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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.9 no.9 Salvador  2008

 

PSICANÁLISE E ARTE

 

Estéticas do corpo: técnicas de modificação corporal

 

Aesthetics of the body: techniques of body modification

 

 

Míriam Elza Gorender *

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

O trabalho procura, através de revisão histórica e análise de conceitos e crenças culturais e acadêmicas relacionados ao tema, compreender melhor os múltiplos significados das técnicas de modificação corporal ao longo do tempo e na atualidade, além de discutir a influência das dicotomias corpo natural/corpo construído ou de linguagem, e do conceito de sujeito como uno e transcendente/dividido e fluido.

Palavras-chave: Cirurgia plástica; Modificação corporal; Marcações corporais; Identificação; Tatuagem; Piercing; Corpo artificial.


ABSTRACT

The paper endeavors, by historical review and analysis of concepts and cultural and academical beliefs related to the theme, to reach a better understanding of the multiple signifiers attached to techniques of body modification through time and nowadays, and also to discuss the influence of the dichotomies natural/artificial body (or body of language), and the notion of subject as whole and transcendent/fluid and divided.

Keywords: Plastic surgery; Body modification; Body marks; Identification; Tattoo; Piercing; Artificial body.


 

 

Só raramente um psicanalista se sente impelido a pesquisar o tema da estética [...] esse ramo geralmente revela-se um campo bastante remoto, negligenciado na literatura especializada da estética.
S. Freud. ‘O Estranho’

O que me pôs na trilha deste tema foi um evento psicanalítico de poucos anos atrás. Após a apresentação de um trabalho com uma colagem de notícias sobre cirurgia plástica provindas da internet, a reação de parte dos assistentes pode ser resumida a um ‘que absurdo’, ao mesmo tempo em que o rótulo de ‘perverso’ era aplicado a tais práticas. Ora, apesar de certamente haver patologias envolvidas em um número de casos, tenho motivos para pensar que práticas de modificação corporal não sejam em si perversas, e pude detectar nos comentários uma conotação moral que deveria ser evitada na lógica da psicanálise. Infelizmente não é tão incomum o uso da teoria psicanalítica com fins normativos, mas o que no tema da cirurgia plástica provocaria tal uso em analistas experientes?

Interessa aqui não apenas a cirurgia plástica em si, mas o conjunto de práticas de modificação e marcação corporal no qual esta pode ser inserida, incluindo aí piercings, tatuagens e práticas radicais vinculadas a culturas primitivas, como os pés de chinesas e as mulheres-girafa. Os pés de chinesas em forma de bulbo de lótus, considerados antigamente um marco de beleza feminina, eram quebrados ainda na infância ou puberdade, e virados para dentro, processo acompanhado de dor excruciante, e depois enfaixados diariamente. Hoje em dia há menos de 400 mulheres com pés enfaixados entre os 1,25 bilhões de pessoas da China, a maioria delas com mais de 80 anos. O que já foi um símbolo erótico de beleza e eleição nos confronta com um costume que subjugava mulheres a um mito de beleza brutal.

Na Tailândia e na tribo Ndebele da África há as chamadas ‘mulheres-girafa’. As mulheres dos Padaung começam a usar anéis metálicos no pescoço antes da puberdade. O número de anéis vai sendo aumentado até chegar a 5 quilos ou mais de peso, alongando o pescoço. Não podem ser retirados sem que o pescoço se parta.

Nas sociedades primitivas, as marcas corporais (a mais das vezes tatuagens ) em geral indicavam pertença social, seja como indicador de classe social, vinculado à religiosidade ou como rito de passagem de um estado a outro da vida.

Há descrições que indicam que os primeiros Cristãos tatuavam uma cruz em suas faces ou ombros. Mas ao longo do tempo as marcas corporais passaram a ser vistas como um sinal de paganismo. Em 787 D.C., em um Concílio das Igrejas realizado em Calcutá, todas as formas de tatuagem foram proibidas. No entender da Igreja, as marcas corporais são consideradas como atos de violência realizados contra o corpo natural. Portanto significam, também, uma injúria à Criação.

Durante muito tempo na sociedade ocidental as práticas de modificação corporal para fins estéticos e sociais se resumiam, de acordo com a idealização grega do corpo humano e da representação de beleza enquanto essência platônica estandartizada (como diz um personagem da série de televisão americana “Nip/Tuck”, sobre dois cirurgiões plásticos em Miami, beleza é simetria... ), à perfuração do lobo da orelha.

Nas últimas décadas outros procedimentos se tornaram cada vez mais populares, entre eles o piercing em suas várias formas e as tatuagens. Enquanto que estas práticas eram comumente associadas ao sado-masoquismo e à perversão e comportamento transgressivo, tem havido uma mudança gradual na forma de considerá-las. Várias pesquisas mostram que entre os adolescentes, as maiores motivações para realização de piercing ou tatuagem são: a procura de uma forma de se exprimir personalisada, fazer uma prova de coragem e seguir uma moda. Além disto, são citados a pressão dos pares e o desejo de pertencer a um grupo Para os estudantes, a arte corporal é um meio para criar seu próprio ritual de passagem à idade adulta, lá onde as sociedades nada haviam previsto para eles. Na maioria das vezes o uso do piercing nada tem a ver com um ‘prazer na dor’, mas a dor que acompanha o piercing não é mais que um efeito secundário — importante — necessário a um ritual de passagem bem-sucedido.

Destas motivações, a principal é a busca de uma individualidade, de uma identidade pessoal.

Quanto à cirurgia, o termo cirurgia plástica vem do grego plastik, moldar. Vem sendo usado o termo cirurgia estética, mais recente que cirurgia cosmética. O termo estética vem ganhando popularidade, já que as novas tecnologias permitem a afirmação de que os procedimentos para aumento da beleza não são apenas meramente cosméticos, mas na verdade transformam o corpo em um novo e permanente objeto artístico. Exemplos seriam a lipoescultura tri-dimensional ou o aumento de lábios permanente. Há também a obra da performer Orlan, que transforma cirurgias plásticas realizadas em seu próprio corpo em atos estéticos e artísticos.

Sem a pretensão de ser exaustiva, acredito que para uma melhor compreensão do assunto é importante examinar com rigor as motivações e efeitos envolvidos nestas práticas de modificação corporal, com uma breve discussão dos mesmos. É bom lembrar que os pontos que se seguem podem ser tomados em uma variedade de entrelaçamentos dos campos RSI que modificam e pontuam amplamente seus efeitos. Faz grande diferença se, por exemplo, uma marca é tomada em seu valor simbólico, ou como suporte de fantasia. Senão vejamos uma pequena lista:

Identificação (por traço).

– com um grupo pertença a um grupo status dentro deste grupo rito de passagem
– apoio ou oposição a um ideal estético/cultural racial político (ex: megahair )
– como estigma (criminosos, marginais, campos de concentração - tatuagens). O imaginário do código de barras, cada vez mais freqüente, ao mesmo tempo marca identificatória e de dessubjetivação. No campo oposto, a cirurgia plástica como disfarce (mudança de fisionomia). Não esquecer, ainda, os casos nos quais o inconsciente marca diretamente o real do corpo, como nos portadores de stigmata, cujo exemplo mais conhecido é o de São Francisco de Assis.
– com um outro, não necessáriamente um outro portador de um ideal estético, incluindo o outro especular.

Estranheza

– o próprio corpo como estranho
– marca como ponto de estranheza
– a marca como ponto de familiaridade (ancoragem ). A tentativa de subjetivação pela utilização da marca como suporte para construção de uma narrativa sobre o sujeito. A imposição da marca como história do sujeito, como por exemplo cicatrizes.
– a marca como tentativa de união de externo e do interno através da perfuração do corpo.

A morte e o tempo e sua tentativa de superação.

O desejo e seu ponto de falta.

– a eliminação de uma característica que age como barreira ao desejo do outro. Paola Mieli chama de punctum, o lugar no corpo sentido pelo sujeito como o ponto onde o olhar do Outro o embaraça, mas isto é na verdade um correspondente, com sinal negativo, ao ponto que atrai o desejo, como o brilho no nariz, glanz auf die Nase de Freud.

Temos, delimitando as formas tomadas pela cultura sobre o corpo, certas dicotomias ou pares operantes. Por exemplo, a oposição interior/exterior, ou a oposição natureza/cultura. Ainda, a subjetividade como essência, única indivisível e transcendente que dá lugar a um conceito de uma subjetividade fluida e fragmentária. A oposição interno/externa manifesta-se em relação ao corpo também pela idéia de uma beleza interna, que seria mais ‘verdadeira’ do que a beleza externa. Mas a partir da década de sessenta a questão da aparência adquire uma singularidade: a feia é assim porque não se ama. Recusar a beleza é sinal de negligência e deve ser combatido. A falta de beleza é interpretada como fruto de frustrações, baixa-estima etc, tornando-se caso clínico; um problema psíquico. Ou seja, ao final das contas quem vê cara vê coração.

A oposição natureza/cultura apresenta-se de forma persistente na idéia, já propagada pela Igreja, de um corpo natural e verdadeiro frente a um corpo artificial, superficializado e mentiroso. Esta visão desemboca na crença, oposta à anterior, de que um sujeito ‘bem-resolvido’ deve aceitar seu corpo tal qual é. Não é incomum, quando do anúncio, por alguém, da realização de uma plástica, o comentário ‘não seria melhor procurar uma terapia’? Há casos que certamente demandam algum tipo de tratamento. Outros, no entanto, evidenciam efeitos da modificação corporal que para aquele sujeito parecem fora do alcance de uma análise. Pode, por vezes, ser mais consistente com uma análise que desvele o desejo do sujeito, ajudá-lo a decidir-se pelo que deseja, no caso a modificação de seu corpo.

Há ainda permeando a noção de uma dicotomia entre corpo natural/corpo artificial uma fantasia de criação de um super-homem, paradoxalmente através de uma desumanização, seja pela aproximação com a ‘natureza animal’ ou pela hibridização com a máquina. É a metáfora trazida de forma utópica pela pensadora feminista Donna Haraway, em seu “Manifesto para Ciborgues”, de seres que pela apropriação de características tecnológicas poderiam ultrapassar os limites de gênero e do Édipo, prescindindo de uma origem e da necessidade de criação de diferenças. Todo este debate se apóia, é claro, na crença sobre a existência de um corpo natural, como se fosse possível um corpo humano não marcado pela cultura, pela linguagem. Os raros casos verdadeiros de bebês criados por animais comprovam como a não-inserção da linguagem como estruturante do corpo pode ser mortífera. Somos não apenas corpo, mas corpo construído, e nosso corpo é, sempre, o primeiro e último bastião de nossos estilhaços.

Dito isto tudo, convido ao debate. A linha entre arte e pathos é por vezes muito fina. Entre dismorfofobia e arte corporal caminhamos, todos, no fio de uma navalha .

 

REFERÊNCIAS

HARAWAY, Donna. Um manifesto para os cyborgs: ciência, tecnologia e feminismosocialista na década de 80. In: BUARQUE DE HOLANDA, Heloísa (org). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura.Rio de Janeiro: Rocco, 1994.p. 243-288        [ Links ]

MALYSSE, Stéphane Rémy. Extensões do feminino: Megahair, baianidade e preconceito capilar. Disponível em: http://www.studium.iar.unicamp.br/11/megahair/Megahair.pdf        [ Links ]

MAURANO, Denise. Prefácio de: Sobre as manipulações irreversíveis do corpo, de Paola MIELI. Rio de Janeiro: Coleção Janus, Corpo Freudiano do Rj/ Contracapa, 2002. Disponível em: http://www.corpofreudiano.com.br/txt19.htm        [ Links ]

RIBEIRO, Liliane Brum. Cirurgia Plástica estética em corpos femininos: a medicalização da diferença. Disponível em: http://www.antropologia.com.br/arti/colab/vram2003/a13-lbribeiro.pdf        [ Links ]

TEIXEIRA Daniela Pessanha. Intensidades Corporais e Subjetividades Contemporâneas: uma reflexão sobre o movimento da Body Modification. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Departamento de Psicologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Julho de 2006        [ Links ]

 

 

* Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia, professora adjunta do departamento de Neurociências e Saúde Mental da UFBa, doutora em psicanálise pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ

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