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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.9 no.9 Salvador  2008

 

PSICANÁLISE E ARTE

 

A realidade psíquica, a linguagem e a estética: o que ou quem as cria?

 

 

Eduardo Sande Santosouza

 

 


RESUMO

A questão da criatividade é abordada através de um contraponto entre a emergência da realidade psíquica no Projeto e as interrogações lacanianas sobre a metalinguagem e o significante novo. A seguir, se procura marcar a diferença entre produção artística enquanto manejo de linguagens e criação artística como inauguração de dialetos estéticos. Por fim, dará notícias das pesquisas que vêm se desenvolvendo sobre a existência de um outrofreudismo e as contribuições que estas podem dar ao tema da criatividade.

Palavras-chave: Criação; Estética; Linguagem; Outrofreudismo; Psicanálise; Realidade psíquica.


 

 

É sempre muito freqüente que quando comecemos a discutir a questão da estética e da criação, uma questão se interponha nos debates: uma análise funciona contribuindo ou em detrimento do espírito criativo? Esta questão sempre me pareceu da maior importância. Diz respeito à nossa clínica e não ter uma resposta para ela configura um dilema ético no atendimento de pessoas da área de artes.

Gostaria de citar, a propósito, algumas proposições de Wittgenstein no Tractatus:

6.41 O sentido do mundo deve estar fora dele. No mundo, tudo é como é e tudo acontece como acontece; não há nele nenhum valor — e se houvesse, não teria nenhum valor (...).
6.42 É por isso que tampouco pode haver proposições na ética.
Proposições não podem exprimir nada de mais alto.
6.421 É claro que a ética não se deixa exprimir.
A ética é transcendental.
(Ética e estética são uma só).
6.422 Da vontade enquanto portadora do que é ético, não se pode falar.
E a vontade enquanto fenômeno interessa apenas á psicologia.
6.43 Se a boa ou má volição altera o mundo, só pode alterar os limites do mundo, não os fatos; não o que pode ser expresso pela linguagem.
Em suma, o mundo deve então, com isso, tornar-se a rigor um outro mundo.
Deve, por assim dizer, minguar ou crescer como um todo.
6.44 Místico não é como o mundo é, mas que ele é.
6.45 (...) O sentimento do mundo como totalidade limitada é o sentimento místico.
6.522 Há por certo o inefável. Isso se mostra, é o místico.

(Wittgenstein, 2001)

Desculpem se trago Wittgenstein que reconheço é um texto muitas vezes inacessível sem certo traquejo em sua leitura. Pareceu me apropriado para o que vou tratar aqui. Por outro lado, estamos acostumados a textos inacessíveis, à primeira leitura. Temos Lacan. Este é, decerto, quem indica, em nosso campo, o caminho de Wittgenstein.

Há cerca de um ano em um evento intitulado I Encontro Regional/Nordeste de Filosofia e Psicanálise (07 a 09 de junho de 2006), da parte da filosofia muito se falou de certo kantismo de Freud e de certo Freud kantiano. Discordei desta análise, lá, e quero afirmar que continuo discordando. Espero poder demonstrar o porquê desta discordância.

Datar o momento em que o primata é sugado pela humanidade e se torna homem pelas descobertas dos primeiros signos sobre as sepulturas e pelas manifestações artísticas no interior das cavernas parece uma mensagem com conteúdo claro: é preciso humanidade para produzir arte; é preciso produzir arte para se possuir humanidade. Com Wittgenstein: é preciso volição para minguar ou fazer crescer o mundo.

Evidente que há outras datações importantes: o domínio do fogo, a aquisição da linguagem, o trabalho em conjunto, porém, de todas estas, nenhuma me parece mais inegável do que a manifestação de uma estética. Quem tem estética tem alma. Freud escolheu chamar um dos sistemas do Projeto de Ψ, (que posteriormente dirá ser todo o sistema psíquico), por que esta letra inicia uma palavra que em grego quer dizer: sopro de vida, alma.

A estética é inseparável do humano, da humanidade.

Qual o território em que a estética se desenvolve? Não é paradoxal que linguagem e manifestação artística concorram para a datação do início da humanidade? Aquilo que infla o mundo com o que o fixa?

Este mundo que Wittgenstein nos diz que deve crescer e minguar não lembra o Eu do Freud do Projeto que infla e desinfla em sua parte variável, o manto.

Freud chega a este 'Eu', empurrado por sua pesquisa por uma fonte alternativa à necessidade. Esta fonte alternativa seria responsável por criar ações imponderáveis, perdulárias e até certo ponto irresponsáveis, a saber, arte, religião, pensamento, civilização. Em outras palavras: humanidade. Freud não se deixa enganar: a humanidade exige uma explicação por sua improbabilidade.

É no caminho de sua pesquisa que ele proporá a superação da rivalidade entre o empirismo e o idealismo e da disputa que travam pelas mentes e corações dos homens. Ele nos dirá que sua doutrina da consciência é alternativa a do empirismo e do idealismo, se encontra entre as duas e se propõe (e aqui é uma exegese minha) como síntese, como superação.

Como ele propõe sua doutrina?

Há, em Entwurf, uma linha de pensamento que, em termos filosóficos, pode ser considerada revolucionária. É uma forma lógica de pensar que faz sua primeira aparição quando Freud anuncia sua doutrina para a consciência: Consciência é, aqui, o lado subjetivo de uma parte dos processos físicos no sistema nervoso, isto é, dos processos ω e a supressão da consciência não deixa inalterada a ocorrência psíquica, mas inclui em si a supressão de ω. (FREUD, 1995). A consciência é, portanto, aqui, um elemento que contribui como constituinte para a ocorrência psíquica. Em outras palavras, o sujeito não é observador, mas um dado de mundo, um fato de mundo. Qualquer percepção de mundo deve, então, contar com a contribuição do sujeito. O interessante deste viés é que ao contribuir com a ocorrência psíquica, a subjetividade contribui também para si mesma, uma vez que esta é 'o lado subjetivo de uma parte dos processos físicos no sistema nervoso'.

O texto de Entwurf, então, que começa com uma proposta humeniana bruckeniana encontra, neste ponto, uma vertente kantiana, uma vez que, como em Kant, o objeto é uma produção subjetiva. O Projeto freudiano, entretanto, vai mais além, pois também a subjetividade é uma produção de mesmo calibre. Sujeito e objeto são, portanto, gerados pelo mesmo processo.

É esta forma lógica de compreensão que dará o molde para o funcionamento da prática psicanalista. Como, de outra forma, instalar uma prática que baseia seu funcionamento em um discurso enunciado por um, o analisante, e escutado por outro, o analista, se não se acreditar que este discurso é capaz, por sua produção, de transformar aquele que o produz?

Qualquer um que tenha feito sua análise pessoal conhece na prática os efeitos e conseqüências da proposição freudiana. Mesmo aqueles, entretanto, que não a tenham feito, por certo, já experimentaram, no seu cotidiano, eventos semelhantes. Quantas vezes acontecimentos posteriores não mudam juízos sobre pessoas, instituições e costumes? Para melhor o para pior. Como explicar estas mudanças senão pela consideração de um modelo semelhante ao freudiano?

O que acontece, entretanto, com a manifestação artística, com o ato criador?

Se tomamos Wittgenstein: não pode haver proposição na ética, pois ela é transcendental e como ética e estética são uma só, não pode haver proposição na estética. O sentimento estético estaria foracluído de uma análise, pois, esta, se passa no interior da linguagem. Ao se falar sobre a estética, que não admite proposições, se fala sobre qualquer coisa menos sobre a estética.

O quebra-cabeça já está, vocês podem ver, suficientemente complicado, mas ainda temos que lhe acrescentar peças.

Primeira peça: a realidade psíquica é uma produção subjetiva ainda que nos neuróticos seja, também, uma construção coletiva. Ora, a obra de arte é um dado desta realidade psíquica. Mesmo que o ato de criação artística não se deixe fotografar; mesmo que, no instante que o artista cria, o cerquemos de engenhocas de registros eletrônicos.

A obra de arte provoca em cada um de nós sensações estéticas e estas são da ordem do particular. Ainda que possamos ter a impressão de que compartilhamos as mesmas sensações com outras pessoas, o que compartilhamos, de fato, são as proposições que podemos construir sobre estas sensações. Coletivamente o que podemos compartilhar é uma proposição: este troço mexeu comigo!

Segunda peça: a volição interessa à psicanálise. Ela não altera os fatos do mundo. Não existe metalinguagem, não cansa de repetir Lacan. Mas, há, também, o significante novo. A linguagem é a estrutura maior, mas ela se produz e se reinventa de forma contínua através dos significantes novos.

Como a obra de arte nova reinventa o mundo dos neuróticos? Esta pergunta também é boa.

Vou direto ao ponto: há uma produção artística individual, mas há, também, os movimentos artísticos e suas escolas. Há na arte uma autoria que cria outros autores, para citar Foucault. E dentro destes movimentos, dentro destas escolas, há obras de arte verdadeiras (desculpem, mas o avanço da capitalização e do mercado nos obriga a falar de obras de arte proposicionais, que nos são impostas pela mídia).

Querem outra pergunta que considero boa? Entram em cena na gênese de uma linguagem artística, os mesmos elementos que estavam presentes quando da gênese da linguagem? Será que quando tateávamos ou balbuciávamos os primeiros sons pré-lingüísticos era também o momento em que começávamos a desenhar nas cavernas e prestar homenagens simbólicas aos nossos mortos? Teriam a linguagem e a estética a mesma raiz ou uma poderia derivar da outra?

O paralelo entre estética e linguagem pode, acredito, construir bons anteparos para os estudos de uma e de outra. A proliferação de dialetos que, nós sabemos, estão hoje em extinção (quantas línguas morrem mesmo por dia?), pode servir de anteparo para a produção de dialetos artísticos e vice-versa. Como, por exemplo, criar usando a linguagem criada por outro não parece similar a falar a linguagem falada por outro. O que ocupa o lugar da proposição na estética?

Foi prospectando o Projeto, a proposta de superação da dialética entre empirismo e idealismo que, na Confraria dos Saberes, uma cooperativa não só de psicanalistas, mas de pensadores em geral, pudemos propor que há um Freud latente, uma proposta esboçada em Entwurf que pode redesenhar alguns aspectos importantes da psicanálise. Este outro Freud, que daria origem ao que vimos chamando outrofreudismo, propõe o ato motor (isto está no Projeto) como construtor da realidade psíquica. Neste sentido, há uma continuidade e não uma ruptura entre ação motora e linguagem. Neste contexto, para o que nos interessa aqui, a lógica da criação artística é a mesma da criação da linguagem.

Há no projeto um ponto umbilical. A imagem que gosto de usar é um feto alimentado por dois cordões umbilicais. Em determinado momento, quando Freud trata da vivência de dor, um dos cordões é cortado. Neste momento, entra em cena a sexualidade e o que passa a imperar é o universo mórbido da falta. Há, entretanto, e isto é espantoso, depois deste corte um desenvolvimento de toda uma série proposicional que, parece, continua se nutrindo do cordão que foi cortado. Esta série não coloca a sexualidade em posição central, nem leva ao universo mórbido da falta. Nesta série a inscrição na linguagem é afuniladora. Pelas bordas do funil vaza algo. Este algo que vaza é obra de arte, é crença, é o místico. Todo um potencial que se realiza de diversas formas.

Nesta perspectiva, uma análise é um caminho para o alargamento do funil, mas também é um prato em que o que vaza é recolhido. Neste outrofreudismo, o universo proposicional se expande, mas também formas pré lingüísticas ressoam e são multiplicadas. A criação é transformada, mas também potencializada. É muito recente para falar disto, talvez seja mais prudente ouvir Wittgenstein e se calar, mas se é a volição que deve fazer crescer e minguar o mundo...

 

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Projeto de uma psicologia. Rio de Janeiro: Imago, 1995.         [ Links ]

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Lógico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.         [ Links ]

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