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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.9 no.9 Salvador  2008

 

PSICANÁLISE E LITERATURA

 

A arte do encontro: leitor e personagem

 

 

Carlos Pinto Corrêa*

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

O autor focaliza a figura do personagem na obra literária, e sua autonomia frente ao criador que é o autor, ou frente ao leitor, que tenta lhe impor sua interpretação. Passando da questão literária à psicanálise, observa que a relação sujeito-objeto e vazio ocorre também na literatura. Escritor e leitor não se encontram via personagem. Ambos seguem seu destino que aponta para o vazio.

Palavras-chave: Psicanálise; Obra literária; Personagem; Interpretação; Literatura.


 

 

Quem entender a linguagem entende Deus
Cujo filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda muda,
Foi inventada para ser calada.

Adélia Prado

Sem intenção prévia, percorremos o caminho teórico da criação literária em uma seqüência cronológica, que diria quase didática. Iniciamos por uma revisão da teoria da criação (1998), passamos ao objeto da criação (1998-b) e chegamos ao efeito da publicação com o desamparo do autor (2000). Para a jornada Artes da Psicanálise, avançando o ciclo, tomaremos a questão do encontro do leitor com o personagem da obra literária.

Antes de tudo se torna necessário retirar o foco do tema da criação (obra) ou de quem cria (autor) para focalizar o personagem, e o estatuto de sua existência, independente de qualquer relação com o texto. FERRO (1999) fez interessante abordagem lembrando um importante diálogo entre dois personagens de A Ilha do Tesouro. Silver temendo a raiva do Capitão Smollet, se defende dizendo: “eu sou apenas um personagem de um conto sobre o mar. Eu não existo”. Na verdade, ao tentar negar, mostra de forma inequívoca e paradoxal a realidade de sua existência.

O personagem tem um estatuto fortemente realístico. Sua credibilidade depende da coerência de seus pensamentos e ação com as pessoas que o leitor traz em sua mente. Ele deve se situar em diferenças que o torne particular ou original, mas deve possuir algo universalizado no que pensa ou fala e na sua história. A ligação entre os personagens em suas relações recíprocas marca os parâmetros que dão o sentido do existir para o leitor. Quando Silver diz ser apenas um personagem, além de estar absolutamente consciente de que é um sujeito, está insurgindo contra seu criador e tenta passar de criatura a autor para o próprio autor. Este simples diálogo nos propõe três questões:

1 – O personagem possui vida autônoma?

2 – Mesmo depois de criado, o personagem permanece sendo uma marionete ao gosto do autor?

3 – O personagem, como objeto, pode ser completamente manipulado pelo leitor?

Quando se inicia a leitura de um texto o personagem é incógnito e o leitor pode escapar do que este lhe sugere, abandonando a leitura. Prosseguindo no texto, quanto mais o leitor tenta apreender para dominar o personagem, mais ele escapa e o verdadeiro sentido da escrita pode se perder. Podemos fazer uma analogia proposta por BARTHES (2003), dizendo que o bom leitor precisa, em princípio, aceitar sua ignorância expressa em relação do incognoscível: “Que quero eu afinal, eu quero conhecer você?” Na leitura, este outro que é o personagem não reage às minhas provocações. Assim, “o meu outro se definiria apenas pelo sofrimento ou pelo prazer que me proporciona”, de outro modo diria que o personagem vale pelo que é capaz de me colocar frente ao meu desejo.

Literariamente, personagem é a “pessoa que é objeto de atenção por suas qualidades, posição social ou por circunstâncias” escreveu HOUAISS (2001) em uma curiosa conjugação. Freud, na Interpretação dos Sonhos, chama de personagem as figuras representadas que aparecem na narração dos sonhos. Podemos pensar também que o personagem é a encarnação de alguém recortado da realidade do escritor, que se torna uma espécie de espelho da realidade com a qual o leitor se defronta. Ele está situado entre o escritor e o leitor. Mesmo tendo sido inventado pelo autor, o personagem aparece como figura independente do seu criador e tem vida própria entre seus pares. Esta condição mantém sua autonomia frente ao leitor que vai buscar nele uma existência real. Na narração literária ele se torna o elemento fundamental que regula a coesão do texto, permitindo que a narrativa seja legível.

A coerência do texto nos leva, entretanto, a repensar até que ponto a autonomia do personagem se impõe a compreensão do leitor. De outro modo, se sua soberania ditatorial poderia anular escritor e leitor em nome de sua sobrevivência. Em posição oposta, alguns críticos defendem a primazia do leitor que teria ampla liberdade de interpretação sobre o que lê, havendo ainda os que garantem a imposição do escritor diretamente sobre o leitor, transformando o personagem apenas em um intermediário manipulado. Esta questão é o cerne de uma polêmica entre ROTY (1989) e Umberto ECO (1990). O primeiro, simplificando a questão, afirma que qualquer tipo de leitura de um texto literário é perfeitamente legítima, porque o texto é, por si só, um esboço que necessita ser integrado e feito viver, seja como for. Eco se opõe, sustentando que o importante não é a vontade do leitor, já que o texto tem, em sua estrutura, determinados elementos que autorizam uma leitura e invalidam outra.

A polêmica aponta uma verdade impossível para a literatura, tentando aproximação ou afastamento de uma objetividade frente à criatura imaginada. Como na segunda crítica de KANT (1788), podemos também situar o leitor entre a admiração e o temor quando refletimos sobre o céu estrelado acima de nós e a lei moral dentro de nós. A reflexão é nossa, mas a partir da escolha entre o céu ou o interior, percorremos todas as possibilidades, desde a idealização suprema de um deus até o recôndito de nossa culpa original ou da busca do primeiro objeto perdido. Mas se falamos de Kant, para quem o mundo é essencialmente incognoscível, aprendemos que nunca podemos conhecer de fato a realidade. Levando-se em conta a “realidade literária,” ainda é mais difícil sustentar uma existência do personagem independente de quem o cria (escritor) ou de quem o encontra (leitor).

O personagem é este outro que faz o sujeito crer e também mentir. A narração trata de uma história acontecida que é revista no presente com a leitura, ocasião em que o personagem adquire o fórum de real (realidade), mas aos olhos de quem lê, qualquer discordância pode mostrar que o personagem mente. LACAN (1955/56) no seminário 3 mostra que a fala de sujeito a sujeito é uma fala que pode enganar, mas que há também algo que não engana. A descoberta do engano no personagem impõe ao leitor a descoberta em si de algo que não engana. Lacan nos diz que não é de realidade que se trata no psicótico, mas da certeza. Parafraseando, diríamos que na literatura o personagem não tem compromisso com a realidade, mas a sua certeza impõe ao leitor a noção de realidade, mesmo quando sabe tratar-se de uma história de ficção.

Na verdade, a literatura escorre no campo do imaginário, inicialmente na criação do autor, com quem os significantes guardam uma conexão inconsciente. Na obra literária os personagens adquirem sua vida própria e até mesmo em obra autobiográfica, a escrita é na verdade o lugar em que se fala da falta, como uma das maneiras de passar pela castração. E, este sujeito (autor) “às vezes fala de forma não-sabida por ele mesmo, já que o sujeito sempre diz mais do que pensa ou pretende”

Se o personagem vai além do autor e se apresenta ao leitor como uma realidade nova, o imaginário do leitor vai recortar o que lê, produzindo novas conexões com os significantes encontrados. A recriação do personagem pelo leitor, mesmo sendo uma construção inicialmente imaginária, não pode ser tomada como arbitrária. Na leitura, o personagem pertence a quem lê, desvinculado de sua origem. O autor entra em cena quando o personagem mente e marca um corte no imaginário do leitor que vai tentar uma nova verdade, provavelmente na busca do equívoco.

Cito a interessante posição de um colega psicanalista que terminando a leitura de Abismos (1998-b), me telefonou indignado com o destino que eu dera a André. Durante algum tempo, a cada encontro nosso reclamava com ênfase que eu não tinha o direito de ter escrito aquele final. O personagem o tocara como ex residente em Paris. Ele convivera com o romance escrito, até que o acontecimento inconcebível no seu imaginário o remetera ao autor, como se ainda fosse possível modificar seu destino. Sartre (1963) em Os dados estão lançados, descreveu interessante situação de inconformismo do personagem que insiste por uma chance de ter uma vida menos desastrada. Pedro e Eva pedem a Deus, metáfora do autor, que em princípio seria o senhor da vida e morte do personagem, que sabendo do final, pudessem tentar que tudo fosse diferente para triunfo do amor e da felicidade. Com a aceitação de Sartre, ou de Deus, novas esperanças surgem. Pedro e Eva tentam por vias diferentes, mas as ciladas do destino conduzem a uma repetição trágica do mesmo fim. Por possuir vida própria, o personagem deve cumprir seu destino muitas vezes até contrariando o imaginado poder supremo do autor.

É verdade que “o autor constitui o momento forte da individuação na história das idéias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da filosofia também e na das ciências”, disse FOUCAULT (1969), mas falou também no apagar das marcas demasiado visíveis do autor. Desde Mallarmé, o desaparecimento do autor se tornou uma exigência para anulação dos privilégios que ele possuía no século XIX, quando sua palavra era lei. Desaparecendo na obra, o autor deixa um espaço vazio, uma lacuna como outras fissuras da literatura que nos possibilita perscrutar os espaços e funções livres. A ausência do autor anula o espaço do mestre que ocupava na literatura antiga e remete o leitor ao vazio, ou à sua falta.

A tentativa de se estabelecer uma ponte entre o leitor a o escritor, retirando do personagem sua autonomia, tem sido freqüente na crítica e na crônica literária. Machado de Assis, nosso escritor mais estudado, é repensado através de seus personagens, do mesmo modo que estes são examinados e analisados na busca de suas vinculações genéticas com o pai. Ele é reconhecido, freqüentemente, como pessimista, um clichê que reduz a complexidade da leitura e entendimento de seus textos. Machado afirma: “o que faz do meu Brás Cubas um autor particular é o que ele chama rabugens do pensamento”, e mais adiante, assumindo-se como autor: “Escrevi com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Aqui é o autor quem se revela, mas o que fala do personagem não é o que qualquer leitor pensa a respeito. Há possivelmente quem não concorde e até possa se assustar com o que diz o criador: o leitor não se obriga a concordar com o autor, sua autoridade foi esgotada no momento da publicação em que entregou sua obra ao editor.

Pode-se pensar que o personagem ocupa posição privilegiada na relação de encontro dos sujeitos — autor-leitor com seu objeto e suas faltas. Do ponto de vista do autor, o personagem se torna um significante em uma cadeia que aponta para um real oculto na obra literária. Do ponto de vista do leitor, este mesmo personagem é um significante de quem lê. Destituído de objetividade, o personagem faz um semblante que possibilita sua apreensão de tantos modos quantos são os leitores e irá sempre apontar para o vazio (sem resposta) do escritor.

Seria interessante acrescentar a diferença entre os conceitos lacanianos de letra e significante, que permitem pensar a escrita ou o ato de escrever, como produtores de uma forma material, concreta, na escavação de um real que aparece no local do impossível, “neste lugar resistente de toda significação prévia, onde alguma coisa de legível fecha” BRANDÃO (2001).

A partir do seminário Livro 4 de Lacan (1957), capítulo sobre o véu, podemos ousar uma representação esquemática do que foi dito. Entre o sujeito e o objeto surge o véu como ídolo da ausência. Aí está o sujeito, o objeto, e este mais além que é o nada. Tomando o escritor como o sujeito, e como na relação literária, o personagem como o objeto, este aponta para o nada, como acontece com a obra publicada.

 

 

Em seguida, o leitor, tantas vezes apontado em trajetória oposta ao caminho do autor, deverá ser repensado. Tomando o mesmo esquema do véu, o leitor como sujeito, terá também como objeto o personagem, que é uma criação sua, diferente daquilo que o autor concebeu, mas do mesmo modo, aponta para o vazio.

 

 

O esquema mostra que na verdade, autor e leitor, seguindo a trajetória do personagem, encontram o vazio. A literatura, morada da escrita e do sujeito, acolhe as manifestações da subjetividade, lugar de encenação possível do desejo impossível, deslizante metonímico. O sujeito escreve para quem sua escrita marca um encontro faltoso com o real, ou ponto de ancoragem para o seu desamparo.

A partir da melhor localização do personagem, estamos questionando o tipo de encontro possível na literatura e, parafraseando Vinícius de Morais, diríamos que a literatura é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pelas letras. Falamos do desamparo do escritor pela publicação de sua obra e agora chegamos ao desamparo do leitor conduzido pelo personagem.

Continuando o poema de Adélia Prado:

A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda
Foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
Se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.

 

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado. (1881) Memórias Póstumas de Brás Cubas. In:___. Obras Completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1971.         [ Links ]

BARTHES, Rolan. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2003.         [ Links ]

BRANDÃO, Ruth Silviano. A Vida Escrita: Os Impasses do Escrever. Rio de Janeiro: Imago, 2001.         [ Links ]

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FERRO, Antonino. [1999] A Psicanálise como Literatura e Terapia. Rio de Janeiro: Imago, 2000.         [ Links ]

FOUCAULT, Michel [1969]. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 2003.         [ Links ]

HOUAISS,A [2001]. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.         [ Links ]

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*Psicanalista. Sócio Fundador do Círculo Psicanalítico da Bahia

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