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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.8  Salvador  2007

 

COMENTÁRIO

 

Sesquicentenário de Freud

 

 

Antônio Carlos Caires Araújo *

 

 


RESUMO

O presente ensaio foi apresentado com uma homenagem pelo sesquicentenário de Freud. Abordando a questão dos comentários apressados que muitas vezes se faz a obra do criador da Psicanálise o autor procura situar o pensamento de Freud fazendo articulação com alguns conceitos de vários autores que tenha apresentado reflexões importantes sobre a obra do Mestre.

Palavras-chave: História da Psicanálise, Freud


 

 

Comemora-se neste ano de dois mil e seis os cento e cinqüenta anos do nascimento de Sigmund Freud. Surpreendente! Comemorações excedidas para além das expectativas, foram tantas reportagens em jornais ocidentais, nas revistas hebdomadárias e nos canais de televisão com filmes sobre o homem e sua vida. Estendidas por uma temporada, as homenagens foram ilustradas para mais além do que se poderia esperar. Diga-se também, tergiversou-se em lugar-comum mais do que se devia, deixando sem palavra o cerne mais essencial da sua obra.

A começar que, aniversariava-se não mais a pessoa e sim, muito mais a presença viva de um Significante do Autor, imortalizado por sua criação, sem precedente na história da civilização, a Psicanálise. Ao reencontrá-la vivíssima e foi, por essa causa viva e o seu traço de origem instigante pela sua natureza de relação inextrincável com o seu criador, é que quiseram até mesmo revivificar no real, a presença do seu fundador, e por essa idéia, muita tinta rolou e se fez rodar filme, até mesmo o da diáspora da sua vida.

Honra-me muito falar desse homem, honrando-o pelo o que soube como ninguém, ao analisar os próprios sonhos, mostrar-nos em suas redes as estruturas de linguagem e as leis que regem o inconsciente. E, com que coragem se arrastou pelo o terra-a-terra do sofrimento humano. Desfiando tal qual a Moira e, desafiando intrépido o destino e se interrogando a vida em seu sentido, não para dizer que ela não o tem e sim para reafirmar que ela tem um.

Não aquele que continuou sendo divulgado pelos atuais comentaristas, por isso já se tornou tão vulgar ao se repetirem ao grosso modo, sem se ter mais o que guardar da difama pansexual preconceituosa, atribuída ao desejo sexual, apenas com a revelação simplória do segredo da Mênade.

Os comentadores diziam quase sempre a mesma coisa, mesmo aqueles que falaram, tomando o lugar do psicanalista. Eles estão sempre muito apressados pelos tempos modernos, talvez!, ou, por fixarem apenas uma leitura dinâmica da superfície por onde escorrem rápidos os riachos de fogachos em achismos de culpas e pecados pelo gozo comum de todo mundo e, olhe que isso não é de hoje. Há muito já foi romanceado pelo notável escritor e nobelizável François Mauriac.

Não, não quiseram saber nada daquilo que a trama, o rébus do sonho, é capaz de evocar na releitura da interpretação dos sonhos em Freud. Faz ressoar a mesma sutileza reservada em cada palavra anunciada e com o frescor e a intensidade original. Nada sobre isso foi dito, nem mesmo deram sequer um psiu! — uma interjeição para se fazer ouvir ao passar pela perigosa curva serpiginosa, por onde a realização do desejo no sonho se contradiz com a experiência do prazer e condiz com a necessidade de castigo e penar.

Talvez porque nunca eles deram ouvidos ao som do rio de fogo subterrâneo que fremi com o deslizar da correnteza da palavra que escapa no lapso e atordoa o ser falante. A palavra tal qual lava ardente, assim Heráclito anunciava, lavra o homem em seu espírito, ao escorrer por dentro do próprio ser do ente, acendendo o desejo em fogo e a incandescente busca por uma satisfação.

Digo e repito, que Freud foi o clínico original na arte de decifrar o próprio oráculo, interpretou no próprio sonho o seu destino, mesmo a contragosto na corrente desse rio de lava ardente, o Aqueronte. Proferindo no frontispício da sua Ciência dos Sonhos, a sentença virgiliana: "FLECTERE SI NEQUEO SUPEROS ACHERONTA MOVEBO".

Vês-se por toda sua obra que nos foi legada, o que é que ele mira no sentir, no dominar e no saber. A sua visada chamusca na miragem da imagem enganadora, mas persiste com olhos abrasados, dirigindo o olhar com a firmeza de quem quer desvendar a verdade histórica, mantida velada desde os antigos mistérios de Elêusis.

Essa verdade estanca e permanece eludida no drama do homem moderno, sob o véu da astúcia do semblante, que também pode ser a ignorância douta ou não, em se enganar com as aparências. Até os psicanalistas não demonstraram saber ou ficaram envergonhados e por isso negaram saber que o significante do falo é quem determina a iniciação da vida, quer para o ser macho ou ser fêmea.

Essa nova determinação é da própria biologia freudiana e foi dada pelo corte da divisão, que a palavra latina sexus, significa: ser dividido. Não é mais apanágio natural da ciência manter essa divisão anatômica pela condição de se ter ou não um órgão, separando o gênero humano. Pois é sempre bom e prudente para cada um se identificar com o ideal do seu sexo, participando do jogo e do gozo inerente a ele.

O que importa para a Psicanálise é que o sujeito em relação ao falo, reconheça-o e consinta no semblante em tê-lo e/ou não tê-lo, quando por primeiro já se descobriu que não o é e nem mais pode sê-lo, senão um liame de união com todos os outros significantes do Logos. No lugar do Falo, Freud apôs a palavra Nada e a morte o levou, antes que respondesse ao enigma: "O que quer uma mulher?".

Eis aí o mérito da descoberta freudiana que foi o de articular o sujeito diante dessa dupla dialética de uma perda irrecorrível em qualquer instância imaginária, do objeto primordial amado, sem o qual a vida até determinado momento, não seria viável e sim, cumpriria logo o seu desejo e seu destino. Como bem disse o poeta ao recitar: "ser ou não ser, eis a questão". Quando os comentadores atribuem à Shakespeare toda sapiência preliminar da Psicanálise, respondo-lhes que essa expressão servia de gracejo na comédia, antes que Freud atribuísse a ela todo o seu valor existencialista.

Daí que esta perda fálica imaginária, a ferida narcísea real se sutura ao nível do simbólico, pela aquisição da fala – nossa língua permite a expressão: do falo à fala — seria melhor ainda, a uma fala articulada. Essa passagem é compatível para cada um, o mesmo que toda a filosofia interrogou desde a sua origem: — Quem sou? Ecoa no ar: — Que queres? Um atributivo não confere ao juízo, uma existência, antes ela é dada pela falta, onde se instala o significante fálico.

Foi por um desses sociólogos, que ao comentar a óbvia descoberta dessa fase infantil dos porquês, da razão, reconheceu-lhe o valor que ela empresta ao homenzinho, tomado de inquietante angústia, vive nela a emoção teatralizada, como se fosse a sua própria primeira morte. Experiência na qual a dívida simbólica de existir será paga com a libra de carne (Shakespeare), impossível de se pagar, senão doando com a vida. Mas, é essa marca indelével e inefável que se fixa em sua história como um sinal de angústia, que o acompanha no retorno do recalcado.

Refiro-me tão diretamente à prática e não à vida desse homem de gabinete, que soube articular na sua práxis a observação clínica, ao lado da poesia que a vida não teria nenhum sentido e nem articularia a expressão imperativa do fale ser! se para a morte não se estivesse prometida, desde o primeiro vagido. Essa causa se prefigura naquela relação com o falo, que por marcar a primordial vinculação do pequeno-homem, em querer ser o alter ego e demonstre que se pode ter um desejo fora dele, sem por isso deixar de ser amado.

Detenho-me um pouco no significante Freud, não por um procedimento panegírico e sim, para traduzir o que em nossa língua é um termo que significa alegria. Foi um nome adotado pela sua família na Morávia e ele melhor do que ninguém se dava conta da importância de como essa adoção foi significativa em sua vida e em sua obra. Jogou brilhantemente com isso, com um humor picante, quando escreveu seu belíssimo texto: "O Chiste e sua Relação com o Inconsciente".

Depois da descoberta do inconsciente freudiano e nele a marca indômita do desejo humano do ser falante. Os discursos sobre as artes, nas letras e mais ainda, nas ciências, foram tingidos por novo colorido que realçaram suas cores com o brilho de um matiz, uma referência interpretativa nunca d’antes preparada. Do Barroco ao Surrealismo, da Gramática de Saussure aos Topos de Jacobson e da Anatomia à Genética. Mas, não foi por aí que se seguiu a fala dos ilustres comentaristas, aliás o que se disse foi de uma fala pífia ao borrão da escrita esclarecedora sobre o que é que significa o desejo ao pé da letra.

Os próprios psicanalistas apresentados não eram suficientemente letrados para se darem conta, que só se chega a saber propriamente do que é que trata a psicanálise de Freud, quando se sabe ao menos pegar esse desejo pelo pé da letra. Porquanto são pelas redes determinantes, sobredeterminadas das letras que o desejo vem tomar o seu lugar no inconsciente do sujeito e assim, determinar o seu destino, quer ele seja ou não funesto.

Ao poder interpretar na produção do discurso sua própria causa e articulá-la ao efeito de gozo fálico com o saber no desejo do analista, Freud foi capaz de abrir uma clareira por onde permitiria que a Psicanálise atravessasse com o tempo através dos futuros psicanalistas, para aqueles que viessem apor o seu próprio desejo ao ser analista. Não para fixarem na imagem do burguês ao que tudo explica e a nada implica, senão de se aureolar na suposição de um saber, que vá além da impostura e da boa aparência, era o que se esperava ver e ouvir dos entrevistados.

Apóiam-se nas abordagens mais simples e corriqueiras, que imaginaram situar na cantilena explicadora da Psicanálise pelo complexo de Édipo e tudo giraria em seu entorno. Numa das entrevistas mais fulgurantes , para uma revista nacional, apareceu uma leitura que eu chamaria de translúcida, oferecida por um neurolingüísta, que procurava conexão entre essa ordem simplesmente simbólica, forjada pela teoria freudiana do mito edípico sofocliano, com a disposição funcional do sistema neurônico.

Pensar que a Psicanálise deve ter uma base biológica é um retrocesso que não cabe mais, em nossos dias. Principalmente quando se sabe um pouco dela e o quanto ela avançou com a ciência da Lingüística e porque não dizer, também da Lógica. A Neurolíngüistica deve procurar o seu próprio caminho e o seu rumo. Não, a via régia da verdade descoberta na teoria onírica pela Psicanálise, pois esta não percorre os neurônios, mantém-se nas sutilezas do rébus, pela função do recalque no qual o enigma a ser decifrado, encontra-se materializado no dito, que se achará por trás do que se diga. Método próprio ao estilo do seu autor.

A elaboração do sonho é o método apresentado como modelo da formação do sintoma psíquico e nele a presença da libido se organiza pelo viés da ideação edípica. Foi assim que no primeiro momento possibilitou à Freud dar a luz ao desejo e sua dialética na constituição do sujeito da fala e da linguagem. Entretanto, pode-se chegar ao mesmo lugar, seguindo por outra via lógica combinatória arranjada na linguagem, pela lei proposicional do significante falo. Ao atribuir o falo a todo o ser falante, no universal. Para que esta lei vigore, é necessário que no particular da existência da criança, ele ameace faltar. No lugar desta falta é que se articula um termo, que marca o sujeito, igual ferro-em-brasa na carne que é o significante.

O fetichismo é o seu melhor exemplo, porque todo mundo pensa logo que é pelo formato do objeto é de que se trata. Quando Freud ao tratar de elucidar o tema, em seu ensaio homônimo, mostrou-nos que o inconsciente pode ser fraco em matemática, mas é excelente gramático e até mesmo um bom filólogo. O que causava o fetiche era um equívoco produzido na transliteração de um termo por outro, pelo efeito homofônico na língua materna esquecida, reavivado sob o lance do olhar encarnando do sujeito, encantado por um brilho especial no nariz.

Conta a história do movimento industrial, que para se encontrar o curso do desenvolvimento da ciência no discurso capitalista e galgar um lugar de destaque no mercado, foi necessário que o merchandising fetichístico transformasse o seu produto em objeto do desejo do homem.

O automóvel levaria ao lucro de capital se produzido em série, mas se seguisse somente para se satisfazer às necessidades dos seus futuros proprietários, ficariam encalhados, como de fato ocorreu. Eis que um bom aprendiz, familiarizado com a Psicanálise, resolveu a questão, associando-o ao fundamental objeto causa de desejo do homem. Colocando ao lado da máquina uma linda e seminua mulher. Mesmo essa apelação imaginária fascinante não dispensa a presença do discurso, embora coloque em declínio na contemporaneidade a função do amor.

 

 

* Médico e Ensaísta. Ensaio premiado no Concurso Literário SOBRAMES/2006.

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