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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.9 n.9 Salvador  2008

 

EDITORIAL

 

As artes da psicanálise

 

 

A vinculação da psicanálise à arte pode ser considerada atávica quanto à sua origem, íntima no decorrer da história e de esperanças em nosso momento atual. Freud foi muito além dos homens de cultura de sua época pelo amor cultivado às artes plásticas e à literatura. Seu interesse pela arqueologia o levou à condição de pequeno colecionador numa época em que Viena vivia à moda do Barroco. Bem informado, adquiriu suas primeiras peças aos 40 anos, em 1896, continuando sua coleção até morrer, 43 anos mais tarde. Hoje podemos apreciar no Museu Freud de Viena, ou no Museu Freud de Londres, um acervo composto de vasos, fragmentos de pinturas e principalmente estatuetas de origem grega, romana, babilônica, chinesa e, sobretudo, egípcia.

O biógrafo Ernest Jones conta que, ao fazer uma nova aquisição, Freud a levava para a mesa de jantar, contemplando-a enquanto comia. Ele chegou a dizer que lia mais obras de arqueologia do que de psicologia (um exagero, segundo Paulo César Souza). Suas afinidades estão assinaladas no livro Sigmund Freud and Art – His Personal Collection of Antiquities, resultado de uma colaboração internacional: foi editado pela Thames and Hudson, especializada em livros de arte, impresso no Japão, e sua publicação aconteceu como resultado da associação da State University of New York e do Museu Freud de Londres. Sem dúvida uma consagração do colecionador amante da arte antiga.

Por outro lado, as vinculações de Freud com a literatura estão expressas na constante recorrência aos autores clássicos gregos e principalmente a Shakespeare. Perguntado sobre quem eram seus mestres, ele apontou sua estante de livros de literatura. Talvez deles tenha conseguido seu estilo fluente e quase literário. BLOOM chega a dizer que se a psicanálise desaparecesse um dia, Freud por certo, sobreviveria como escritor.

A partir do mestre, a aproximação entre a psicanálise e a arte foi intensificada num jogo de sedução mútua. Não apenas os psicanalistas buscam as artes via história e crítica, mas também a teoria psicanalítica se torna mais visitada e melhor referência para escritores e artistas plásticos.

Freqüentemente encontramos congressos, jornadas, seminários e publicações tendo como tema a vinculação da psicanálise com a arte. Podemos perguntar sobre o sentido deste movimento de abeiramento por nós psicanalistas. Estamos todos preocupados com as questões teóricas da criação artística, embora as abordagens da psicanálise não façam vinculações maiores com as questões da estética.

Temos produzido trabalhos de confirmação bibliográfica e reafirmação do saber oficial, daí a infinidade de textos publicados que apenas repetem o que está dito. Uma espécie de cultura do saber do outro e da citação com propriedade e presteza, tão ao gosto das produções acadêmicas.

Na contramão, a disponibilidade do homem moderno para a reflexão e a busca profunda de si mesmo, tem cedido lugar ao pragmatismo. Assim o cliente de análise nos aparece cada vez mais interessado nas soluções sintomáticas e sem condições de estabelecer vínculos transferenciais satisfatórios, inviabilizando o desenvolvimento do tratamento.

O fosso entre evolução teórica e limitações da clínica sugere uma criatividade do analista que precisa vencer barreiras cada vez maiores impostas na pós-modernidade. Diante do possível impasse, é bom lembrar que a obra inacabada de Freud não deve ser esgotada com teorias que absolutizem.O discurso criativo precisa manter-se aberto. A fundação de qualquer ciência introduz algum tipo de transformação fecunda. O ato que funda está no mesmo plano das transformações futuras. A grande criação de Freud foi a fundação da psicanálise e de ter dado a ela uma estrutura que lhe garantisse as transformações ulteriores. Aqui podemos retomar as palavras de Foucault quando reavaliou de modo tão preciso a função do autor frente à sua obra. Ele trata ainda da questão do risco do autor perder-se no empiricismo quando submetido às marcas da intuição. E lembra "Creio que a instauração de uma discursividade é heterogenia em relação às suas transformações ulteriores. Continuar um tipo de discursividade como a psicanálise, tal como ela foi instaurada por Freud, não é conferir-lhe uma generalidade formal que ela não teria admitido no início, mas antes abrir-lhe certo número de possibilidades de aplicação. Limitá-la é, na verdade, tentar isolar no ato instaurador um número eventualmente restrito de proposições ou de enunciados".

O ato inicial da criação da psicanálise é em si um apelo permanente ao psicanalista que quer assim continuar sendo, que continue criando neste saber não terminado. Se o psicanalista não pode ser um humanista e nem sempre é um intelectual, que seja um pensador criativo.

Reunimos neste 9º volume da Cógito textos produzidos para a XIX Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, II Jornada de Psicanálise e Arte do Círculo Brasileiro de Psicanálise – RJ e I Jornada Leste do Círculo Brasileiro de Psicanálise que aconteceu de 2 a 4 de agosto de 2007 em Salvador, e contou com a participação de colegas de outras unidades do Círculo Brasileiro e dos saberes aos quais estamos referindo: a literatura, o cinema, a música e as artes plásticas.

Carlos Pinto Corrêa
Comissão Editorial

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