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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.9 n.9 Salvador  2008

 

PSICANÁLISE E ARTE

 

Ilusões

 

 

Vígínia Lúcia Britto Silva

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

O texto aborda o percurso de análise com as dificuldades em romper a repetição gozoza e abrir espaço para o desejo e a criação.

Palavras-chave: Final de análise; Transferência; Repetição; Gozo; Criação.


 

 

No livro Uma temporada com Lacan, Pierre Rey retratando o seu percurso de análise escreve: "Há anos que corria atrás da minha própria sombra. Precisava tomar fôlego. Ainda não sabia o que desejava, embora já tivesse pago caro para descobrir o que não queria mais."1. Rey pede uma hora a Lacan. Começa assim uma temporada de dez anos de análise.

As mais diferentes queixas têm levado as pessoas a buscar na psicanálise uma solução para os problemas que as aflige, pois, na maioria das vezes, a convivência com o sintoma tornou-se insuportável. Muitas fantasias permeiam esta procura e uma delas é a crença que existe alguém que detém um saber, chave mestra para suas aflições. A partir desta relação paciente-analista é aberto um espaço para a escuta, onde o paciente ao falar pode transformar sua queixa em demanda de análise.

Na busca dos conteúdos inconscientes contidos no sintoma, Freud estuda a repetição que aparece na relação transferencial e no decorrer da análise, percebendo-a como uma maneira de recordar, aquilo que escapa à apreensão consciente. O paciente repete ou atua seus conteúdos reprimidos, repete seus sintomas no curso do tratamento, a sensação de piora é inevitável. Recorda repetindo o que pode viabilizar a consciência do material reprimido.

A tonalidade amorosa da relação transferencial torna-se um ingrediente fundamental para seguir adiante aliada a uma dose de coragem. Afinal, as repetições nesta relação proporcionam ao paciente a possibilidade de escutar seu próprio desejo e conquistar um saber sobre sua escolha objetal e as fantasias tecidas que a esta se entrelaçam. A possibilidade de uma nova partida se esboça entre o ranço do velho e outro devir onde a falta de chão é o norte, onde a incerteza é a trilha onde o nada desassossega. O medo e a angústia estão no corpo e inundam a alma num constante balbuciar da pulsão.

E o que faz o caminhante seguir em tal estrada da incerteza onde todos os lemes se foram e a antiga bússola se rompeu? Como caminhar frente ao nada?

Como bem retrata a música "Monte Castelo": "Ainda que eu falasse a língua dos homens, e falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria ..."2. Só o amor repara, só o amor constrói, só através do amor o rio do inferno inconsciente pode ser atravessado. É através desta relação de amor e ódio, estabelecida no curso de uma psicanálise que o paciente pode se aperceber que o analista é um espaço vazio onde se aloja o seu discurso.

De início Freud acreditou que ao tomar consciência dos conteúdos inconscientes o analisando "se livraria" dos sintomas. Porém a experiência analítica mostrou que muitas vezes estes persistiam. Questionando o porquê, Freud dá-se conta da existência da pulsão de morte, a satisfação na dor que prende o sujeito ao antigo padrão de repetição.

Observando os percursos de análise, poucos são aqueles que conseguem romper a barreira da repetição gozoza, rumo ao novo. Novo este que des-loca o sujeito do seu antigo lugar — surgindo o desconhecido, fonte de angústia que remete àquela primeva. Um novo nascer se esboça, parto que é partida e partir — algo se rompe, o cordão carne e o cordão vida se lançam numa aventura onde o devir é o desamparo.

Rompidas as antigas defesas, descobertas as ilusões que por muito tempo foram as moletas do seu caminhar, uma morte acontece, vem o luto pelo gozo perdido. Superado o luto, surge a reboque o medo de repetir tudo aquilo que foi dor, enfiar o pé naquelas "má-locas".

Ganho e perda, dor e prazer, vida e morte, dois lados de uma mesma moeda convivendo nesta espiral de vida que pode ser vida ou morte em vida. Para onde seguir? Como prosseguir num final de análise com a perda da ilusão do suposto saber do analista, com este analista que vira buraco, espaço vazio no qual o sujeito se escreve?

O jeito é criar. Como nos diz Pierre Rey: "A criação nunca vem de uma felicidade. Resulta de uma falta. Contrapeso de uma angústia, inscreve-se no vazio a ser preenchido por um desejo do qual se espera o gozo e do fracasso da sua realização. Equivale a dizer que só pode nascer de um malogro, da falta-a-gozar. Eu até deduzira que, desde o começo dos tempos, toda criação estava contida nos dez centímetros que separam a mão de um homem da bunda de uma mulher. O homem morre de vontade de por a mão nessa bunda. Se concretizar o gesto e a mulher o aceitar, vão para a cama e fazem amor. Há gozo: nada é criado. Se não tiver coragem volta para casa sozinho, louco de frustração, compõe a Nona sinfonia, pinta O homem do elmo de ouro, escreve a Divina comédia ou inicia o Pensador. Eu simplesmente esquecera que a criação está em outro lugar, em todos onde se manifesta a falta — pois esta é estrutural e nos condiciona por toda parte, sempre. E mesmo se aquela mão tivesse ido até aquela bunda, nunca teria encontrado o que pensava achar. Assim como aquela bunda, supondo que as bundas pensem, não teria tirado do contato com aquela mão a plenitude esperada (...)"4

Mais adiante, Pierre Rey escreve: "Quero dizer que, em vez de submeter meus desejos a meus meios, decidido a pagar tal preço, eu achara preferível criar os meios para os meus desejos — partir do desejo para multiplicar a própria vida em vez de ajustar os desejos limitando-os ao dado da vida. Eu ainda precisava aprender que o objetivo da vida não é preencher a falta, mas que, ao contrário, a falta é causa do desejo.

Sabendo-o, por que não tentar vivê-lo?"5

Deslizando pelo desejo, trago um trecho de canção do Gilberto Gil: "Drão / o amor da gente é como um grão / uma semente de ilusão / tem que morrer pra germinar / plantar nalgum lugar / ressussitar no chão / nossa semeadura (...)"6

Final de análise é perda de ilusão, é constatação que o amor é vão — espaço vazio onde projetamos o "objeto a" — objeto do desejo. É pura ilusão acreditar na perpetuação do momento de prazer — ele só vive numa báscula do tempo, morre e vira história, para ressuscitar em outro chão, em outro momento. O vínculo de amor é metáfora e metonímia, estendendo-se no infinito constrói uma arquitetura — imenso monólito marcado pelo sujeito do inconsciente.

Final de análise é confronto com o sujeito da falta. É poder lançar o olhar sobre o abismo do nada, é poder encarar as fragilidades, impossibilidades, limitações e assim alçar vôo movido pelo desejo num eterno criar-criando.

 

REFERÊNCIAS

FREUD,Sigmund. Mais além do princípio do prazer [1920]. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v.XVIII.         [ Links ]

FREUD, Sigmund. Observações sobre o amor transferencial.[1915(1914)]. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XII.         [ Links ]

FREUD, Sigmund. Análise terminável e interminável[1937]. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XXIII         [ Links ]

MOSCOVITZ, Jean-Jacques e Grancher, Phillip. Para que serve uma Análise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11 . A ética da Psicanálise. Rio de Janeiro.:Jorge Zahar, 1997.         [ Links ]

 

 

1REY, Pierre – Uma Temporada com Lacan. Rio de Janeiro: Rocco, p. 29, 1990.
2ROUSSO, Renato. Monte Castelo. Disponível em: www.webletras.com.br/letra/musica/710178/legiao-urbana/monte-castelo.htm-32k-

3REY, Pierre – Uma Temporada com Lacan. Rio de Janeiro: Rocco, p. 20, 1990.
4REY, Pierre – Uma Temporada com Lacan. Rio de Janeiro: Rocco, p. 170, 1990.
5GIL, Gilberto. Drão – http://www.gilbertogil.com.br/sec_discografia_view.php?id=33
6FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar – 1914. Rio de Janeiro: Imago, 1976. ESB. Vol. XII.

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