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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.9 no.9 Salvador  2008

 

PSICANÁLISE E LITERATURA

 

Tristam Shandy: um estilo a se considerar para o diálogo entre literatura e psicanálise

 

 

Denise Maria de Oliveira Lima*

 

 


RESUMO

Neste trabalho proponho apresentar as elaborações teóricas de Sérgio Paulo Rouanet sobre o estilo shandiano, forma literária usada por Stern, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garrett e Machado de Assis, apresentadas em seu livro Riso e melancolia.
Ao indicar, sucintamente, as quatro características da forma shandiana — hipertrofia da subjetividade do autor, digressividade e fragmentação, subjetivação do tempo e do espaço e interpenetração do riso e da melancolia — pretendo fazer uma aproximação entre a literatura e a psicanálise, apontando um possível diálogo entre as duas.

Palavras-chave: Subjetividade; Fragmentação; Digressão; Subjetivação do tempo e do espaço; Riso; Melancolia; Associação livre; Inconsciente; Literatura.


 

 

Ao colocar no título deste trabalho a palavra "diálogo" quero dizer que, no meu pensamento, não se trata, para a psicanálise, de interpretar soberanamente fatos artísticos ou culturais, de "psicanalisar" a literatura, personagens literários, as artes plásticas, seu conteúdo, o que quer que seja. Por outro lado, não se trata, também, para a arte, de "interpretar" temas próprios à psicanálise. Trata-se, sim, de trazer à luz, a partir da psicanálise e da arte — consideradas como produtos da cultura e resultantes das condições sociais de sua produção — novas questões que se propõem em forma de diálogo.

Não se trata, igualmente, de justapô-las para melhor compreender um determinado objeto, mas de estabelecer uma relação entre elas, mantendo suas próprias identidades, respeitando-se a irredutibilidade de cada uma. Esta relação — que inclui, também, a contestação, que caracteriza o diálogo — pode levar a novas interpretações e construções do objeto, como também, eventualmente, a transformá-lo.

 

DE TRISTAM SHANDY A MACHADO DE ASSIS.

Tenho nas mãos o último livro de Sérgio Paulo Rouanet, intelectual brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras, profundo estudioso da psicanálise — a qual lê em alemão — especialista da Escola de Frankfurt, autor de inúmeros livros, ensaios e artigos, entre os quais, quero destacar, entre vocês, Os dez amigos de Freud, em dois volumes, no qual trata dos autores literários citados por Freud1.

Rouanet é um pensador humanista, na visão de Boaventura Santos2 , que diz que a característica do humanista é a atitude de assumir a dimensão pessoal, singular, no trabalho de investigação — pois, conhecer o objeto é conhecer o conhecimento sobre os objetos, ou seja, conhecer é auto-conhecer-se, todo conhecimento é auto-conhecimento — atitude própria do pesquisador que não separa sua vida pessoal e seus interesses da sua vida de acadêmico e estudioso.

O livro a que estou me referindo tem o título de Riso e melancolia. A forma shandiana em Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garrett e Machado de Assis3.

Eduardo Portella, editor, que escreve o prefácio, diz que "a sabedoria e a vibração não costumam andar juntas, mas esta é uma exceção. A consistência teórica de Rouanet abre novas janelas, perspectivas inéditas de compreensão", para a "fortuna crítica de Machado de Assis". Cito Portella, pois desde o início da leitura desta obra senti a vibração com que o autor nos transmite o seu estudo sobre a forma shandiana e a vibração com que a recebemos.

Neste livro Rouanet examina, em suma, recursos literários, estilísticos, que tem a ver com a forma livre de escrever usada por Machado de Assis e os autores citados por ele: Laurence Sterne, Xavier de Maistre, Almeida Garrett e, por licença intelectual de Rouanet, Diderot.

 

A FORMA SHANDIANA

As transgressões, ou melhor, as inovações literárias, que resultam na forma livre de escrever — que diz respeito não ao conteúdo, mas ao estilo, de Laurence Sterne, em seu livro A vida e as opiniões de Tristam Shandy, cavalheiro, (1759)— são analisadas e interpretadas por Rouanet.

Em primeiro lugar, segundo ele, o título da obra é singularmente inadequado, pois o autor nada diz sobre a vida do personagem-narrador, Tristam, com exceção de alguns detalhes insólitos relativos à sua concepção e ao seu nascimento. Quanto às opiniões, não são as do narrador, como sugere o título, mas as do seu pai, Walter, do seu tio, Toby, e do criado deste, Trim.

Sterne retém do romance convencional apenas a descrição psicológica dos personagens, como Walter, "erudito extravagante que tem opiniões sobre tudo, desde formas de governo e economia política até a influência dos narizes e dos nomes próprios no destino individual". No mais, inova em tudo.

Depois deste, Sterne publica outro livro, Sentimental jorney (1768) assinado por Yorick, que é personagem de Tristam Shandy, um pastor descendente remoto de um bobo da corte da Dinamarca (alter ego de Stern), também pastor.

Rouanet nos adverte no início de seu livro que, entre esses autores e suas obras, existe uma aparente heterogeinedade, pois, em que pese não haja nada em comum, biograficamente, tematicamente, teoricamente ou politicamente entre eles, há uma afinidade literária, "facilmente perceptível para quem lê esses livros sem espírito preconcebido".

E sustenta que há uma influência em cascata, "uma corrente em que cada elo tem algum vínculo com os anteriores. Assim, Diderot deve algo a Sterne; Xavier de Maistre deve algo a Sterne e a Diderot; Almeida Garrett deve algo a Sterne, Diderot e a Xavier de Maistre; e Machado de Assis deve algo a Sterne, Diderot, Xavier de Maistre e a Almeida Garrett".

Rouanet demonstra essa cascata de influências de uns para os outros autores subseqüentes fazendo comparações entre fragmentos de suas obras. Diz ele que "essa busca de influências é um passatempo fascinante, mescla de ciência e bisbilhotice, mas não vai ao essencial". O que Rouanet vai buscar é a existência de uma verdadeira afinidade interna entre esses autores.

A começar pelo que ele chama de "excentricidades gráficas" usadas nos diferentes livros, a exemplo de linhas pontilhadas, de páginas em branco ou em negro, de rabiscos, de floreios, que apontam para convergências bem mais profundas, ou seja, de afinidades estruturais.

De que se tratam? Garrett, no prefácio de sua obra, escreve que os leitores achariam "fundidos os admiráveis estilos de [...] Sterne e Xavier de Maistre". Machado de Assis, no pórtico de Memórias póstumas, escreve, por intermédio de Brás Cubas, que adotara a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre.

Estilo para um e forma para o outro. São as Palavras-chave, mas sobretudo forma, que é a criada por Laurence Sterne em Tristam Shandy, a forma shandiana.

A palavra "shandean", no Webster´s International Dictionary, significa "alguém que tem o espírito de Tristam Shandy" e "shandysm", "a filosofia de Tristam Shandy". Nessa acepção, o shandismo "é uma atitude diante da vida, uma concepção de mundo, um modo de enfrentar a vida e seus absurdos", diz Rouanet. Pode designar, também, "uma atitude entre libertina e sentimental, um sensualismo risonho, um humor afável e tolerante, capaz de tolerar transgressões próprias e alheias, mas também de zombar, sem excessiva malícia, dos grandes e pequenos ridículos do mundo". Neste sentido, continua Rouanet, "podemos falar em personalidades shandianas", do mesmo modo que falamos de personalidades pantagruélicas ou quixotescas.

Mas Rouanet propõe usar o termo para designar uma forma literária – a forma shandiana. Sterne a criou, mas quem a definiu foi Machado de Assis, 126 anos depois de Sterne e a milhares de quilômetros de sua Irlanda natal. Foi no prefácio "Ao leitor", de Brás Cubas, e no prólogo da terceira edição de Memórias póstumas, onde se lê "Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Braz Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo". No prólogo da terceira edição Machado acrescenta Almeida Garrett, "toda essa gente viajou: Xavier de Maistre à roda do quarto, Garret na terra dele, Sterne na terra dos outros. De Braz Cubas se pode talvez dizer que viajou à roda da vida"4.

Algo inédito na história das influências literárias — que tem se limitado a estudar o impacto das obras mais antigas sobre as mais recentes — é que Machado, ao sugerir que seu livro fosse interpretado à luz dos seus modelos, sugere também que sua obra servisse para iluminá-los! Como diz Rouanet: "É o caso pouco banal de um influenciado que influencia a compreensão crítica de quem o influenciou".

Machado dá as indicações do que Rouanet chama de "forma shandiana": (1) "hipertrofia da subjetividade"; (2)"digressividade e fragmentação"; (3) "subjetivação do tempo e do espaço; e (4)"interpenetração do riso e da melancolia".

Vou falar resumidamente dessas características estruturais e ilustrá-las limitando-me a poucos exemplos de Sterne e Machado de Assis, deixando para vocês o prazer de conhecer os dos outros autores, Diderot, Maistre e Garrett, através da leitura de Rouanet.

 

1. HIPERTROFIA DA SUBJETIVIDADE.

A primeira característica estrutural da forma shandiana, diz Rouanet, é um atributo do narrador e não do autor, frequentemente confundidos. "Quem fala usando o nome de Tristam Shandy não é o autor Sterne, e sim um narrador inventado por Sterne", por mais que o autor possa ocasionalmente projetar algo de sua vida e de sua personalidade no narrador, que é criatura do autor, parte integrante do livro, mesmo que não seja personagem.

A hipertrofia da subjetividade se manifesta tanto no capricho, na volubilidade, quanto na relação arrogante que o narrador tem com o leitor. Tristam Shandy é o protótipo de todos os narradores volúveis, diz Rouanet. Suas intervenções na narrativa são imprevisíveis. É o "reino do capricho", déspota absoluto, que às vezes assume um aspecto benevolente, às vezes cruel, que transparecem na relação com o leitor. Às vezes adula o leitor, convida-o para almoçar, por exemplo, outras lhe permite contribuir com a narrativa, dá a ilusão de que ele é livre, aconselhando-o, por exemplo, a pular um capítulo, ou a desenhar a imagem de uma dama, colocando à sua disposição uma página em branco. Mas o leitor, que parece ser livre para usar esta página como bem entender, é advertido por Tristam de que deve se sujeitar aos limites da moralidade pública, não pode macular a castidade do livro com coisas inconvenientes!

Tristam pode também dizer que o leitor é um grande asno ou criticá-lo severamente por sua desatenção, por não saber deduzir algo das entrelinhas, ou seja, os leitores deveriam aprender a pensar, a ser menos ignorantes, que estudassem mais! As frases são engraçadíssimas. Convida o leitor para imaginar o resto de uma cena, para frustrá-lo logo em seguida, dando as instruções precisas de como o leitor deveria imaginá-la.

Ao descrever uma viagem, diz que vai dedicar 50 páginas a um episódio, mas começa o capítulo seguinte dizendo que teve pena dos leitores, "embora os tivesse em seu poder!" e que dispensaria as 50 páginas.

Machado de Assis começa um capítulo, em Memórias, dizendo que seria melhor suprimir o capítulo anterior, mas não suprime nada: "Estou com vontade de suprimir este capítulo [...] decididamente suprimo este capítulo". E decididamente não o suprime.

Em outro trecho, diz que o leitor prefere a anedota à reflexão e, por isso, Brás lava as mãos, transferindo ao leitor a responsabilidade pelas deficiências da obra: "O maior defeito deste livro és tu, leitor"! Ele termina o prólogo da 1ª edição dizendo:" Se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se não te agradar, pago-te com um piparote, e adeus".

 

2. DIGRESSIVIDADE E FRAGMENTAÇÃO

O capricho e a volubilidade dos autores shandianos se manifestam no método da digressão: não se submetem à linearidade da narrativa, preferem quebrá-la "com ziguezagues sobre os quais não prestam contas a ninguém".

Vale citar aqui Machado de Assis: "Este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param".

Sterne não inventou o método digressivo, mas, diz Rouanet, ninguém como ele "inventou essa técnica com uma veia cômica tão refinada".

O complicado, ao se estudar as digressões em Tristam, é que a narrativa principal é extremamente lacônica, fazendo crer que, nas seiscentas páginas do livro, o que mais se lê é a matéria digressiva.

São vários os tipos de digressão. As extratextuais, como as denomina Rouanet, se referem a materiais já prontos, externos ao texto, como, por exemplo, "um parecer de três doutores em teologia da Sorbonne, em francês antigo, sobre se seria ou não lícito batizar, fazendo uso de uma injeção, uma criança ainda não nascida." Em outro momento um personagem é "convidado a ler um sermão que tinha caído das páginas de um livro", que, na verdade, era "o texto integral de um sermão que o próprio Sterne havia pronunciado na catedral de York, em sua qualidade de pastor anglicano, e que tinha sido publicado em 1750". Outro exemplo de digressão extratextual é o texto latino de uma excomunhão redigida no século XI.

O segundo tipo de digressão é chamado de auto-reflexiva, ou seja, as que têm como objeto o próprio livro, sobre suas qualidades estéticas, seu estilo, sua composição, fazendo com que o autor não se apague atrás do livro, como instância neutra, mas assume que sua obra é uma construção subjetiva. As mais típicas são as digressões sobre as digressões.

E diz Rouanet que as digressões com que o autor shandiano costuma justificar as digressões são "às vezes expressas em frases tão cheias de digressões que ele se confunde, e não sabe como terminar seu pensamento". "E agora, como vocês estão vendo, eu me perdi." Fica desesperado em se explicar pelas palavras e, então, recorre a figuras geométricas, cada uma mais complicada que a outra, e, agora, promete evitar as digressões, para em seguida dizer que estas são necessárias para manter o justo equilíbrio entre a sabedoria e a insensatez, sem o qual nenhum livro poderia se sustentar por um só ano! Tristam decide inserir sua digressão somente três capítulos adiante mas, nos capítulos intermediários, faz novas digressões, falando do seu hábito de barbear-se quando se sente particularmente estúpido.

O terceiro tipo de digressão, Rouanet chamou-a de opinativa: constitui-se das opiniões do narrador, Tristam, como sugere o título do livro, mas principalmente do seu pai e do seu tio, que opinam sobre tudo, dissertam sobre tudo, sem nenhum compromisso com a coerência.

Outro tipo de digressão se manifesta pelas histórias paralelas, que são exuberantes, em contraste com a pobreza da história principal, chamadas por Rouanet de "digressões narrativas".

Rouanet diz que "agora podemos entender a complexidade diabólica do procedimento de composição de Sterne". A narrativa principal é cortada por digressões e estas são cortadas pela narrativa principal e por outras digressões; como os cortes são múltiplos, a fragmentação é ilimitada. E Tristam Shandy "é a montagem supremamente bem-sucedida de todos esses fragmentos".

As digressões prediletas de Machado de Assis são as auto-reflexivas. Brás fala o tempo todo sobre o seu livro, da sua forma livre e difusa, explica o ordenamento e o conteúdo dos capítulos, diverte-se fazendo auto-elogios irônicos, faz uma digressão sobre a digressão enquanto processo construtivo.

 

3. SUBJETIVAÇÃO DO TEMPO E DO ESPAÇO.

A soberania dos autores shandianos —. que se manifesta na hipertrofia da subjetividade, que se manifesta no capricho e na volubilidade, que se manifestam no método da digressão — se manifesta também na maneira arbitrária de tratar o tempo e o espaço, dissolvidos na subjetividade do narrador, que os trata despoticamente, assim como tratou o leitor.

O autor shandiano é agudamente consciente do poder do tempo sobre as pessoas, seja por submetê-las à velhice e à morte, seja por impor o peso do passado sobre o presente [...], assumindo uma atitude de desafio. Ele finge ser senhor do tempo [...].

O primeiro aspecto dessa relação com o tempo é a consciência da transitoriedade das coisas, a consciência do efêmero. Assim, o narrador distorce o tempo histórico, que serve como pano de fundo, como também maneja arbitrariamente o tempo da ação, que fica radicalmente subordinado ao tempo narrativo.

Sterne cria um tempo narrativo que remaneja o tempo da ação por meio de técnicas como a temporalidade cruzada, a imobilização, a inversão, o retardamento e a aceleração. Elas servem para conter a angústia do autor, que sofre com a consciência da passagem irreversível do tempo.

Na temporalidade cruzada se interpenetram o tempo do narrador, o tempo da ação e o tempo dos personagens. Por exemplo, o narrador invade o passado de seu personagem para modificar o seu futuro.

A imobilização consiste em petrificar um personagem enquanto o narrador faz as suas digressões, para despertá-lo capítulos depois. Tristam deixa tio Toby com um gesto de sacudir as cinzas do cachimbo para ficar dezenas de páginas fazendo digressões disparatadas, para depois, concluídas as digressões, mover Toby de novo jogando as cinzas. Noutra passagem, menciona uma parteira e a esquece por seis capítulos, e, quando retoma o tema, diz que sente algum remorso por um esquecimento tão prolongado. Em certos trechos Tristam diz que vai deixar os personagens dormindo, para ter tempo para si e fazer digressões. Depois, desperta-os com um rangido de uma porta!

Outra técnica é a inversão, por meio da qual "o narrador age sobre a flecha do tempo, corrigindo a sua irreversibilidade". Há flashbacks, flashforwards, e a interpenetração de ambos. O livro começa antes do começo e termina antes do fim. "O começo, que deveria ser a história da vida de Walter e Toby, acaba sendo a história das calamidades pré-natais que perturbaram a concepção do herói e dos desastres que presidiram o seu nascimento. O fim, que deveria ser a maturidade do herói, no momento em que ele começa a escrever suas memórias, é o episódio final dos amores do tio Toby, isto é, quatro anos antes do nascimento de Tristam. Há uma inversão do tempo ao longo do livro, totalmente arbitrária.

A ação também pode ser retardada ou acelerada: são os dois extremos do método do narrador. O retardamento é obtido pelas digressões: Tristam pede licença para contar a história à seu modo, demorar-se na estrada, "vadiar no caminho". Se às vezes sente necessidade de contar todos os pormenores, em outras o narrador se impacienta, convence-se da inutilidade da descrição exaustiva e a narrativa se torna rápida, lacunar, com tanta velocidade que o leitor, zonzo, tem que reconstituir a cena em sua imaginação.

"A representação shandiana do espaço é tão caprichosa quanto a do tempo". Tempo e espaço se desmaterializam, se transformando em vivência subjetiva, ao sabor dos interesses e caprichos do narrador, de suas simpatias e antipatias.

O tratamento arbitrário dispensado ao tempo e ao espaço também se estende às unidades lógicas: dedicatória, prefácio, capítulos. Tristam faz a sua dedicatória no final do capítulo 8 do volume I, deixando um espaço em branco e oferecendo-a, ao preço de 50 guinéus, a qualquer duque, marquês, conde ou barão que deseje comprá-la, comprometendo-se a preencher o espaço em branco com o nome do comprador na próxima edição do livro.

O prefácio também vem no meio do livro e não no início. O autor shandiano, apesar de saber que um livro tem um começo, um meio e um fim, não se atem necessariamente a esta ordem. O fim pode estar no começo, o começo no fim, e um e outro podem estar no meio.

Quanto aos capítulos, que deveriam ser normalmente consecutivos, para Tristam isso é uma "tirania insuportável!" Tristam decide que precisa escrever o capítulo 25 antes dos capítulos 18 e 19, por mais que os críticos o censurem. Assim, ele passa do capitulo 17 ao 20 e só muito mais tarde escreve os dois capítulos pulados. A inversão dos capítulos reflete a inversão do tempo da ação, em que o fim pode estar antes do começo.

Há também o tempo sem tempo — imobilização — durante o qual nada acontece, ou muito pouco, visualizada pela supressão dos capítulos e sua substituição por páginas em branco. Tristam suprime todo o capítulo 24 do volume IV e defende essa supressão por razões estéticas, ou seja, as páginas que faltam eram tão bem escritas, tão superiores ao resto do livro que destruiriam o equilíbrio entre as diferentes partes da obra. Mas Rouanet diz que a verdadeira explicação é outra: Tristam acha que a questão que estaria tratando, neste trecho, é indigna da atenção de pessoas sérias; assim, trata de uma não-questão em um não-capítulo.

Outra maneira de manifestar a imobilização é deixar capítulos em branco, como "contrapartida visual dos tempos em branco". Essas páginas em branco contém uma informação essencial, que correspondem, aparentemente, a não-acontecimentos. Após uma página em branco vem outra parcialmente em branco, terminando com uma partitura musical!

Com os capítulos em branco, Tristam alude à pobreza dos acontecimentos, mas, ao reintroduzi-los, mais tarde, ainda que invertidos, reconhece que eles não foram inteiramente nulos. Aqui se dá também um efeito de retardamento, pois os capítulos em branco reaparecem, depois, como texto.

Rouanet diz aqui que, ao fazer isso, Tristam obtém um poderoso efeito estético, o qual não vou tratar agora, deixo para quem quiser ler o livro Riso e melancolia.

A título de ilustração, um capítulo vazio, em branco, que reaparece, depois, trata de uma viúva que fica olhando para baixo, para um rasgão em seu avental, enquanto esperava que o tio Toby declarasse o seu amor. Ora, diz Rouanet, rasgão (slit) significa também fenda, cujo significado sexual "é óbvio tanto em inglês quanto em português, não tendo dificuldade em interpretar o gesto da viúva como uma ação sintomática no mais puro sentido freudiano". Rouanet recomenda, a quem julgar rebuscada essa interpretação, a leitura de Freud, em Psicopatologia da vida cotidiana, em uma passagem onde este cita Tristam Shandy, "a conhecida novela humorística de Lawrence Sterne", dizendo que "Também no campo dos atos sintomáticos a observação psíquica tem que ceder a prioridade aos poetas e não pode fazer mais que repetir o que estes têm dito já há muito tempo"5.

Rouanet dá a sua interpretação dos capítulos em branco que serão depois reintroduzidos em texto: o material de que se trata (sexual) é primeiro censurado, para depois reaparecer parcialmente dissimulado pela descontextualização e pela inversão. "A mesma história é, por assim dizer, contada duas vezes, a primeira pelo silêncio e a segunda pela linguagem".

Esta técnica shandiana me faz lembrar do Bloco mágico, ou Bloco maravilhoso. Mas esta seria uma digressão, não a farei agora.

 

4. RISO E MELANCOLIA

Por fim, a última característica estrutural analisada por Rouanet desses autores shandianos, é a interpenetração da melancolia e do riso. A respeito de sua obra, Memórias, Machado de Assis diz que "Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia" Creio que, depois desta frase, não há muito mais a acrescentar!

À maneira shandiana, deixarei vocês "livres" para refletirem sobre as confluências da literatura — em suas características estruturais, tal como Rouanet as formulou — e da psicanálise.

No momento, posso apenas dar algumas indicações do diálogo entre a forma shandiana e a psicanálise:

1.hipertrofia da subjetividade do autor, que se implica em sua obra, que se relaciona com a subjetividade do pesquisador, psicanalista;

2.digressividade e fragmentação, que se relaciona com a "associação livre";

3.subjetivação do tempo e do espaço, que se relaciona com a atemporalidade do inconsciente; e

4.riso e melancolia, que se relaciona com o humor, que, para Freud, é a maneira mais saudável de lidar com as adversidades da vida.

É interessantíssimo notar que, com a técnica das páginas em branco, depois apresentadas em texto, a forma shandiana muito se relaciona com o processo do recalque e da construção em psicanálise.

Se eu indico agora, laconicamente, — os pontos de confluência da literatura e da psicanálise, que tornam possível o diálogo entre ambas, — é apenas por enquanto. Ao ter este trabalho escrito, para a publicação, posteriormente a este encontro, estarei apresentando, com detalhes, esta confluência. Ou não! Como os autores shandianos, as promessas podem não ser cumpridas. Servem apenas (!) de estímulo e de inspiração para que cada leitor, à seu modo, procure a sua própria interpretação.

 

REFERÊNCIAS

ROUANET, S.P. Riso e melancolia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.         [ Links ]

MACHADO DE ASSIS. Obras completas. 3ª ed. Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre: W. M. Jackson Inc Editores, 1942.         [ Links ]

FREUD, S. Obras completas. Trad. directa del aleman por Luis Lopez-Ballesteros y de Torres.Tomo I. Madrid: Biblioteca Nueva, 1973, p. 890.         [ Links ]

 

 

* Psicanalista. Doutora em Ciências Sociais/UFBA
1Publicado pela Companhia das Letras, 2003.
2 Citado pela psicanalista e doutora em Letras/UFBA, Denise Coutinho, em seu parecer na minha banca de qualificação do doutorado em Ciências Sociais/UFBA, em maio de 2007.
3 Rouanet, S.P. Riso e melancolia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

4 MACHADO DE ASSIS. Obras completas. 3ª ed. Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre: W. M. Jackson Inc Editores, 1942.
5 FREUD, S. Obras completas. Trad. directa del aleman por Luis Lopez-Ballesteros y de Torres.Tomo I. Madrid: Biblioteca Nueva, 1973, p. 890.

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