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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.8  Salvador  2007

 

PSICANÁLISE E CINEMA

 

Janelas da alma e do mundo

 

 

Míriam Gorender *

Circulo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

Este artigo é um comentário do filme Janela da Alma, sobre a visão, suas faltas, excessos, limites e imprecisões. O conceito de visão é tomado desde sua literalidade fisiológica até implicações filosóficas e psicanalíticas.

Palavras-chave: Visão, Cegueira, Deficiência visual


ABSTRACT

This paper is a comment of the film Janela da Alma (Window of the Soul) about sight, its lack, excess, limits and imprecision’s. The concept of sight is taken from the literal physiology up to philosophical and psychoanalytical implications.

Keywords: Sight, Blindness, Visual deficiency


 

 

Porque estamos certos de que a visão depende de nós e se origina em nossos olhos, expondo
nosso interior ao exterior, falamos em janelas da alma./.../
Porém, porque estamos igualmente certos de que a visão se origina lá nas coisas, delas depende,
nascendo do "teatro do mundo", as janelas da alma são também espelhos do mundo.

Marilena Chaui

 

Janela da Alma é um documentário realizado em 2001 por João Jardim e Walter Carvalho. Este belo filme traz uma rede complexamente tecida de mensagens, e apropriadamente algumas estão ante nossos olhos, outras talvez nem tanto.

Creio que a mais óbvia e menos discutível seria a de que o ver não depende dos olhos, como na frase que o Pequeno Príncipe tornou um chavão: o essencial é invisível para os olhos. Isto parece ter se tornado um dogma para os cultos e as candidatas a miss.

Poderá este filme, e nossa visão sobre a visão, ser reduzido a isto? Creio que não.

Trago aqui algumas reflexões por ele despertadas, como reflexos entre-vistos em um espelho.

Curiosamente, o que de início se anuncia como um filme sobre a deficiência da visão (todos os entrevistados tem algum grau de deficiência visual, e a miopia dos dois realizadores somada dá 15 graus) se revela, na maior parte do tempo, um filme sobre o excesso de visão.

Vem-me à mente a angústia sentida perante uma propaganda da CNN, comercial este que pretendia alardear a velocidade da transmissão de informações do canal de tv a cabo, na qual um gigantesco olho surge na tela, e a voz do locutor informa que a cada piscada do olho: você perdeu... você perdeu... você perdeu... Comercial que carrega um imperativo de assimilação continua de imagens e informações, em sua maior parte absolutamente inúteis.

Este discurso sobre a cegueira do ver demais assume também uma posição política, bem explícita na fala de José Saramago, velho comunista, posição fundada no conceito de cegueira da sociedade capitalista e de consumo.

Com raras exceções (como o relato de Arnaldo Godoy, o mais alegre e aparentemente bem-resolvido de todos, que se permite revelar uma angústia da cegueira, principalmente na descrição dos momentos em que a filha ainda bebê se solta de suas mãos e se perde no mar), grande parte dos testemunhos minimizam a necessidade da visão considerada perfeita, chegando, como no caso de Hermeto Pascoal, a romantizar a cegueira. O cego veria o transcendente, como o vidente Tirésias.

E para nós da psicanálise, interessa não apenas o ver, mas o ver-se. Não a imagem do outro, mas o outro como espelho. É nos olhos do outro que, bem ou mal, nos enxergamos. Marjut Rimminen mostra como esse espelho pode ser devastador. O espelho da mãe que a olhava, estrábica, e repetia: coitadinha, tão feinha... E o espanto de que, após o estrabismo finalmente ser corrigido cirurgicamente, ninguém notasse a mudança. E Oliver Sacks demonstra magistralmente como a visão deste outro depende dos vínculos tecidos na relação.

Mas haverá outras relações entre a ausência e o excesso de visão?

– Eu preciso de enquadramento. Sem óculos I see too much. Prefiro ver enquadrado.

(Win Wenders)

Porque a necessidade de ‘ver tudo enquadrado"?

Duas associações: uma aponta para o enquadre da normalização, para uma volta ao que é familiar e reconfortante, o já sabido. O novo e desconhecido ameaça, incluindo-se aí percepções e pensamento. Quantas vezes vemos colegas tomar um caso clínico ou acontecimento, e ao invés de prestar atenção no fato em si e tentar apreender o que este poderia ensinar, acabam recorrendo ao já sabido? O "viu só como isto prova que o que já sei é verdade, veja este detalhe como encaixa na teoria que estudei" é bem conhecido. Eu diria que é uma tentação constante a que todos devemos resistir se queremos continuar pensando para além do já visto. A outra ponta da associação leva ao conceito de campo visual e seus limites. As observações de Merleau-Ponty sobre este são no mínimo instigantes:

"Nós construímos, pela ótica e pela geometria, o fragmento do mundo cuja imagem pode formar-se a qualquer momento em nossa retina. Tudo aquilo que está fora desse perímetro, não se refletindo em nenhuma superfície sensível, não age sobre nossa visão mais do que a luz em nossos olhos fechados. Deveríamos portanto perceber um segmento de mundo contornado por limites precisos, envolvido por uma zona negra, preenchido sem lacunas por qualidades, apoiado em relações de grandeza determinadas, como as que existem na retina. Ora, a experiência não oferece nada de semelhante e nós nunca compreenderemos, a partir do mundo, o que é um campo visual. Se é possível desenhar um perímetro de visão aproximando pouco a pouco os estímulos laterais do centro, os resultados da mensuração variam de um momento para o outro e nunca se chega a determinar o momento em que um estímulo inicialmente visto deixa de sê-lo. Não é fácil descrever a região que rodeia o campo visual, mas é certo que ela não é nem negra nem cinza. Há ali uma visão indeterminada, uma visão de não sei o que, e se passamos ao limite, aquilo que está atrás de nós não deixa de ter presença visual (Merleau-Ponty. 1994. p. 28-29)

Um campo é aquilo que define e contém toda percepção e toda troca. Um bom enquadramento aí seria uma tentativa (imaginária a mais das vezes) de melhor delimitar um campo que na verdade não admite tais precisões. É também uma forma de tamponamento de um excesso e da angústia da indiferenciação. Como tentar divisar em meio à névoa um ponto de referência e uma direção.

Um tema recorrente do documentário é o de que ao "ver tudo" corresponde o "não ver nada" e ao "estamos todos cegos". E se o olhar, segundo Lacan, é um objeto, o que o cego vê?

No filme "O homem dos olhos de raios-x", filme B antigo que vi na infância e nunca esqueci, o personagem de Ray Milland descobria uma substância científica (leia-se poção mágica) que ampliava a visão. Experimenta em um pequeno macaco, que enlouquece e morre. Torna-se ele próprio cobaia, e sua visão vai aos poucos atravessando progressivas camadas da realidade. Ao prazer de ver através das roupas femininas se segue a angústia de enxergar apenas esqueletos, depois sequer isto. Ao final do filme, entra cambaleando em uma igreja onde um daqueles pastores americanos típicos prega, e este lhe pergunta o que vê. A resposta: meu olho passa através de tudo, não é parado por nada, até o centro de tudo... e ali está o nada mais terrível. O personagem não quer ver o que vê. O pregador e sua congregação insistem biblicamente: se teu olho te ofende, arranca-o. Ray Milland abaixa a cabeça, e ao levanta-la, na última imagem do filme, o sangue corre de suas órbitas como lágrimas.

Assim como o ver demais anula a visão, a cegueira também pode ser entendida como uma visão a mais, como um mais-de-ver, perigoso, enlouquecedor, tentador e edípico. A pupila do olho é um buraco negro que espelha outra escuridão, aquela de onde viemos, e que nos é proibido devassar mas que fascina. O buraco do nascimento, a partir do qual surgimos para a luz, e o buraco pelo qual esta luz penetra são homólogos em algum ponto do imaginário. Há imagens, como em Ernesto Sábato, da vagina como um olho a ser perfurado, e dos cegos como uma confraria envolta em conspirações maléficas, aqueles a quem é dado acesso à visão do inferno. O terror do mais-de-ver da cegueira faz perfeito sentido. Se quando estamos cegos vemos no inconsciente, o que há para se ver aí? Nisto Édipo e Tirésias se aproximam, ambos são videntes em meio à cegueira. É só ler o trecho de Ernesto Sábato:

Si fuera un poco más necio podría acaso jactarme de haber confirmado con esas investigaiones la hipótesis que desde muchacho imaginé sobre el mundo de los ciegos, ya que fueron las pesadillas y alucinaciones de mi infancia las que me trajeron la primera revelación. Luego, a medida que fui creciendo, fue acentuándose mi prevención contra esos usurpadores, especie de chantajistas morales que, cosa natural, abundan en los subterráneos, por esa condición que los emparenta con los animales de sangre fría y piel resbaladiza que habitan en cuevas, cavernas, sótanos, viejos pasadizos, caños de desagües, alcantarillas, pozos ciegos, grietas profundas, minas abandonadas con silenciosas filtraciones de agua; y algunos, los más poderosos, en enormes cuevas subterráneas, a veces a centerares de metros de profundidad, como se puede deducir de informes equívocos y reticentes de espeleólogos y buscadores de tesoros; lo suficiente claros, sin embargo, para quienes conocen las amenazas que pesan sobre los que intentan violar el gran secreto.(Sobre Heroes y tumbas. 1961. III Informe sobre ciegos parte I)

O que pode haver para além do gozo terrível do mais-de-ver ou do vazio do ver demais? Luis Oliveira nos fala da imagem antiga de uma visão ativa estendendo tentáculos ao mundo, numa perfeita homologia com a descrição do funcionamento libidinal de Freud. Nossa visão abarca o mundo. Modifica-se e constrói-se não apenas pelo afeto, mas pelos efeitos de significação. Através destes, a visão pode ser tátil, olfativa, sonora. Nossa visão de mundo deve conter em si, para existir, uma ortografia, uma gramática da visão. E é precisamente através do recobrimento simbólico da cabeça da Medusa que saímos do buraco e nos é permitido o vir à luz.

E é com o vir à luz que o filme muito apropriadamente termina. O vir à luz de Gabriel, que abre seus olhos ainda cegos, para que possamos vê-los.

 

BIBLIOGRAFIA

 

FREUD, S. _________ [1980 (1910)] "A Concepção Psicanalítica da Perturbação Psicogênica da Visão". Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

_________[1980 (1919)]. "O Estranho". Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

HERRMANN, Fabio. 2001. O divã a passeio. A procura da psicanálise onde ela não parece estar. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

LACAN, Jacques [1993 (1964)]. Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.        [ Links ]

MERLEAU-PONTY, Maurice. 1945. Fenomenologia da Percepção. Edição 1994. São Paulo: Martins Fontes        [ Links ]

SÁBATO, Ernesto. 1961. Sobre héroes y tumbas. http://www.literatura.org/Sabato/Sabato.html        [ Links ]

SCHEINKMAN, Daniela. 1995. Da pulsão escópica ao olhar – um percurso . uma esquize. Rio de Janeiro: Imago        [ Links ]

 

 

* Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia, professora auxiliar do departamento de Neuropsiquiatria da UFBa, doutora em psicanálise pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ.

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