e culpa a outros objetos além de pessoas, ou seja, muito alívio é possibilitado através do brincar. Podemos assim pensar que a criação, o uso da criatividade através do brincar seria um viés sublimatório; forma encontrada pela criança de colocar suas pulsões à mostra, expostas via objetos socialmente valorizados ou não? Segal também relacionou a criatividade com desejos de restauração e recriação de objetos. Observa-se que a elaboração das perdas e o vivenciar de lutos estaria na gênese de um ato criador de suma importância para o desenvolvimento psíquico: a formação de símbolos. Mas, parece ter sido Winnicott o primeiro pós-freudiano a se debruçar sobre a real temática, criatividade de forma mais profunda e sistemática, como objeto de estudo específico. Segundo ele, o brincar é visto como atividade onde parte a liberdade de criação tanto da criança quanto do adulto, ou seja, ela situa-se num espaço que não é nem o da realidade psíquica nem o da realidade externa, mas sim num espaço potencial existente entre a mãe e o bebê - o transicional. O brincar e ser criativo no trabalho analítico seriam sinônimos, extensões de um mesmo processo. Brincar como experiência, sempre da ordem criativa, uma experiência na continuidade espaço-tempo. Na análise infantil, o belo, o mágico e criativo seriam o ato, o processo de significação, de surpresa para sua própria criação no set analítico. Esse ato tem um efeito mais significativo do que a interpretação dada pelo analista. "Interpretar fora do amadurecimento do material é doutrinação e produz submissão. Em conseqüência, a resistência surge da interpretação dada fora da área da superposição do brincar em comum de paciente e analista" (Winnicott). Para ele, nada que se refira ao indivíduo como ser isolado pode tocar o problema central da origem da criatividade. O brincar, por si só, já seria uma terapia. Essa terapia teria aplicações imediatas e universais estabelecendo, assim, uma atitude social positiva com relação ao brincar. Essa atitude deve ser sempre vista não apenas como um processo sempre com ganhos e sim, passível de se tornar assustador, frustrador. Seria então, no ato de brincar, e talvez, apenas no brincar, que o paciente manifesta sua criatividade, seu processo criativo. Observa-se que é apenas no brincar, que o sujeito descobre o eu (self). "Na busca do eu (self), a pessoa interessada pode ter produzido algo valioso em termos de arte, mas um artista bem sucedido pode ser universalmente aclamado e, no entanto, ter fracassado na tentativa de encontrar o eu (self) que está procurando" (Ibidem).

Winnicott em "O Brincar e a Realidade" foi bem enfático ao afirmar que todo terapeuta deve permitir ao paciente manifestar sua ou suas capacidades, e formas de brincar, isto é, de ser criativo no processo analítico, pois a criatividade do paciente pode ser facilmente frustrada por um terapeuta que "saiba demais". Podemos considerar como caso ilustrativo, um caso clássico da psicanálise: a história sobre uma brincadeira observada por Freud, de um menino de um ano e meio relatado em seu texto "Além do Princípio do Prazer". Freud relatou não ser referente a uma criança precoce em seu desenvolvimento intelectual e ainda mais, era uma criança que podia dizer apenas algumas palavras compreensíveis e que utilizava de alguns sons que expressavam um significado intelectível para aqueles que a rodeavam. Era considerado um "bom menino", não incomodava os pais à noite, era muito ligado a mãe, que tinha que além de alimentá-lo, cuidá-lo sem poder contar com qualquer tipo de ajuda externa. Essa criança, segundo Freud, tinha um hábito de apanhar qualquer objeto que pudesse agarrar e atira-lo longe para um canto qualquer, de forma que procurar seus brinquedos e apanhá-los, quase sempre representava trabalho. Enquanto realizava esse movimento emitia um longo e arrastado som "o-o-o, acompanhado de um grande interesse e satisfação. Tanto a mãe da criança quanto Freud achou que isso não seria apenas uma simples interjeição, mas representava a palavra alemã "fort" (ir embora). Freud, então, chega à compreensão que aquele processo se tratava de um jogo e que o único uso que o menino fazia dos brinquedos, era brincar de "ir embora". Freud, certo dia, fez uma observação que confirmou sua compreensão sobre o caso. "O menino tinha um carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele. Nunca lhe ocorrera puxá-lo pelo chão atrás de si, por exemplo, e brincar com o carretel como se fosse um carro. O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha... proferia seu expressivo "o-o-o". "Puxava então o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava seu reaparecimento com um alegre "da" (ali)". Essa era, então, a brincadeira da criança de um ano e meio de idade: concretizar através do brincar o desaparecimento e o retorno da sua mãe. Para Freud a interpretação do jogo estava feita, ele concluiu que a grande realização cultural feita pela criança referia-se à renúncia instintual, ou seja, renúncia à satisfação instintual que se efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar. Compensava-se, por isso, encenando o desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam ao seu alcance. A partida da mãe, pela perspectiva da criança, nunca fora uma experiência agradável ou mesmo indiferente, por isso, através do seu processo criatório expresso pela via do lúdico, o menino conseguiu elaborar seus afetos, medos, pulsões, anseios e desejos. Seria por conta da ausência do grande outro, a mãe, que a criança fica numa situação angustiante e presentifica, põe em evidência seu desejo. Refletindo a partir desse contexto, dessa experiência trazida a partir da observação de Freud, qual seria, então, a relação existente entre criatividade e sublimação? Por que a criatividade, a criação seria um viés sublimatório usado pelo aparelho psíquico? Para a psicanálise a sublimação, processo postulado por Freud, seria uma forma, um método de explicar as atividades humanas sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que encontrariam o seu elemento eliciador na força da pulsão, ou seja, da energia sexual. Ele descreveu como formas, atividades sublimatórias, principalmente a atividade artística e a investigação intelectual que poderíamos pensar como sendo a forma de expressão do sujeito, que em se tratando da criança descrita no caso, se processa mais comumente pela via do brincar. O que de fato podemos aludir sobre a criatividade como sendo um viés sublimatório é que ela pode ser referida tanto como uma satisfação, quanto aptidão da pulsão para encontrar novas formas de satisfações não sexuais. Essa sublimação da qual nos referimos, refere-se à plasticidade e maleabilidade em que a força pulsional tende a se expressar. Seria uma forma de troca entre o alvo da ordem sexual por outro não sexual, a passagem de uma satisfação para outra. Notemos que quando um sujeito, sujeito esse inserido na linguagem, tenta verbalizar algum tipo de afeto, não lhe cabe outros recursos que o metonímio, uma tentativa de recorrer ao uso da palavra para viabilizar a transmissão de suas sensações. Foi verificado no caso do menino de um ano e meio que a criança discriminou perfeitamente tudo que era da ordem da ausência e da presença da mãe com o ir e o vir do carretel, justificando, um valor criativo dessa imagem. A criação como forma de linguagem realizada pela criança e até como forma de prevenção, não garantida, de uma futura formação sintomática ou reativa. Vale ressaltar que o fort-da foi sim uma via de acesso, um viés sublimatório que o menino de um ano e meio conseguiu usar para expressar seus desejos e fantasias, pois sem o recurso lúdico, seus afetos poderiam tomar caminhos bem menos prazerosos e "saudáveis". Sem simbolização poderíamos até pensar numa estrutura mais comprometedora como a própria psicose.

 

BIBLIOGRAFIA

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* Psicóloga. Aluna do Curso Básico de Técnica Psicanalítica. Trabalho apresentado na XVII Jornada do CPB.
1 LUTTERBACCH, Maria Cristina. Reflexões Sobre Um Retorno. In: FORT-DA. Ceppac. Rio de Janeiro, 1955.p. 7.

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