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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.8  Salvador  2007

 

CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

Análise, trajetória e ofício

 

 

Wagner Ferraz *

 

 


RESUMO

Este texto nasceu de um convite e de um esforço em pensar alguns dos desafios de iniciante no fazer clínico, com as dificuldades e limites que isso implica.
É trajetória de pensamento, de vida. Experiência, inconsciente, palavra, e o que esta pode/não-pode apreender.

Palavras-chave: Desejo, Experiência, Saber, Inconsciente, Ofício, Trajetória.


 

 

"Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem ralhava no diário com a gente – minha irmã e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa".1

 

Como se forma um psicoterapeuta? Muitos são os caminhos possíveis para a formação do psicoterapeuta, e também diversas podem ser as perspectivas para abordar este tema complexo e fundamental para a clínica. Escolhi, aqui, pensar a formação a partir da experiência, o que quer dizer que tomei minha trajetória como plano, território de partida e, talvez, também de chegada, em um esforço para articular algumas questões teóricas indissociáveis do fazer clínico. A palavra experiência foi tomada no sentido do singular, o que tem pouco ou nada a ver com o uso acadêmico, mais habitual, que tende para o experimental. O par experiência-sentido2 refere-se à experiência do singular e ao saber que daí advém, onde o ser produz o sentido/não-sentido de sua existência.

Foi através de Machado de Assis que cheguei à psicologia, seduzido pelo tema e pelo estilo maravilhoso da história de Simão Bacamarte. Seduzido pela literatura e provocado pelo saber/não-saber sobre a loucura, algo aconteceu. Algo se(me) passou. Tocou o que havia de literário e também de louco em mim. Contudo, o início dos estudos em psicologia ainda estava marcado por um olhar ideológico-militante – como muita gente, também carreguei debaixo do braço o Manifesto do partido comunista3 e bradei contra as instituições e contra a clínica-burguesa a serviço do Estado, até que notei que aquele discurso era, antes de tudo, muito chato.

Foi Deleuze quem me advertiu sobre os riscos da exclusão do desejo na análise política, o que, aliado à micropolítica em Foucault, me colocava diante de três questões fundamentais que, mais adiante, me levariam à psicanálise: o desejo, o saber e o inconsciente. Da antropologia à psicologia social-comunitária, e novamente a loucura emergiu nas discussões da anti-psiquiatria e da luta anti-manicomial, mas advertido sobre os problemas da militância, foi quando me deparei com uma possibilidade que parecia distante: a clínica. Foi no ICEP (Instituto de Convivência, Estudo e Pesquisa Nise da Silveira) que trabalhei pela primeira vez em Saúde Mental, onde fui estagiário em dois grupos terapêuticos; um com os pacientes, cujo tema era a sexualidade, e outro com o grupo de familiares dos pacientes, quando, então, me interessei pela clínica, mais especificamente a clínica das psicoses.

Surgiram, junto com o interesse pela clínica, questões importantes, e, naquele momento, a principal delas: a abordagem da clínica. Qual abordagem utilizar, dentre as várias que havia estudado – e criticado, duramente, algumas vezes de forma rasteira? A clínica requer, por necessidade e responsabilidade, uma técnica, a qual se deve conhecer bem, para não cometer o erro já conhecido da mixórdia terapêutica. E foi, ironicamente, através da crítica que cheguei à psicanálise. Não por uma crítica qualquer, mas pela crítica mais consistente que se fez à psicanálise: L’anti-Oedipe4. Com que outra abordagem se pode dialogar sobre o desejo, o saber e o inconsciente? O próprio Deleuze me fez desistir de um projeto de esquizoanálise para a clínica, visto que não é a abordagem, e muito menos a suposta invenção de uma pretensa "nova abordagem", que vai fazer dela, por assim dizer, esquizoanalítica, mas o uso que se fará desta técnica – para a opressão ou para a autonomia do sujeito? A clínica é um fazer de cotidiano, em atitudes aparentemente simples, como se permitir escutar o paciente sem as amarras conceituais e a ansiedade em interpretar – a escuta livre, sobretudo de si mesmo.

Foi no Hospital Juliano Moreira que fiz todo o estágio acadêmico, além de mais um semestre como voluntário, sempre sob a supervisão de Analícia Calmon, com quem iniciei meus estudos em psicanálise e quem me acolheu, inicialmente meio ao acaso, pois foi um erro na matrícula semestral que me colocou como seu orientando – ao que ela poderia ter declinado –, mas logo estabelecemos um diálogo. No hospital psiquiátrico, na internação e no ambulatório, aprendi coisas muito importantes, como, por exemplo, que uma histeria pode ser, às vezes, mais trágica que uma psicose. Aprendi também que a supervisão não é necessária somente para cumprir ritos acadêmicos, mas fundamental para a formação, já que, além de dar certa segurança ao iniciante – até para que não faça nenhuma grande besteira –, problematiza a prática transversalizada pela teoria. Entretanto, e foi mais tarde que percebi, o crucial da supervisão é a contraposição entre o dentro e o fora – o que permite a "superação da visão" –, diminuindo bastante o risco da onisciência, que é uma catástrofe na clínica e, supervisão, deste modo, parece deixar de ser recomendável apenas para os iniciantes no ofício. Ainda assim, com todo o suporte do supervisor, no instante em que se está no setting, depara-se com um fazer solitário, que mesmo povoado por multiplicidades e populações, nunca deixará de sê-lo, e, com o passar do tempo, esta solidão menos incomoda e se transforma em uma boa companheira.

A supervisão tem muito de didático, o que a análise, sobretudo a do analista, nada deve ter. A análise não é didática, e o analista não é o paedagogos, aquele que conduz, mas o que cria certas condições – a montagem do dispositivo – para que o sujeito se lance na travessia rumo ao desconhecido, rumo ao outro e a si mesmo. A análise é experiência, caminho construído no caminho, o que requer uma ousadia, um movimento do corpo para a palavra, para a vida. É morte5 no real, necessária à afirmação da vida, que possibilita a criação, o novo, a arte. A análise é uma arte, o que não faz do psicanalista um artista, é apenas uma possibilidade. E sempre há o risco de que o caminho venha louquejar o viajante. O sujeito só se deita no divã quando confia no analista. A transferência é com o saber, entretanto, há algo que diz também respeito aos afetos, ao encontro, o que é difícil ou até impossível ensinar, só é possível permitir-se.

É impossível ensinar alguém a ser analista, mas é possível experimentar os efeitos da análise e, quem sabe, encontrar algumas pistas, o que pode ajudar a construir um estilo. A transferência também passa pelo estilo, pelo singular. É inconfundível o estilo de Caribé, basta um simples traço para que o reconheçamos, e o estilo não é estático, mas ainda assim o reconhecemos. Freud foi, é o que mostra Denise de Oliveira Lima, influenciado pelo método indiciário de Giovanni Morelli para averiguar a autenticidade de uma obra de arte – partir do detalhe para encontrar o estilo, o singular, o que também faz o analista.

Voltando à questão do que pôde representar para Freud os escritos de Morelli: Ele mesmo diz, Freud: é um método interpretativo centrado sobre os resíduos, os dados marginais, que podem ser reveladores. Através dos pormenores considerados sem importância é que se pode chegar às descobertas do psiquismo humano, pois, subtraídos do controle da consciência, dão lugar aos traços mais verdadeiros do sujeito. E reduzir esta influência apenas ao ensaio sobre Moises, como diz Ginzburg, ou aos ensaios sobre temas ligados à história da arte, significa restringir indevidamente o alcance das palavras de Freud: Creio que o seu método(de Morelli) está estreitamente aparentado à psicanálise6.

A graduação em psicologia foi decisiva em minha formação, mas quando se a conclui, logo se percebe que não basta para a atividade clínica. Conhecer anatomia e fisiologia do SNC, bem como elementos de neurologia e, especialmente, psicofamarcologia e psicopatologia é, antes de tudo, útil à prática clínica. A subjetividade não é metafísica, cada palavra é carregada de afeto que é, ao mesmo tempo, bioquímica dos neurotransmissores, e isso supõe falsa a antinomia psicofamarcologia e subjetividade. Pacientes que chegam visivelmente "mal medicados", geralmente por médicos não-especialistas, às vezes até impregnados, sem falar nas reclamações corriqueiras sobre os efeitos colaterais dos psicotrópicos, enfim, tudo isso, permeia o cotidiano da clínica e, quanto mais se conhece sobre estes temas, melhor se pode orientar condutas significativas para o tratamento do sujeito. Na prática clínica, um bom exemplo são os casos em que os efeitos colaterais do medicamento colam ao sintoma do sujeito, favorecendo a resistência e emperrando o tratamento. A distinção entre o que é do sujeito e o que é efeito medicamentoso pode ser decisiva em certos casos.

Não freqüentei formalmente uma escola de psicanálise – mas poderia e posso fazê-lo –, entretanto, tive e tenho grandes mestres, aqui, no sentido dos orientais7. Meu interesse pela psicanálise foi crescente à medida que conheci pessoas sérias e responsáveis que atuam na clínica, com gosto pela psicanálise, mas também pela arte, pela literatura, pela poesia, pela música e pela culinária. E sobre estas preciosidades humano-divinas pouco se aprende na academia ou nos institutos, salvo nos corredores. Encontra-se as pessoas especialmente nas ruas, e é preciso alguma sensibilidade para reconhecer os inconscientes que protestam, como dizia Deleuze, pois a construção de alianças é tão fundamental quanto a academia na formação do psicoterapeuta.

É comum, e também razoável, que o paciente pergunte qual é sua abordagem, ao que sempre respondi, psicanalítica. Mas como trabalhar com psicanálise sem ser psicanalista? Uma questão se instala aí: a minha prática clínica, como posso nomeá-la? Na clínica utilizo o referencial psicanalítico teórico e a técnica e, apesar de, nos últimos anos, ter dedicado boa parte das leituras à psicanálise, em especial à obra de Freud, e de estar em análise, não pertenço a instituição de psicanalistas e, evidentemente, não sou reconhecido como analista, como também não me autorizo analista. O que me levou à conclusão de que psicoterapia de base psicanalítica é a nomeação mais adequada à minha prática clínica.

O fazer intrigante do cotidiano, a clínica, provoca o pensamento, nem tanto por uma necessidade científica, mas porque é provocante – o não-saber. É este saber/não-saber que seduz, do mesmo modo, o analisando, e nisso consiste a transferência. Há um amor ao saber, do qual se faz uma aliança; tenro o saber, intensa a aliança. Seria esta a condição de existência da psicanálise? Enquanto houver um psicanalista capaz de sustentar uma transferência haverá psicanálise?8

A curiosidade e o interesse pelas pessoas, além de certa solidariedade para com o sofrimento do outro, são importantes para a prática clínica, além de delicadeza e paciência, a ardente patience9. E sobre isso aprendi com Denise de Oliveira Lima, com quem descobri a culinária e o estilo da prosa freudiana, quando fui apresentado à obra de Freud em espanhol. Há uma diferença entre a tradução para o espanhol e para o português, e parece que esta diferença reside tanto no estilo quanto no conteúdo. Alguns psicanalistas argumentam que, ao falar do estilo literário de Freud, há o risco de se desviar do que realmente interessaria: o conteúdo10. Desviar-se do conteúdo seria um efeito da resistência? Não sei se é possível dissociar conteúdo e expressão, ou cientista e escritor, mas a expressão tem a ver com o estilo. Quando se lê um texto, antes de qualquer interpretação, há um afeto. O texto nos afeta, é aquela sensação que se tem, quando se lê algo consistente, de não entender muito bem por onde, mas se tem a clareza de que algo aconteceu sobre o seu pensamento e o seu corpo. Ao mesmo tempo, o entendimento do texto passa por outras vias, tendendo mais para a racionalidade.

Contardo Calligaris, no Livro Cartas a um Jovem Terapeuta11, fala, entre outras coisas interessantes, do lugar de onde se lê. Ler um texto de Freud para cumprir uma atividade acadêmica é bem diferente de ler um texto do lugar de terapeuta, provocado por algum acontecimento da clínica, instigado pela situação de algum paciente. Aliás, é bom e justo dizer que este texto tem grande influência do referido livro do Calligaris.

A transmissão da psicanálise se dá através da linguagem falada e escrita. O homem é atravessado pela linguagem, o que possibilita produzir sentidos para a existência, sentidos para o estar-no-mundo, e a linguagem também admite o inapreensível, o sem-sentido, o fora. Larrosa Bondía traduz a definição do homem por Aristóteles de modo interessante.

Todo mundo sabe que Aristóteles definiu o homem como zôon lógon échon. A tradução desta expressão, porém, é muito mais 'vivente dotado de palavra' do que 'animal dotado de razão' ou 'animal racional'. Se há uma tradução que realmente trai, no pior sentido da palavra, é justamente essa de traduzir logos por ratio. E a transformação de zôon, vivente, em animal. O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas que o homem é palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra12.

A linguagem é membrana na vizinhança entre o dentro e o fora, mundo exterior e mundo interior, situa o homem na borda, ao tempo em que possibilita produzir sentidos para construir um ethos, a ética do estar-no-mundo, respirar os vapores da terra e transpirar certa nobreza. Não se trata de uma ode ao humano, mas da nobreza do fazer(se) humano. A existência é dada, expressão da terra, a deusa parideira, erótica, e, para o homem, se impõe o desafio de dar sentido ao caos de sua existência, já que o cais é sempre distante – mas a linguagem é inconsciente, e como no conto de João, o inconsciente é terceira margem.

Na passagem da linguagem falada para a escrita algo se perde – é o sentido do intraduzível à escrita. Há uma dobra nesta passagem, porque é justamente esta perda que abre a possibilidade da criação, da literatura. Ou seja, essa perda, ao tempo em que lhe escapa o sentido do intraduzível, abre para a produção de novos sentidos, é a potência da literatura.

É possível pensar a transmissão na psicanálise a partir da dupla articulação entre a linguagem falada e a escrita – escrita e literatura, a falada e o caso. Ao mesmo tempo em que se narra um caso, também se constrói a história da psicanálise. A psicanálise-falada talvez não tenha o devido reconhecimento na formação do analista, e a figura do contador de casos tem sido, talvez, negligenciada na transmissão da psicanálise. No sertão de Guimarães Rosa a figura do "contadô de causo" é o trabalhador da palavra, aquele que tem a sensibilidade para apreender os "ares do lugar" e produzir um socius através da palavra, tecendo amarraduras de sentido – é o point de capiton amarrando o saber de experiência, elã da existência. O psicanalista, como o contador de casos, tem por ofício a palavra, às vezes ajudando a desatar nó, outras vezes atando. É interessante que a prosa freudiana seja rica da tradição oral. Segundo Paulo César de Souza,

Traços da 'cultura oral', segundo Mahony, também concorrem para a vivacidade da prosa freudiana. As diferenças entre linguagem falada e linguagem escrita formal estariam que nesta predominam as substantivações, a impessoalidade e a voz passiva, enquanto a conversa é marcada por auto-referências e revelações do que pensa o falante13.

Freud, como Guimarães Rosa, era "contadô de causo", o que em nada diminui a cientificidade de suas descobertas, muito pelo contrário, somente um homem sensível ao seu tempo, e aos seus, pode criar algo novo. Na minha infância, a figura do contador de casos sempre foi presente, constituindo uma relação com o sinistro, tornando-o familiar, é o acolhimento no outro, no desconhecido, que já nem tanto assusta, justamente porque sempre foi presente.

O contador de casos conhece a arte do bem-dizer, o que para o psicanalista, é desafio na clínica. Dizer o que deve ser dito sem falta ou excesso, produzindo um efeito de sentido que ecoa sobre o corpo e o pensamento, sem invadir, sem ferir a ética e a estética da relação, o que seria traição, já que o sujeito lhe confia o que há de mais íntimo, sobretudo o que ele desconhece de si – um efeito do dispositivo fundado na transferência. É preciso sensibilidade e técnica para não produzir danos. Segundo Gilberto Lago, o analista "deve ter em mente que suas palavras têm tanta importância no conteúdo (sentido, significação) quanto na forma (afeto)", e continua:

A linguagem é herdeira de nossos primeiros objetos transicionais e os paciente limítrofes nos mostram que a interpretação só pode surtir efeito como geradora de novas significações e, principalmente, simbolizações, quando se situa neste campo intermediário da experiência de comunicação. Quando a palavra, para o paciente, não é mais motivo de disputa excessiva, pelos significados fálicos que ela encerra, mas vivenciada como criação mútua, é sinal que ela se situa neste espaço potencial e que funciona como objeto transicional. Como tal, é capaz de comportar uma bem-dosada presença afetiva do analista e, por isto mesmo, boa para o conhecimento e produção de sentido14.

A arte do bem-dizer é aliança com a palavra, em tudo o que ela encerra e em tudo o que dela escapa, é acalento no saber e no não-saber, o que está relacionado à sagesse, "o máximo de felicidade no máximo de lucidez", é a sabedoria dos antigos15, segundo Luc Ferry e Comte-Sponville16, quando dizem:

Como viver? É a questão principal, já que ela contém todas as outras. Como viver de um modo mais feliz, mais sensato, mais livre? No mundo tal como é, já que não se pode escolhê-lo. Na época que é a nossa, já que todas as escolhas dela dependem. Para transformar o mundo? Para transformar a si mesmo? Um e outro. Um pelo outro. A ação é o caminho. Mas que só vale pelo pensamento que o esclarece. O máximo de felicidade no máximo de lucidez: é o que os Antigos chamavam "sabedoria", que dava sentido à sua filosofia e à sua vida. [...] Se quisermos reatar com o ideal antigo de sabedoria, é menos por nostalgia do que por impaciência. A vida é breve demais, demais preciosa, demais difícil, para que se resigne a vivê-la não importa como. E demais interessante para que não se tome tempo para refletir e debater sobre ela. Como viver? Se a filosofia não responde a esta questão, por que a filosofia?17 (tradução livre de Denise de Oliveira Lima).

A experiência da análise pode tornar a gente um pouco melhor, evidentemente, não melhor que as outras pessoas, mas melhor que nós mesmos. A análise pode ajudar a se libertar de si mesmo e, ao mesmo tempo, fazer de si um aliado na invenção de novos modos de viver – é a ampliação do campo de possíveis. Se o fim da análise é a identificação com o sintoma18, é porque este momento é o encontro com a boa palavra – a conciliação com a palavra.

A análise tem fim, e bom que o tenha, mas o desafio de viver se coloca a cada aurora, em cada raio de sol e em cada gota de chuva, em cada palavra e em cada silêncio. A psicanálise só tem sentido à medida que possibilita crescer, libertar- se das couraças, do encapsulamento, da repetição da mesmice que despotencializa o ser. E crescer é voltar a ser criança19 – é o esquecimento que liberta o homem do ressentimento-, um movimento de leveza para a criação, é dizer-sim à vida, dizer-sim ao divino – a suavidade da graça, a arte –, o que pode tornar-se possível ao se conhecer e reconhecer as determinações inconscientes e os micronarcizifascismos da nossa subjetividade, é conhecer algo sobre o modo particular em que estamos inscritos e que, ao mesmo tempo, nos inscrevemos na nossa história – a trajetória. A psicanálise tem no horizonte a autonomia do sujeito, a afirmação da vida na possibilidade do fazer(se) humano; do contrário, para que serve a psicanálise?

 

BIBLIOGRAFIA

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* Psicólogo. Trabalho apresentado na XVIII Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, 2006
1 "A terceira margem do rio", in ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. RJ: Nova Fronteira, 2001.
2 Cf. "Notas sobre a experiência e o saber de experiência", conferência proferida por Jorge Larrosa Bondía no I Seminário Internacional de Educação de Campinas, traduzida por João Wanderley Geraldi, da Universidade de Campinas, e publicada em julho de 2001 por Leituras SME. "A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que passa, o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. [...] Walter Benjamim já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara."
3 MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. Rio de Janeiro: Editorial Vitória Ltda, 1954.
4 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O Anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. 1ª ed. Trad. Georges Lamazière. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
5 Segundo Maurice Blanchot, quando fala de Kafka, no livro O espaço literário, o homem que dispõe da morte dispõe inteiramente de si.
6 Cf. "Freud e Morelli – encontro não casual", trabalho de Denise de Oliveira Lima, também publicado nesta edição da Cógito.
7 Na cultura oriental, um bom modo de agradar ao mestre é, em algum momento, deixar de ser seu discípulo.
8 Cf. "Carta aos psicanalistas do ano 2100", in Cogito, publicação do Circulo Psicanalítico da Bahia, 2004, p. 26, onde, nesta carta-conto, de certo modo, humor da própria existência – que maravilha esta capacidade rir de si mesmo –, Emílio Rodrigué diz: "Como disse Radmila Zigourni em sua palestra nos Estados Gerais, a psicanálise está presente quando há um analista disposto a manter uma transferência. Coisa, João Heráclito, que não é fácil. Estarias de acordo, João Heráclito, com a seguinte reflexão: a psicanálise está presente toda vez que um analista é capaz de sustentar uma transferência?"
9 "A l’aurore, armés d’une ardente patience, nous entrerons aux splendides villes. (Ao amanhecer, armados de uma ardente paciência, entraremos em suas explêndidas cidades)", frase de um poema de Rimbaud, citado por Antônio Skármeta em seu livro O carteiro e o poeta. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 100. Skármeta assim a interpreta: "[...] devo dizer a todos os homens de boa vontade, aos trabalhadores, aos poetas, que todo o porvir foi expressado nesta frase de Rimbaud: só com uma ardente paciência conquistaremos a explêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens. Assim, a poesia não terá cantado em vão".
10 Quando Freud recebeu o prêmio Goethe, houve certa celeuma. "Sua qualidade de mestre da prosa alemã já fora reconhecida por vários de seus contemporâneos. Mas a conquista que levava o nome do mais reverenciado autor alemão causaria uma impressão maior que qualquer testemunho. Ao mesmo tempo, confirmando talvez, mais uma vez o dito de que 'a fama é a soma dos mal-entendidos em torno de um nome', despertaria interpretações variadas e até mesmo opostas. Pois alguns viram nela indícios de que os méritos de Freud – como os métodos mesmos – eram sobretudo ou exclusivamente literários, mascarando veleidades científicas; enquantro outros chegaram a negar resolutamente que o Prêmio Goethe fosse literário." Cf. SOUZA, Paulo César de. As palavras de Freud. Vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo: Atica, 1998, p. 19.
11 CALLIGARIS, Contardo. Cartas a um jovem terapeuta: o que é importante para ter sucesso profissional. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
12 Da conferência de Larrosa Bondía, já citada.
13 SOUZA, Paulo Cézar. As Palavras de Freud, op.cit, p. 56.
14 Cf. LAGO, Gilberto. "A interpretação: um objeto transicional" in Tempo psicanalítico, Rio de Janeiro: SPID, Revista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, nº 24, 1990, p. 126.
15 A sagesse não está relacionada ao conhecimento cumulativo ou científico, mas à experiência cumulativa, certo ‘capital-saber’ que é tecido nas relações com as pessoas e com o mundo.
16 COMTE-SPONVILLE, Auguste & FERRY, Luc. La sagesse des modernes. Paris: Robert Laffont, 1998.
17 "Comment vivre? C´est la question principale, puisqu´elle contient toutes les autres. Comment vivre d´une façon plus heureuse, plus sensée, plus livre? Dans le monde tel qu´il est, puisqu´on n´a pas le choix. À époque qui est la notre, puisque tous les choix en dépendent. Pour transformer le monde? Pour transformer soi? L´un et l´autre. L´un par l´autre. L ´action est le chemin. Mais qui ne vaut que par la pensée qui l´eclaire. Le maximum de bonheur dans le maximum de lucidité: c´est ce que les Anciens appelaient "sagesse", qui donnait sens à leur philosophie, et à leur vie. [..] Si nous avons voulu renouer avec l´idéal ancien de sagesse, c´est moins par nostalgie que par impatience. La vie est trop brève, trop prècieuse, trop difficile, pour qu´on se résigne à la vivre n´importe comment. E trop intéressante pour qu´on ne prenne pas le temps d´y refléchir, et d´en débattre. Comment vivre? Si la philosophie ne répond pas à cette question, à quoi bon la philosophie?", in COMTE-SPONVILLE, A. & FERRY, L., op. cit.
18 Cf. " A identificação com o sintoma", in ASKOFARÉ, Sidi, tradução de Sônia Magalhães e Denise de Oliveira Lima.
19 A criança no sentido nietzscheano. "Mas dizei, meus irmãos, de que ainda é capaz a criança, de que nem mesmo o leão foi capaz? Em que o leão rapinante tem ainda de se tornar criança? Inocência é a criança, e esquecimento, um começar-de-novo, um jogo, uma roda rodando por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer-sim". Das três fases da transmutação do homem, in NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra. Obras incompletas, Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

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