SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8Análise, trajetória e ofícioA sangue quente: psicanálise e violência author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.8  Salvador  2007

 

PSICANÁLISE E LITERATURA

 

Linguagem, poesia e psicanálise. Homenagem aos 50 anos de Grande Sertão: Veredas

 

 

Maria Lúcia Martins *

 

 


RESUMO

Relato de um caso cuja direção da cura vai sendo desenhada pela produção de significantes. Simultaneamente, tal travessia é ilustrada com os ditos – significantes rosianos – do livro Grande Sertão:Veredas. A autora conclui afirmando que o sentimento de poesia, ante o horror da violência, planta intervalos de alegria, matéria prima imprescindível ao trabalho do psicanalista.

Unitermos: Linguagem, Significante, Travessia, Inconsciente, Poesia, Violência


 

 

Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo é isto: que as pessoas não estão
sempre iguais, ainda não foram terminadas.

(GSV )

 

APRESENTAÇÃO

Trazer, de novo, o mesmo tema que levamos ao belo Encontro no Admirável Mundo Novo1 (Cogito, 2004) — outra vez os significantes rosianos – por que? Outra vez falar da hipótese lacaniana – ultrapassagem de poesia ao inconsciente – mesmo que agora seja para laçar a "poesia em tempos de violência"?

Dizer que tal repetição se deu também pela homenagem que, através desta XVIII Jornada do CPB, fazemos aos cinqüenta anos desse livro memorável, é verdade mas não basta. Cabe menos uma resposta à nossa pergunta, que torná-la sustentável ao longo da travessia deste texto, que segue caminhando pelo resto da coisa rosiana. Ler e reler João Guimarães Rosa, significa aceitar que todo resto contém verdades de linguagem e, portanto, de nós mesmos. A afirmação de Heidegger a linguagem é a morada do ser, a nosso ver, é subjacente a um outro saber: a linguagem é condição do inconsciente (e nunca ao contrário), sumo que retiramos de Lacan, em suas últimas re/leituras à teoria do inconsciente de Freud. É preciso não esquecer que o conteúdo que esteia a narrativa de GSV é a linguagem poética; palavra que nasce no desvão, arrancada do tempo heraclitiano, significante eleito entre significações ou sertão, alegoria do mundo. Mundo recriado em permanente desconstrução, por sua vez, movida pelo pacto com o demônio. Nesse livro, a ambigüidade é o ambiente da palavra, parida entre lufús e claráguas...

Neste nosso texto, os ditos poéticos e filosóficos – os significantes rosianos colhidos em Grande Sertão:Veredas – à diferença do primeiro (2004), ilustram situações de um caso de análise; que faz sua travessia par e passo aos significantes da escuta psicanalítica. Enfim, à esta apresentação, cabe lembrar ainda a matriz de nossa repetição na escrita: continuar, ao modo de um suplemento, pela via da transdisciplinaridade, dois campos distintos: psicanálise e literatura.

Mas, talvez, tudo seja só e somente para não esquecer que o divã tem a ver com a literatura, parodiando Carlos Pinto Corrêa, escritor e psicanalista do CPB.

 

I PARTE

SIGNIFICANTES DE UMA TRAVESSIA: DA FANTASIA DE VÍTIMA AO SUJEITO POÉTICO

Se nomeamos os ditos de Rosa de significantes é também por eles serem elos de uma cadeia, travessia. Assim, vejamos:

Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. (...) Não tiro sombras dos buracos. (GSV)

Concordemos: como isto se parece com o clarão de um final de análise! Mas comecemos do seu principiar. Tomemos emprestado a sala de Riobaldo, o personagem narrador de GSV, sala onde, um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala.

Por muito tempo, R (nomeemos nossa analisanda de R) coloca-se sob a fantasia de vítima. São falas da memória e do imaginário, onde a escuridão das imagens trazidas são mentiras/verdades, só depois, clareadas. E tudo embrulhado em denso receio de não ser aceita (querida) pela sua analista. Mas, volta e meia, repetia preferir um homem... – "não, ele também não me entenderia, dá no mesmo" – E vamos de jogar o jogo do esconde-mostra, deformando o fulcro dos capítulos de sua história. Que, à sua revelia, vai fornecendo fragmentos para compor "o sintoma". Fartas queixas da vida, justificadas sobre o eixo sexo x homens ("insensíveis", ela diz), embaraçam o fio para tecer o quarto nó dos três registros (real, imaginário, simbólico) da linguagem, sintoma, isto que ao fim e ao cabo, nos define. Gozar ao máximo de sua história de sofrimento, uma tentativa, inconsciente, claro, de retardar encontro com o seu vazio sujeito? Sim, mas o que de fato faz um psicanalista com sua própria pergunta? silenciar e esperar. Esperar: única forma de encontro com o inesperado, segundo Heráclito.

... faltava rastro de fala humana. ... (GSV, 289)

Nas entrevistas iniciais, um tempo longo, assim necessário, a analisanda fornece farto material, passível de múltiplas interpretações. Mas a analista há muito já não se ilude com interpretações somente suas... É preciso que venham da falante; elos de uma cadeia ou significante para outro significante, medula para a verdadeira entrada em análise. À escuta da fala (um discurso, ainda), a analista, por sua "atenção flutuante", escreve: – "Ainda é muito espessa a névoa que recobre suas palavras"... – Mas, em suas brechas, percebe efeitos inconscientes de linguagem, que lhe orientam a direção da cura.

E as culpas (da analisanda) continuam sendo sempre do outro (terceiro), o mal do mundo a cair sempre nos seus ombros ... – "Você nunca me responde, quer que eu pergunte ao meu pai que já morreu, é"? R se irrita muito sempre que fala do pai. Da mãe, nunca fala.

A analista considera esse "ser acusada" um deslocamento transferencial do que antes era distribuído a torto e a direita, sobretudo aos seus familiares. R confessa estar perdida e diz querer desistir. O pedido de reconhecimento incondicional – este que só ela mesma pode se dar – agora é dirigido explicitamente. Ponto delicado da análise, onde, a continuidade só pode ser garantida, obviamente, sem panos quentes (sedução, promessa, consolo...) e que se traduz no silêncio da analista; ela confia que seu silêncio possa devolver tal pedido à solicitante. Entretanto, cuida de não tomar soluções para convertê-las em maneiras2 (João Cabral).

Viver perto das pessoas é sempre dificultoso, na face dos olhos. (GSV,136)

R nem desconfia que, se a solidão é um vazio, de seu entorno, entretanto, brota a criação. Ainda não descobriu que a Arte também é mediação entre a alegria e a tristeza, faces de um mesmo tecido. – No trabalho, em casa, ninguém lhe entende... O que faz nessa sala não lhe conforta em nada. Desconhece: todos os começos são amorfos. O sofrimento passa pela Arte mas ela não o endossa.

– Nonada (GSV, 9).

R queixa-se de não poder mais procurar os amigos pois são sempre eles que exigem sua escuta, só os seus problemas são problemas, que todos são egoístas...

Amigo. (...) o prazer de estar próximo. Só isto quase. E todos os sacrifícios. (GSV,139)

Depois de vários saltos no escuro, grita que o tempo age contra ela – "o tempo dessa dúbia não tem medida". – "Tempo de dúbia" – "De dú-vi-da! Foi isso que eu disse. Mas você quer dúbia, vá lá... Sou duas mesmo. Uma que vem aqui, e a outra que nunca devia ter vindo...Vou descobrir um dia para que este sofrimento? Isto acaba, vá, me diga!" – A agressividade parece ser a energia de um espaço ocultado... Não esquecer que Freud ensina que os elementos da pulsão são fonte, força, objeto e meta.

Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. (GSV, 30)

Daquela vez a sessão terminou quando R julgava que estava só começando: ela acabara de dizer, chorando – "Que sofrimento querer falar durante o jantar, os cinco, o pai na cabeceira, mas não encontro nada que possa agradá-lo... Vem engasgo, tosse, saio da mesa ...e ninguém me chama de volta....Não era ele o homem que correu atrás de mim na travessia escura, não era o meu pai!" – a analista repete: "Na travessia escura, não era o pai..." E se levanta e se despede. – "Monstro; que ainda por cima leva o meu dinheiro". – É o que R conta, depois, ter pensado sobre a analista.

O silêncio da analista se fortalece: Ela acredita que o sertão é o sozinho e o dentro da gente3 (Prosa e Verso, 2006).

"Ações? ...ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo". (GSV,...)

Por longos altos e baixos, as duas respiram ares de uma transferência consistente, positiva, agora ilustrada por um novo significante. Reclamando do que ganha/gasta, R nomeia o pagamento da sessão de "meu bilhete de travagem". – "Travagem...travessia ou viagem?" – "Eu não falei travagem, você não escutou direito"!

Depois, queixa-se de um esvaziamento estranho, que lhe acontece sem aviso nem motivo. Algo inconsciente lhe afetava. Mas ela não relaciona nada ao fato de jogar montes de culpas no lixo, e já declarar que não se envergonha de ter desejado "a mulher do próximo", a grande amiga, o porteiro do edifício, um belo negro... Mas põe forte dúvida, se, de fato, sonhara fazendo sexo com o seu pai, tendo sido acordada pelo seu próprio orgasmo. Tudo isso, ao lado de querer um sucesso intelectual, a qualquer preço: depois de pagar a um jornalista para que publique um texto político, seu, marcado para o dia x (texto que nunca saiu), entra em obsessão: não dorme a planejar detalhes de como vai assassinar o jornalista, que se recusa a se encontrar com ela. Foi preciso a ajuda de um psiquiatra, e remédio, para que voltasse a dormir e trabalhar, Mas, um dia, vê o jornalista na rua e corre e se esconde atrás de uma árvore...

Enfim, depois de matar, em lentos pedacinhos, ideais impossíveis de um EU inflado, de quedas em quedas contingentes, grita que há um terreno escuro em sua vida, que não lhe deixa, sonha seguidamente entrando nele. Uns dois anos depois, diz que parece que está "ressuscitando da escuridão", – "ontem reparei que posso ver a lua da área de serviço... eu nunca ia lá à noite"...

Me alegrei de estrelas. (...) aquilo molhou minha idéia. (GSV, 184) .

R passa a fazer dança do ventre e ri muito do seu... Sujeito da própria leveza, o furo fala: – "será que vim aqui só pra ficar sabendo que sou responsável por tudo que me acontece na vida... quase tudo, no social não posso salvar ninguém, nele tem só uma partezinha minha, parte ruim, eu sei. Ausente ou inconsciente?"... pergunta bem alto.

10 – Digo ao senhor: remorso? Como no homem que a onça comeu, cuja perna. Que culpa tem a onça, e que culpa tem o homem? (GSV, 237)

– "Droga! para ter o amor dele preciso de que veja que sou inteligente, que leia os mesmos livros que ele já leu"? Diz e logo refuta – "tão gostoso quando fizemos o almoço juntos e dançamos... na casa da mãe dele, uma simples costureira, que toca órgão na igreja...por um dinheirinho"...

Atenta à contingência que se transforma em necessidade, a analista pensa que tal seja, talvez, óbvia lei do humano: somos homem-entre-homens no mundo com o mundo. E se isto não é, em si, uma graça, também não é, necessariamente, uma des/graça: é.

– "Será que na vida tem que ter sempre uma coisa pra preocupar a gente? Tou cansada. O caso é que nem posso viver rindo à toa, nem viver me enraivando à toa..."

11 – Fui aprendendo a achar graça no desassossego. (GSV,189)

– "Nem meu namorado, nem você, nem meu pai morto...são "o" homem ou "a" mulher. "Um" homem posso dizer, um. Minha mãe, não sei, mas acho que ela sempre pareceu uma pessoa que não precisava de dar opinião: sabia das coisas? Não sei. Suportava o pai e a casa, o dia todo...Mas até hoje lê romance.

12 – No formato da forma, eu não era o valente nem mencionado medroso. Eu era um homem restante trivial.(GSV, 53)

"Já tenho certeza – diz R – que já posso viver sem vir aqui; mas não quero esquecer de lhe mandar um cartão no Ano Novo, tá perto, com o seu nome bem grande num envelope vermelho... Mas passou a data e ela não foi embora.

(...) um nome, ver o que. Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe. (GSV, 121)

Um dia, as duas se levantaram quase ao mesmo tempo. R põe o dinheiro do pagamento da sessão sobre a mesa e diz: –"pronto, já tem vaga para outra que queira pagar por essa travessia louca... Eu não quero mais voltar...já falamos tanto desse fim...combinado?

A analista sorri e responde: "combinado. Adeus".

A página da análise girou e a seguinte seria escrita pela vida mesma.

(...) então eu carecia de uma realidade no real, sem divago (GSV, 184)

Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é homem soberano, circunspecto. Amigos somos. NONADA . O diabo não há! É o que digo, se for... Existe o homem humano. TRAVESSIA. (GSV, 460)

Eis o texto é que finda o livro GSV. Mas depois da palavra "travessia" há o sinal de infinito, que podemos nomear de banda Möebius, figura tão cara á teoria do inconsciente. Banda que em movimento, volta à primeira página, à primeira palavra do livro de Rosa: NONADA, e recomeça...e pergunta um pouco adiante:

16 – Deus é um gatilho? (GSV, 22)

Lacan diz "O inconsciente é Deus"4. Aliás tenho pensado que alguém deveria criar um diálogo entre Guimarães Rosa e Lacan. Uma ficção Rosa-lacaniana ou Lacan-rosiana, tanto faz... De toda sorte, ambos, cada qual desenvolveu um capital simbólico (CS) fantástico...tomando emprestado este belo conceito que escutei de Bernardo Assis, ao falar de Amor e, de seu denso trabalho com o povo de Cabo Verde.

 

II PARTE

POESIA EM TEMPOS DE VIOLÊNCIA

Poesia em tempos violência, segunda parte de nosso trabalho, é mais complexa que a primeira. Não só porque foge, em parte, dos dois territórios que objetivamos, Psicanálise e Literatura, como porque, para tratar do terror de nossos dias, eu necessitaria de certa força emocional para me aprofundar; o que me confunde, por exemplo, a necessidade de separar, mesmo as questões mais essenciais. Na melhor das hipóteses, diremos, ainda com significantes rosianos:

Medo, não, mas perdi a vontade de ter coragem. (GSV, 270)

A vantagem do valente é o silêncio do rumor (GSV,152)

Viver não é mesmo muito perigoso? (GSV, 22)

Medo. Violência. Pensemos no enfraquecimento da criatividade do brasileiro, um que vive sob o medo; medo de perder a vida, ou mesmo a saudabilidade mínima, esta que não há como não condicionar ao oficio de psicanalista... Uma bala perdida, mesmo com a janela da casa que já não se abre...a possibilidade de um sequestro... Além do jornal gritar que, aos milhares, as balas da guerra do tráfico, silvaram a noite inteira. Lá, onde o povo é mais indefeso. Como falar de poesia?

O que o medo é: ... um produzido dentro da gente, um depositado; ...sacoleja, a gente pensa que é por causas: por isto ou por aquilo, coisas que só estão é fornecendo espelho. (GSV, 277)

21 – Quem moi no aspro, não fantaseia...

Parece até que, aqui, "mudamos" de tema. Talvez. É preciso mudar para permanecer. Produzir um poema não é garantia de estar em paz. Não há poesia "pura". A poesia se dá-a-ver num tempo heraclitiano, no tempo da experiência. A psicanálise também. E ambas têm a palavra como matéria prima. Entretanto, em se tratando da violência sócio política no Brasil, há que tomar outra cor de palavra, a da nossa própria História. Tomá-la do processo histórico do senhor e do escravo que tem se perpetuado sob diferentes nomes. Do poder (medido a ouro) de tantas formas diversificado, poder sobre a posse da terra, sobre a distribuição de renda criminosa. Poder fomentado pela mídia, para e pelo consumo, onde o efeito no cidadão – ânsia-de-ter x angústia-de-não-ter – aborta qualquer possibilidade de sujeito, e, portanto, de ser. E somos só e somente linguagem.

O deus do consumo gargalha ao escutar que acreditamos que a poesia pode salvar. Sim, fortes barulhos impedem-no de inquirir sua consciência, quanto mais conseguir silenciar e poder escutar seu inconsciente. Lembrando Nietzsche humano, demasiadamente humano... Riobaldo, reflete sobre qual o extremo a que poderia chegar um homem privado de tudo, um miserável:

De homem que não possui nenhum poder nenhum, dinheiro nenhum, o senhor tenha todo medo! (GSV, 367)

Ele é bruto comercial..(Fala de Diadorim referindo-se a Ricardão) GSV, 171)

Enfim, apostemos na intervenção da poesia, sopro espiritual do homem humano, aquela se-dá-a-ver e, ao mesmo tempo, é ultrapassagem de linguagem sob lógica de um estado inconsciente. Apostemos na poesia, espaço que há de nos falar como sujeito da leveza frente à solidez do mundo.

Assim: "A poesia é criação de um sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica com o mundo". (Lacan, 1956).

Esta citação me faz mais ainda acreditar que a escuta dos significantes rosianos nos afeta, sim, por sua poesia e filosofia profundas, mas, sobretudo também porque nos faz perguntar pelo milagre da alegria do criar. Poesia e Filosofia rosianas, arrancadas entre terríveis crueldades de um sertão de misteriosos aconteceres, sertão encarnado em matanças e a promessa de um céu, amálgama mítica de supertições e práticas espíritas populares, às vezes criminosas, sertão que existe em tantos brasis – sertão ambíguo que ameaça por aberrações do sexo e canta loas à paixão, e colhe orvalhos do amor:

Abracei Diadorim, como asas de todos os pássaros. (GSV, 34)

Quem sabe, nessa citação a Lacan, um mote para repensar a modernidade, mais precisamente, a atualidade do nosso mundo. Pensar em algo que possa vir na contramão disto que é sem-nome, sem linguagem (logo, sem sujeito) fantasma vivo de um corpo torturado que não pára de ser jogado sobre nossas consciências. Entretanto, é possível falar: somos linguagem ...

Diadorim é minha neblina... (GSV, 22)

Por outro lado, podemos pensar nossa vida mental – nossa linguagem – através de um feche de descobertas da Física Quântica ou Física das Possibilidades. Por exemplo, saber que nos é possível produzir, conscientemente, a alegria, pelo pensamento e imagens, vitalizar nossas células: um sopro de luz sobre a vida, diz um dos cientistas filme Quem somos nós5. Luz que se propaga ao outro, ao grupo, à humanidade, e é urgente e da maior importância que deixemos tal chama acesa. O Congresso de Medicina e Arte, em SSA, 2006, falou dessa alegria. Já a Escola Brasileira de Psicanálise falou de amor, interrogando o seu declínio6. A comissão científica do nosso CPB, ao aceitar esta nossa fala, dirá, pela voz de Guimarães Rosa:

Aire, aquilo me adoçou tanto, que dei para inventar, de espírito, versos naquela qualidade. (GSV, 95)

– Fui indo. De repente, de repente, tomei em mim o gole de um pensamento – estralo de ouro:pedrinha de ouro. E conheci o que é socorro. (GSV,119)

 

III CONCLUSÃO

CAPITAL SIMBÓLICO À LUZ DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Ler o sertão de Guimarães Rosa, onde violência tambem é veio estruturante da rede filosófica e poética de sua narrativa – é injetar riqueza incalculável ao nosso capital simbólico; que não pode ser calculado em tempo ou espaço e menos ainda em moeda. Mas o nosso CS é concreto porque ele se amplia, e opera unindo o diverso da linguagem. Aqui, intentamos pensar num capital simbólico, quer psicanalítico, quer literário, por concordar que

(...) o mais importante e bonito, do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas. (GSV, )

Enfim, o tema "poesia em tempos de violência" é complexo; dele não pretendêramos dar conta. Mas me arvoro dizer que um modo de nos tornamos psicanalistas mais atualizados no tempo – heraclitiano – e no amor – de transferência – é começar o nosso dia lendo um poema. Cremos que poesia e poemas podem nos dar um sopro de alegria que, de fato, contagie nosso corpo, nosso ambiente, nosso tempo.

Findamos com um poema nosso, cujo tema, infelizmente, é tão brasileiro ...

Sobrevivente7

Não lhe dei nem sete anos

de magreza e tamanho. Grandes,

só os olhos (duas luas) perfurando

a indiferença do humano.

De alma sobrevivente,

o menino ocre dizia de dez a uns doze anos.

A fome fabrica tão bem nossa

Infância do menos

— Maneu, você é baiano?
— Sei-não senhora.
— E então de onde veio,
Alagoas, Pernambuco?
— Eu sou de Feira, somentes.
— Mas você é brasileiro.
— Sei-não senhora...oh dona,
me dá dois conto!
............
Manoel já tem uns quarenta
e um cansaço de velho.
Nunca entendeu São Paulo:
— Oh formigueiro de gente!
(De dia, varredor do trem elétrico.
De noite, vigia de um cemitério.)

 

BIBLIOGRAFIA

CABRAL, J. Juan Miró. In João Cabral de Melo Neto - Obra Completa - Editora Nova Aguilar – 1995         [ Links ]

HEIDEMANN, D. – O GLOBO – PROSA e VERSO, p.04; 11 de março de 2006. Rio de janeiro.         [ Links ]

LACAN, J. – Seminário XXIII, EBP, seção Bahia, tradução de Mário Almeida, Salvador, 2003         [ Links ]

MARTINS, M. L. – Morte e vida bandolim – poemas para crianças de dez a todas a idades. Arquimedes Edições, Rio de Janeiro, RJ, 2004         [ Links ]

______________ – Poesia e inconsciente, ultrapassagens: NONADA – O sujeito poético na contramão do consumo.In: Cógito - Publicação do Círculo Psicanalítico da Bahia. V. 06. Salvador, 2004.         [ Links ]

 

 

* Psicanalista, arte-terapeuta, escritora e poetisa.
1 Maria Lúcia Martins. Poesia e inconsciente, ultrapassagens: NONADA – O sujeito poético na contramão do consumo. p 159, CÓGITO – Vol 06 CPB – Admirável Mundo Novo, Ano 2004, Salvador, Bahia (trabalho baseado em Grande Sertão: Veredas– , José Olympio Editora S. A, 1978)
2 João Cabral – Juan Miró. In João Cabral de Melo Neto – Obra Completa – Editora Nova Aguilar – 1995
3 Dieter Heidemann – O GLOBO – PROSA e VERSO, p.04; 11 de março de 2006. Rio de janeiro.
4 Jacques Lacan – Seminário XXIII, EBP, seção Bahia, tradução de Mário Almeida, Salvador 2003
5 Citação ao filme Quem somos nós – dele ainda: aqueles que não têm curiosidade pelo universo ou pelo mistério da vida, vivem 75% mais perto da morte. Curiosidade pelo ambiente, pelo nosso corpo e pelo tempo. È bom saber que o nosso cérebro recebe 400 bilhões de bits de informações e que somente nos utilizamos de 2000 bits? Isto nos faz lembrar de uma metáfora interessante – nota a seguir: (...)" o consciente é uma moeda de 5 francos no Oceano (o inconsciente)", in Para que serve uma análise – Conversas com um psicanalista –. Jean Moscovitz e Philipe Grancher – Jorge Zahar Editor.
6 O declínio do Amor? Jornadas da EBP, Salvador, Ba, setembro de 2006.
7 Maria Lúcia Martins. Morte e vida bandolim – poemas para crianças de dez a todas a idades. Arquimedes Edições, Rio de Janeiro, RJ, 2004

Creative Commons License