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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.8  Salvador  2007

 

PSICANÁLISE E FILOSOFIA

 

Trías, leitor de Freud

 

 

Maria Fernanda Diniz *

Espaço Moebius

 

 


RESUMO

A influência da tragédia grega na obra de Freud e a importância do pensamento freudiano no campo da estética na visão do filósofo catalão Eugênio Trías.

Palavras-chave: Psicanálise, Estética, Tragédia grega.


 

 

Há pouco mais de um ano, convocada por uma citação de Roberto Harari em seu livro Como se chama James Joyce?, iniciei um percurso de descobertas das idéias do filósofo espanhol Eugênio Trías1 , e o que trago hoje para interlocução é mais um passo que dou na busca desta aproximação, ainda no campo de suas reflexões sobre a estética. Trías é um pensador contemporâneo que, ao longo de mais de 30 trabalhos publicados e vastamente premiados, destacando-se o Premio Internacional Nietzsche (1995) outorgado em reconhecimento ao conjunto de sua obra, vem construindo uma filosofia que dialoga com a psicanálise de Freud e de Lacan e que se situa numa posição nova, ou como ele prefere dizer, numa posição para além das propostas pós-modernas, em qualquer de suas formas e versões (pensamento débil, desconstrutivismo, etc.), e que se define assim:

Toda minha orientação filosófica tem origem na consciência de algo esquecido ou de algo inibido e censurado que merece ser considerado de forma filosófica: a isso eu chamo de a sombra... (o grifo não consta do original).2

Após afirmar que a sua idéia de sombra "procede de um diálogo com a psicanálise freudiana", que é, como diz, "o que me importa e compromete, por mais que esta noção de "sombra" haja sido cultivada em outras orientações que importam e me interessam menos (como a jungiana)"3. Ele confessa que: "de certo me sinto mais próximo das referências literárias da expressão "sombra", que dessas outras formulações conceituais"4.

Para, em seguida, concluir: "quando uso a palavra "sombra" tenho muito presente um pequeno e aterrorizante conto de Edgar Allan Poe que se chama, nada mais, Sombra"5.

Conto este que, ao final, nos diz:

E eis que dentre aqueles negros reposteiros, onde ia morrer o rumor das canções, se destacou uma sombra negra e imprecisa, uma sombra tal como a da lua, quando baixa no céu, e se assemelha ao vulto de um homem: mas não era sombra de um homem, nem sombra de um Deus, nem a de qualquer outro ente conhecido. E tremendo, um instante, entre os reposteiros do aposento, mostrou-se afinal plenamente, sobre a superfície da porta de ébano. Mas a sombra era vaga, informe, imprecisa, e não era sombra, nem de homem, nem de Deus, de deus da Grécia, de deuses da Caldéia, de deus egípcio. E a sombra permanecia sobre a porta de bronze, por baixo da cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra alguma, mas ali ficava parada e imutável. Os pés do jovem Zoilo amortalhado, encontravam-se, se bem me lembro, na porta sobre a qual a sombra repousava. Nós, porém, os sete ali reunidos, tendo avistado a sombra, no momento em que se destacava dentre os reposteiros, não ousávamos olhá-la fixamente, mas baixávamos os olhos, e fixávamos sem desvio as profundezas do espelho de ébano. E afinal, eu, Oinos, pronunciando algumas palavras em voz baixa, indaguei da sombra seu nome e seu lugar de nascimento. E a sombra respondeu:

– Eu sou a SOMBRA e minha morada está perto das Catacumbas de Ptolemais, junto daquelas sombrias planícies infernais, que orlam o sujo canal de Caronte.

E então, todos sete, erguemo-nos, cheios de horror, de nossos assentos, trêmulos, enregelados, espavoridos, porque o tom da voz da sombra não era o de um só ser, mas de uma multidão de seres e, variando nas suas inflexões, de sílaba para sílaba, vibrava os nossos ouvidos confusamente, como se fossem as entonações familiares e bem relembradas dos muitos milhares de amigos, que a morte ceifara.6

Faz-se necessário ainda destacar que Trías, como bom leitor também de Kant, empreende um percurso criticista, e isto faz com que, o seu conceito de sombra, ao meu ver, aproxime-se daquele de "a coisa em si" kantiana, ainda que com este não se confunda. Assim temos, que a sombra, no pensamento de Trias, é um conceito de natureza ontológica, que aponta para um limite, um impossível no campo gnosiológico, prevalente para todos porque, e somente porque, inerente a cada um dos homens. E esta noção é tão central para Trías que ele nomeia a sua filosofia de Filosofia do Limite. Mas o limite para Trias está na essência do ser – ser de limite – portanto, o limite do conhecimento é um limite do homem e que, para ele, não decorre da percepção, é algo, imagino que se possa dizer, de natureza mais "primária", o que a mim evoca a nossa noção de recalque.

Trías, propõe ainda uma fantástica e paradoxal metáfora para este seu conceito de limite. Uma metáfora que se funda na estética arquitetônica e urbanista prevalente na sua terra natal, a Espanha, posto que para ele, a praça é o limite da cidade, promovendo portanto um deslocamento do limite urbano comumente atribuído à periferia – percepção, para o centro, a praça – o ser.

O conceito de sombra de Trías, como ele claramente afirma, está em íntima relação com o Unheimlich freudiano e aponta, portanto, para o real de Lacan e, é preciso destacar ainda, que embora saibamos, e ele igualmente refira-se, ao fato desta denominação ter ressonância e até destaque em outros campos teóricos, como a teoria juguiana, por exemplo, deles se distingue pelo seu completo rechaço a qualquer metafísica teológica.

A propósito, e parafraseando o próprio Jung, e aqui me refiro ao episódio de quando Jung foi indagado por Joyce se a produção literária de sua filha, em sendo semelhante a dele próprio, não estaria a testemunhar que ela não era louca; eu diria que, em respeito ao conceito de sombra, onde Freud e Trías nadam, Jung se afoga, ou seja, não faz nem ciência como Freud, nem filosofia como Trías, ... profetiza7.

Mas, retomando propriamente o nosso tema de hoje, voltemos às idéias de Trías sobre a estética e a influência do pensamento freudiano na sua concepção do belo:

...... seguindo bem de perto a bela monografia de Freud sobre O Estranho, em meu livro O Belo e o Sinistro, em relação a esta sombra e as categorias estéticas, do estilo belo e do sublime, mostro até que ponto só em ambígua conivência com sua sombra, que é o sinistro, aquelas categorias, poderiam dar lugar a uma possível pauta estética, ou a um critério de valor entre o âmbito das idéias estéticas, sobretudo em referência a criação das obras de arte.8

Isto porque Trias defende que: o sinistro constitui condição e limite do belo. Como condição, tem-se que não se dá o efeito estético sem que o sinistro, de alguma maneira, esteja presente na obra de arte. No entanto, como limite, tem-se que a revelação do sinistro destrói ipso facto o efeito estético. Em conseqüência, o sinistro é condição e limite do belo:

Deve estar presente sob forma de ausência, deve estar velado, não pode ser desvelado. É de uma só vez, fonte de poder da obra artística, cifra de sua magia e fonte de sua capacidade de sugestão e arrebatamento. Porém a revelação dessa força implica a destruição do efeito estético.9

Trias constrói esta sua hipótese após um longo percurso sobre a reflexão estética da antiguidade até os dias de hoje, objeto do primeiro e longo estudo constante da sua obra O Belo e o Sinistro10, que em resumo podemos aqui nos referir a partir do novum introduzido na ordem destas idéias pelo pensamento kantiano.

Kant, na sua Crítica do Juízo ao explorar a fundo a categoria do sublime promove o que Trías chama de um giro copérnico na estética, instalando a idéia do gozo estético para além do princípio formal, mensurável e limitado do conceito tradicional do belo.

Para Kant, o sentimento do sublime pode ser despertado por objetos sensíveis, naturais, que até então eram conceituados negativamente, ou por objetos fora de formas, caóticos, resultando no que poeticamente resume Trías: "A reflexão kantiana sobre o sentimento do sublime será, neste sentido, a mais sólida sustentação do novo sentimento da natureza e da paisagem que resulta em um século das luzes enamorado secretamente pelas sombras."11

Temos, então, que Kant diferencia o sentimento do belo e do sublime, tomando o primeiro como aquele que pressupõe o entendimento sobre um dado sensível através da imaginação, criando um livre jogo entre as duas faculdades – a de imaginar e a de entender. Já o sublime, embora também seja despertado pela incitação necessária da sensibilidade conectada à imaginação, vincula-se a uma outra faculdade superior ao entendimento, a Razão.

Mas, segundo Kant, na presença do sublime, o sujeito apreende algo grandioso, muito superior a ele próprio em extensão material, o que produz a sensação do disforme, desordenado e caótico. Sua reação imediata a este encontro é dolorosa, coloca o sujeito em estado de suspensão ante esse objeto, que lhe excede e sobre passa, ameaçando sua integridade. Porém, esta angústia e esta vertigem dolorosas são combatidas e vencidas por uma reflexão segunda, na qual o sujeito se vê lançado da tomada de consciência de sua insignificância física à reflexão sobre a sua superioridade moral. E isto é possível porque este objeto incomensurável desperta, física e sensivelmente, no sujeito uma Idéia da Razão. Razão esta que, no pensamento kantiano, como sabemos, é por definição oposta ao entendimento, podendo ser também chamada de faculdade dos princípios, e que invoca a concepção do infinito (da nossa alma, da natureza, de Deus).

É, portanto, o sentimento do sublime que une, intrinsecamente, um dado sensível com uma idéia da razão, produzindo no sujeito um gozo moral, um ponto no qual a moralidade se faz sensível (prazerosa) e onde ética e estética se confundem numa só síntese.

Ou, como nos diz Trías,

Através do gozoso sentimento do sublime o infinito se faz finito, a idéia se faz carne, o dualismo entre razão e sensibilidade, moralidade e instinto, número e fenômeno findam superados em uma síntese unitária. O homem "toca" aquilo que o sobre passa e espanta (o incomensurável), o divino se faz presente e patente, através do sujeito humano, da natureza; fazendo com que o destino do homem na terra resulte numa situação privilegiada, vez que manifesto.12

Será também a apresentação sensível da Idéia Racional que fará com que Hegel, desenvolvendo a reflexão estética kantiana, promova uma síntese na qual o belo e o sublime passam a constituir uma única categoria, na qual o dado sensível (e sua limitação) e o espírito infinito entram em conexão. O belo passa a ser conceituado de tal modo, que sintetiza e totaliza tudo aquilo que Kant, entretanto, diferenciava como "belo" e "sublime". O que leva, então, a beleza a ser tomada como presença divina, encarnação, revelação do infinito no finito.

Mas Trías nos adverte:

Porém essa viagem, através da selva obscura, não está livre de perigos e inquietudes. E o caráter tenebroso dessa divindade oculta, somente manifestada através daquilo que nos arrebata por instantes do cárcere de nossa limitação, fará perguntar a poetas e pensadores sobre a identidade desta divindade da qual tão só percebemos sensivelmente alguns véus. Divindade atormentada e em luta e contradição consigo mesma, como a conceberam Hegel, Schopenhauer e o jovem Nietzsche, ainda que dentro de distintos pontos de vista. Será Deus ou será Satã quem através dessa viagem iniciática que a poesia e a arte realizam se revela?13

O que leva Trías a concluir que foi exatamente a reflexão sobre "a face presumivelmente misteriosa da divindade que incitou ao pensamento sensível passar da categoria do sublime para a categoria do sinistro"14. Concedendo, ainda como afirma o autor, toda pertinência ao aforismo de Rilke, quando diz: "O belo é o começo do terrível que todavia podemos suportar."15

Em respostas a todas estas considerações, Trías formula sua hipótese, nos seguintes termos:

1. O belo, sem referência (metonímica) com o sinistro, carece de força e vitalidade para poder ser belo.
2. O sinistro, presente sem mediação ou transformação (elaboração e trabalho metafórico, metonímico), destrói o efeito estético, sendo, por conseguinte, limite do mesmo.
3. A beleza é sempre um véu (ordenado) através do qual deve-se pressentir o caos.

E, partindo destas premissas, conclui:

A arte é fetichista: situa o sujeito numa posição de vertigem na qual ele se encontra a ponto de ver aquilo que não pode ser visto, que o sideraria e precipitaria definitivamente no abismo do nada. É como se a arte – o artista, sua obra, seus personagens, seus espectadores – se situassem em uma estranha posição, sempre penúltima a uma revelação que não se produz porque não pode se produzir. Daí não se poder afirmar que há na obra artística a "última palavra" – nem é possível dizer sobre ela nenhuma palavra definitiva. Há neste instante penúltimo um espaço de repouso e acomodação: que corresponde não mais que ao tempo de duração da ficção. (o grifo não consta do original).16

Em torno destas idéias, no quarto e penúltimo ensaio da sua citada obra, O Belo e o Sinistro, ao se debruçar sobre a questão formulada por Marx sobre o por quê de a arte grega, em especial a tragédia grega, apesar das condições históricas particulares que determinaram sua criação, permanecer sendo até então pauta e modelo indiscutível para a estética e a ética, o que levou Marx a constatar que, para resolvê-la, seu materialismo histórico era insuficiente. Trías indaga se seria possível falar de uma metodologia que respondesse a esta questão de Marx? Para em seguida nos afirmar:

Freud se fez a mesma pergunta e ousou afirmar que seu método psicanalítico era capaz de responder a esta questão. Freud propõe haver dado as chaves fundamentais que nos permitem compreender a força universal e a vigência, mais além de limitações históricas e geográficas, da tragédia grega.17

Para sustentar esta sua afirmação, Trias retoma o pensamento freudiano sobre a tragédia, em especial a tragédia grega, através de três grandes campos de argumentação e reflexão filosóficos.

Inicialmente ocupa-se do texto freudiano Personagens psicopáticos do palco (1942 [1905 ou 1906]), em particular nas suas referências ao pensamento aristotélico sobre a tragédia e promove uma aproximação das questões ali apresentadas com as objeto da Analítica do sublime de Kant. Destacando que também este enfrenta o problema de uma ambivalência emocional semelhante à identificada por Aristóteles e Freud no espectador da encenação trágica, através dos sentimentos de "terror" e "comiseração", e no seu resultado de "purgação de afetos".

Posto que é também revestida de ambivalência emocional a situação apontada por Kant, frente a qual o sujeito se vê impelido a promover um resultado apaziguador de natureza estética, em reação a sua reflexão sobre a idéia racional de infinitude, suscitada por uma circunstância sensível ou natural. Sendo que na tragédia, realiza-se um padrão do sublime no terreno moral, vez que nesta "a categoria do sublime é provocada por um "excesso" ou "desmesura" de natureza humana, e não natural".18

Ainda sobre o efeito catártico provocado pela tragédia, Trias também considerará que foi Freud quem precisou a razão deste prazer já identificado por Aristóteles, especialmente quando parte da premissa da ilusão, ou seja, de que o sofrimento do espectador é mitigado pela sua certeza de que não é a ele e sim a um outro que está atuando o sofrimento no palco. E ao promover esta precisão, segundo Trias, Freud demonstra que nesta purgação vê-se também presente "o requisito kantiano do "desinteresse" do sujeito em relação ao objeto estético"19, condição indispensável no pensamento de Kant para a fruição da obra de arte.

Na segunda aproximação promovida por Trias, o autor retoma a Interpretação dos Sonhos para destacar a tese fundamental de Freud de que o sonho é sempre a realização de um desejo, em especial, quanto à condição essencial de ambivalência do desejo humano, que é sempre desejo incestuoso e desejo parricida. Lembrando que é desde esta obra inaugural da psicanálise que Freud recorre à tragédia de Édipo Rei, e afirma que é precisamente em torno destas considerações que Freud, segundo Trías, responde a Marx, como se vê nesta passagem do seu texto:

A força da tragédia está, segundo Freud, no fato de todos termos sido dominados, em nossa infância, por este poderoso desejo de possuir o objeto primeiro de nosso amor, a mãe, e de matar o rival que a possui, o pai, de maneira que no nosso passado encarnamos o mesmo drama que, sem sabê-lo, Édipo protagoniza, realizando sinistramente no real o que todo ser humano deseja inconscientemente em sua fantasia. Daí a razão do efeito sempre presente do drama de Sófocles em nossa alma sem necessidade da mediação do histórico ou social; daí a sua universalidade e vigência, para um mais além de qualquer condição hitórico-econômica....20

Trías, em seguida, no seu terceiro e último grupo de reflexões, aproxima-se, destacadamente de Totem e tabu (embora também se detenha com o Futuro de uma ilusão), promovendo uma revisão e síntese de todas as teses freudianas ali expostas, como também visita Nietzsche na sua obra O nascimento da tragédia e se ocupa das interfaces entre estes dois grandes textos. E o faz, em especial, naquilo em que estas obras oferecem de consistência à sua tese sobre o belo e o sinistro.

Assim temos que, sobre o Nascimento da Tragédia, ele nos dirá:

O dionisíaco será, segundo a acertada análise nietzschiana, essa sombra inibida mais atuante, sempre presente na cultura grega e em suas produções culturais mais genuínas, como a tragédia, que é sempre sentida como tentação e ameaça, esse "mais além interior", que faz com que a repressão exija do grego a demarcação da imagem olímpica e apolínea de si mesmo, seu amor ao limite, e "nada ao excesso", sua obsessiva necessidade de circunscrever e definir, no pensamento e nas obras, os princípios em virtude dos quais tem-se ressaltada a forma concreta individualizada, à plena luz, sem confundir-se claramente com a indeterminação de limites e contornos, com confusão. Confusão, descomedimento dionisíaco, o monstruoso no pensamento e na ação, a mistura de linhagens lógicas e de sangue, esta Babel incestuosa onde nomes e papéis sociais se entrecruzam em aterrorizante promiscuidade, o que para o grego clássico seria o Horror, isso que pressentem e vivem como proximidade e ameaça, do mesmo modo como pressentiram sempre a chegada tormentosa, intempestiva, do deus dos ácimos da vida e sua trupe de Bacantes. O ato trágico está, portanto, fixado por este cenário de confusão e desmedida onde os desejos primários são realizados, produzindo-se no real o mais profundamente desejado e fantasiado, esse cenário sinistro recheado de crimes ancestrais, parricídios e infanticídios, devorações canibais do corpo divino despedaçado, esquartejamentos e amputações rituais.21

Para, em seguida afirmar que, em sua exploração do sinistro, do que ele fala é exatamente desta sombra que paira sobre o cenário da tragédia, cuja presença subjaz ao efeito estético e é responsável pela condição atemporal da obra de arte.

As reflexões de Trias sobre Totem e Tabu, e a relação que o autor estabelece entre o mito do pai da horda e a tragédia de Édipo, o conduzem à síntese final de todo este seu ensaio com o qual nos ocupamos hoje, e, como disse no início, que representa uma nova tentativa de aproximação com as reflexões sobre a estética desenvolvidas por este fascinante filósofo espanhol.

Para concluir, cito textualmente mais uma vez Trías:

A estrutura subjacente na tragédia grega do Édipo e o mito do pai primevo, que na teoria freudiana aparecem como estrutura determinante da constituição do sujeito, nos revela a característica do sinistro: esse tipo de espanto que produzem coisas familiares, íntimas, sentidas desde a mais longínqua infância e subjacente à consciência do sujeito. A força da tragédia grega, do Édipo em particular, está no modo peculiar dessa revelação sempre indireta, sempre velada, porém intensissísima. A familiaridade que se desprende desta tragédia hoje como antes, independentemente do lugar e do momento histórico de sua recepção, tem sua razão por ser nela que a estrutura antropológica do desejo inconsciente está presente. O inconsciente humano, concebido como sistema de representações mediatizadas pelo desejo, instala a chave sinistra que permite explicar o efeito estético – da beleza e do sublime – que produz a tragédia grega de Édipo. A limitação da beleza, sua circunscrição ao familiar e ao delimitado, ao que repugna todo o excesso e toda desmesura, ao que, em terminologia kantiana, pode ser apreendido pelo "entendimento", acha, pois, seu fundamento em um espaço humano (não divino) que havendo sido familiar há deixado de sê-lo, e retorna no cotidiano sob a forma do inóspito e inquietante. Nessa infinitude, a razão apreende e acha, pois, não tanto a presença do divino em nós, o absoluto sensibilizado, quanto a insistência de nossos desejos arcaicos, ancestrais e fundamentais, expulsos da nossa consciência, retornando ambígua e veladamente como presença especular. Freud centra em sua categoria antropológica o que o romantismo e o idealismo alemão pensavam como categorias místico-especulativas. Do conceito ainda religioso do "inconsciente sagrado" dos românticos, chegamos, pois, ao conceito crítico e antropológico do desejo inconsciente humano e suas representações mentais características. Deste modo se opera o aprofundamento analítico da categoria do sublime através da categoria do sinistro.22

 

BIBLIOGRAFIA

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* Psicanalista. Espaço Moebius, Bahia. Trabalho apresentado na XVIII Jornada do CPB, em 14 de outubro de 2006
**NA. As obras em espanhol citadas foram traduzidas livremente pela autora.
1 NA. O filosofo e ensaísta Eugenio Trías (Barcelona, 1942), é professor da Universidade Pompeu Fabra em Barcelona, já recebeu diversos prêmios, como o Nacional de Ensaio em 1982 por Lo bello y lo siniestro [O belo e o Sinistro], Premio Nova Crítica em 1974 por Drama e Identidad [Drama e Identidade], Premio Anagrama de Ensaio em 1976 por El artista y la ciudad [O artista e a Cidade], Premio Cidade de Barcelona em 1995 por La edad del espíritu [A Idade do Espírito], y e Premio Internacional Nietzsche em 1995 outorgado como reconhecimento ao conjunto de sua obra. Entre sus obras, além das acima citadas, se encontram: La filosofía y su sombra [A Filosofia e sua Sombra] (1969), Filosofía y carnaval [Filosofia e Carnaval](1970), Teoría de las ideologias [Teoria das Ideologias] (1970), Metodología del pensamiento mágico [Metodologia do Pensamento Mágico] (1971), Meditaciones sobre el poder [Meditações sobre o Poder] (1976), La memoria perdida de las cosas [A Memória Perdida das Coisas] (1977), Tratado de la pasión [Tratado sobre a Paixão](1978), El lenguaje del perdón [A Linguagem do Perdão] (1979), Los límites del mundo [Os Limites do Mundo], Lógica del limite [Lógica do Limite], La aventura filosófica [A Aventura Filosófica] (1988), Pensar la religión [Pensar a Religião] (1996), La razón fronteriza [A Razão Fronteiriça] (1999); Ética y condición humana [Ética e Condição Humana] (2000), e seu último livro La política y su sombra [A Política e sua Sombra] (2005). Ao total sua obra conta hoje com mais de 30 livros.//Sobre sua vida acadêmica, temos que em 1976 ascende ao posto de professor de Estética e Composição na Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona, onde obtém a categoria de Catedrático em 1986. Nesta faculdade permanecerá até 1992, ano em que é nomeado professor de filosofia na Faculdade de Humanidades da Universidade Pompeu-Fabra também de Barcelona. Atualmente é Catedrático de Filosofia desta Universidade. Entre 1995 – 1996, foi diretor do Instituto de Cultura, adjunto à mesma Universidade.Hoje é ainda Vice-Presidente do Patronato do Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía (Madri); e Presidente do Conselho Assessor do Instituto de Filosofia do Centro Superior de Investigações Científicas da Espanha (CSIC).//No ano de 1997 foi-lhe conferida a medalha da cidade de Buenos Aires, em reconhecimento as suas valiosas contribuições ao pensamento portenho.
2 ALEMÁN & LARRIERA. Filosofia del Limite e inconsciente. Conversación com Eugênio Trias,[Filosofia do Limite e inconsciente. Conversação com Eugenio Trías], p. 105.
3 ALEMÁN & LARRIERA, op. cite, p.107.
4 ALEMÁN & LARRIERA. Idem.
5 ALEMÁN & LARRIERA. Idem, idem.
6 POE. Poesia e Prosa. Obras Completas, p.162/163.
7 NA. Aqui faço uma referência ao comentário de Freud nas suas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise – Conferência XVII, a propósito das valiosas contribuições de C. G. Jung sobre o que se conhecia então como dementia praecox, para em seguida ressalvar que estas se deram antes, "numa época em que ele era apenas psicanalista e ainda não aspirava a ser profeta", Standard, p.319.
8 ALEMÁN & LARRIERA. Filosofia del Limite e inconsciente. Conversación com Eugênio Trias,[Filosofia do Limite e inconsciente. Conversação com Eugenio Trias] p.106.
9 TRÍAS. Lo belo y lo siniestro [O belo e o sinistro], p. 27.
10 NA. Sobre este primeiro ensaio de Trias, escrevi um outro trabalho com o título O belo e o sinistro em Witkin, apresentado na XV Jornada de Psicanálise do Espaço Moebius (2005), que faz parte da Revista Topos, Edição Especial, Ano XI, nº 11, no prelo.
11 TRÍAS, op. cit., p. 33.
12 TRÍAS, op. cit., p. 34.
13 TRÍAS, op. cit., p. 38.
14 TRÍAS, op. cit., p. 39.
15 TRÍAS, op. cit., p. 39.
16 TRÍAS, op. cit., p. 52.
17 TRÍAS.op. cit., p. 127/128.
18 TRÍAS. op. cit. , p. 130.
19 TRÌAS. Op.cit., p. 132.
20 TRÍAS. Op.cit., p.136.
21 TRÍAS. Op. cite., p.151/152.
22 TRÍAS. Op. cit., p. 156/157.

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