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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.9 no.9 Salvador  2008

 

PSICANÁLISE E LITERATURA

 

Nabokov, leitor de Joyce

 

 

Marcus do Rio Teixeira*

 

 


RESUMO

Situando inicialmente Vladimir Nabokov em sua trajetória da Rússia até se tornar professor nos Estados Unidos, toma-o como professor de Ficção Européia interpretando Joyce. Mas o texto aproxima os dois mestres do mesmo ofício e os coloca frente ao uso das palavras e seus limites, incluindo a questão da palavra imposta como definiu Lacan. Termina demonstrando o desconhecido fascínio de Nabokov por Joyce.

Palavras-chave: Literatura; Psicanálise; Vladimir Nabokov; James Joyce.


 

 

Famoso após a publicação de Lolita (1955), romance ao qual seu nome é comumente associado, Vladimir Nabokov é na verdade autor de uma vasta obra, que inclui contos e romances escritos em russo e inglês, dentre os quais se destaca Fogo Pálido (1962). Menos conhecida é sua carreira de professor de literatura; as anotações de suas aulas, entretanto, constituem uma referência importante para compreender melhor sua concepção da obra literária e seu próprio estilo. Desde sua chegada aos EUA, como exilado da então União Soviética, Nabokov trabalhou como professor, a princípio na Universidade de Stanford e em seguida em Wellesley e Cornell. Inicialmente lecionou na cadeira de literatura russa, porém a partir de 1948 passa a ensinar também uma matéria intitulada Mestres da Ficção Européia. Em suas aulas desse período discute as obras mais representativas de Jane Austen, Dickens, Flaubert, Kafka, Proust e Stevenson.

Além destes autores, James Joyce comparece com seu romance Ulisses. A inclusão de Joyce é bastante significativa, uma vez que o autor irlandês, mais do que os outros autores estudados no curso, é para Nabokov uma referência importante e um modelo que ele busca superar (apesar de afirmar, no seu jeito provocador, que não aprendeu nada com Joyce). Nesse sentido é importante observar a maneira como ele apresenta a seus alunos Ulisses (do qual, como ele próprio confessa, gostava "imensamente"), e como discute o estilo de Joyce. Tais comentários, lidos hoje, possuem o valor não somente de crítica literária, mas enquanto mostras da opinião de Nabokov acerca do que ele considerava como as qualidades e os defeitos da escritura joycena, opinião sem dúvida marcada por um misto de admiração e rivalidade por esse escritor, cuja posição de destaque na literatura ocidental moderna era disputada por ele.

Contudo, apesar de possuirem um público semelhante, Joyce e Nabokov são na verdade dois escritores muito diferentes no estilo e na sua concepção da literatura. Tais diferenças se tornam evidentes na crítica nabokoviana a Joyce. Para Nabokov, Joyce "exagera o lado verbal do pensamento"; ele lembra que as pessoas "não pensam sempre por meio de palavras, mas também por imagens, enquanto o fluxo de consciência pressupõe um jorro de palavras que podem ser anotadas (Nabokov, 1982, pag. 289)". Esta opinião parece resultar de uma incompreensão surpreendente, num leitor tão atento, do papel da linguagem na obra de Joyce e, em ultima instância, na própria literatura. O que ele chama de "truques" ou dispositivo [device], referindo-se aos jogos de palavras, não é para Joyce de modo algum um mero ornamento, um recurso às vezes "exagerado" para enfeitar a narrativa. Na verdade, a opinião de Nabokov é menos indicadora de uma incompreensão do que de uma tomada de posição: para ele, a atitude correta de um escritor no que diz respeito à linguagem é a sua: a linguagem deve ser um meio de exprimir enredos bem elaborados e personagens bem construídas, e jamais se destacar frente à narrativa.

Para Joyce, ao contrário, a linguagem, longe de ser um meio, é o próprio tema dos seus últimos romances, sobretudo de Finnegans Wake, que Nabokov, naturalmente, detestava, e que apelidava, depreciativamente, de "Punnegans Wake". Em uma leitura radicalmente oposta à de Nabokov, Lacan busca compreender Joyce como um artífice da palavra, elevando os seus jogos significantes a uma posição central. A sua tese, desenvolvida no Seminário 23, O sinthoma, é que a escritura desempenha para Joyce a função de um quarto aro que vem enodar os três registros do Real, Simbólico e Imaginário, os quais de outro modo restariam desenodados.

Ou seja, os jogos de palavras, além de constituírem muito mais do que um simples enfeite, seriam para Joyce praticamente inevitáveis, dada a sua relação particular com o significante. Dessa forma, eles se aproximariam das "palavras impostas"do caso psiquiátrico que Lacan discute na época do seu seminário frente ao público da "presentation de malades" do hospital Sainte-Anne. No caso em questão, o paciente se queixava de que as pessoas conheciam seus pensamentos. Segundo sua própria expressão, ele era um "telepata emissor". Além disso, certas palavras ou frases se impunham ao seu pensamento, de forma alheia à sua vontade. A estas ele chamava de "palavras impostas" ou " palavras parasitas ou emergentes" (p. ex: "sujo assassinato político" ou " sujo assistanato político"). Lacan faz então um paralelo com a atitude de Joyce a respeito da sua filha Lúcia. Esta, diagnosticada como esquizofrênica, era considerada por Joyce uma autêntica telepata. Finalmente, Lacan conclui a respeito do trabalho de Joyce com a linguagem ("Ele acaba por impor à própria linguagem um tipo de quebra, de decomposição, que faz com que não haja mais identidade fonatória") dizendo que "No que concerne à fala, não se pode dizer que alguma coisa não era, para Joyce, imposta" (Lacan, 2007 pág 93).

Cabe colocar aqui duas distinções entre o caso do paciente de Sainte-Anne e Joyce: enquanto o primeiro afirmava ser um telepata, Joyce não se considerava como tal, mas acreditava que sua filha o fosse, duvidando do diagnóstico dos médicos. Em segundo lugar, as falas impostas eram percebidas dessa forma pelo paciente, que as escutava impondo-se ao seu pensamento, contrariando a sua vontade. Para Joyce, de forma diversa, o trabalho com a linguagem não era fruto de uma imposição delirante, mas da elaboração de um escritor. Os jogos de palavras, os puns, não comparecem aleatoriamente na sua obra, mas são fruto de uma minuciosa pesquisa de língua inglesa e de outros idiomas que ele dissolve e refunde no inglês. Ambos, Nabokov e Lacan, se aproximam portanto, apesar das suas leituras opostas; cada um enxerga em Joyce o seu próprio ideal, e destaca no autor e na obra aquilo que mais se aproxima do seu estilo e da sua teoria.

Em vista da sua concepção da literatura, não é de modo algum surpreendente que Nabokov aconselhe seus alunos a consultar mapas e elaborar diagramas para ajudar na leitura de Ulisses. Tal método de leitura duplica na verdade a metodologia empregada por Joyce, que utilizou recursos semelhantes na elaboração de alguns capítulos. Este estilo de leitura atende, quem sabe, ao anseio joyceano por um leitor ideal, extremamente atento (ou extremamente obsessivo) para se ocupar dos mínimos pormenores do enredo do seu romance. Nabokov é este leitor, pronto a rastrear os personagens pelas ruas de Dublin e a desenhar croquis da casa de Bloom. Porém algo se perde nessa leitura obsessiva, que busca ressaltar o rebuscamento na elaboração do enredo. Ulisses, lido dessa forma, se assemelha a um gigantesco quebra-cabeças para adultos. O próprio Nabokov se ressente do excesso com que se depara, porém em vez de questionar a sua leitura, que produz tal excesso, prefere censurar Joyce por atravancar o seu romance com detalhes e pormenores que geram uma "desnecessária obscuridade".

Não é à toa, portanto, que quando Nabokov produz a sua resposta a Ulisses anos mais tarde, o resultado seja uma obra que é, de fato, um enorme quebra-cabeças. Trata-se de Fogo Pálido. A dificuldade em falar sobre esse livro começa pela própria definição do seu gênero literário: estamos diante de um ensaio de crítica literária, de um romance ou ainda de um poema? Na verdade, todas essas formas convivem em Fogo pálido (além da biografia, do romance policial, etc) engenhosamente articuladas em um delicado mecanismo de relojoaria. Mesmo para o leitor que desconhece o fascínio de Nabokov por Joyce é evidente a relação deste livro com Ulisses. Porém, trata-se de um Ulisses segundo a leitura de Nabokov: um livro onde a elaboração do enredo e o rebuscamento da narrativa se situam em primeiro plano e onde a linguagem cumpre uma função secundária. O resultado é que enquanto Ulisses permanece atual até hoje, Fogo Pálido, apesar de genial, parece datado, como tantas experimentações da literatura moderna no século XX.

A ironia é que Nabokov se aproxima de Joyce onde ele menos espera. Para esclarecer esta opinião, lembremos sua rixa com o esquema comparativo entre Ulisses e a Odisséia. Nabokov parece tomar esse esquema como uma ofensa pessoal, e descarta qualquer sentido em aproximar as duas obras. Por quê? Se, como ele mesmo admite, Joyce já expõe a referência à obra de Homero no seu título, por que seria absurdo, como ele sugere, buscar pontos em comum entre os dois textos?Às vezes as implicâncias de Nabokov parecem gratuitas, porém neste caso podemos pensar que além da sua ojeriza a toda e qualquer leitura simbólica ou alegórica de uma obra literária, sua irritação se deve ao fato de que, mais uma vez, Joyce o supera, desta vez no retrato do homem comum.

As personagens de Joyce, como sabemos, não são pessoas excepcionais, dotadas de alguma característica notável ou de uma vida extraordinária. Ao contrário, desde os seus contos de Dublinenses ele prefere retratar pessoas comuns, vivendo vidas banais, sendo Leopold Bloom o mais célebre exemplo. Esse Ulisses moderno, em contraste com o herói homérico, é um judeu de classe média que em vez de monstros fabulosos enfrenta o preconceito da Dublin anti-semita. Sua esposa Molly, ao contrário de Penélope, a "concubina de ninguém" (no dizer do poeta Teócrito), é uma cantora lírica que tem um caso com seu empresário. Seu Telêmaco não é na verdade seu "filho biológico", como se diz absurdamente hoje em dia, mas um estudante que ele adota espiritualmente. A Itaca à qual ele retorna é sua casa e suas aventuras duram o tempo de um dia. Tal paralelo com a Odisséia não é de modo algum forçado, como Nabokov tenta levar seus alunos a acreditarem. Joyce construiu de fato uma Odisséia moderna, ambientada numa cidade européia onde não há mais lugar para o herói tradicional.

A reação irritada de Nabokov só expõe o fato de que, longe de ser um ponto de discordância entre ele e Joyce, a escolha de pessoas comuns para viver o papel que já foi de personagens clássicas é algo que ele também cultiva. Desde seus primeiros contos, povoados por emigrados russos como ele, até seus romances mais famosos, ele escolhe falar daqueles que vivem vidas desprovidas de interesse, onde a emoção só se manifesta de forma patética. Vários personagens seus apresentam essa característica, porém o mais famoso é certamente Humbert Humbert, o narrador de Lolita — que Lacan considerou uma obra cuja estrutura "tem todas as características da relação do sujeito com o desejo, com a fantasia neurótica propriamente dita" (Lacan, 2002, p.487). Com ele Nabokov se aproxima do anti-herói joyceano de Ulisses. Humbert, assim como Bloom, é um indíviduo sem nenhum traço extraordinário; um pouco acima dos seus próximos no que diz respeito a sua capacidade intelectual, sem ser excepcionalmente inteligente; com uma vida banal, a não ser por um detalhe: sua paixão por uma menina de doze anos, e a desgraça em que esta paixão o lança.

Isto insere Humbert na linhagem dos amantes trágicos. Na tragédia amorosa o personagem vive uma paixão, mas é impedido de alcançar o objeto de sua paixão por uma diferença de classe, pela distância geográfica, por uma intriga de terceiros, etc. Em um segundo momento, após uma série de provas nas quais o seu amor é testado, ele finalmente alcança o objeto. É o momento de júbilo, que dura pouco, porque logo a seguir vem a perda do objeto, provocada por um fato inesperado. A essa perda segue-se a morte do personagem apaixonado, do objeto da sua paixão ou de ambos. O enredo de Lolita preenche todos esses requisitos. Humbert é tomado pela paixão por Lolita, objeto interdito devido à diferença de idade. Após uma longa espera marcada pelo sofrimento, o acaso a coloca ao seu alcance, porém após um período de aparente tranqüilidade, ela lhe é roubada por aquele que Lacan chama de "o perverso propriamente dito" da história.

A sua vingança, com a passagem ao ato homicida, vem encerrar o ciclo da tragédia. Porém se Humbert cumpre todos os passos do amante trágico, ele o faz enquanto sujeito da modernidade. Ainda que ele seja arrebatado pela paixão ("alienação do desejo num objeto" segundo Lacan) e que esta o lance no infortúnio (tema caro a Nabokov conforme trabalhei em outro lugar) ele está longe do perfil dos amantes trágicos. Ele não é um cavaleiro como Sir Lancelot, mas um professor de curso secundário; não tem o bom-mocismo de Romeu, porque é aquilo que se chama um mau-caráter; sua decadência não é comparável à de Marco Antonio, pois ele não cai de muito alto. Ainda assim, ele atualiza, como Bloom, a forma do drama clássico para a modernidade. Ambos, Bloom e Humbert — o primeiro na epopéia, o segundo na tragédia — atualizam papeis que já foram vividos por precursores ilustres. Se suas vidas e suas ações não parecem grandiosas comparadas às de seus antecessores, é porque em nossa época não há mais lugar para a grandiosidade.

Poderíamos dizer então que Nabokov é o mais fiel dos leitores de Joyce, ao mesmo tempo que é o que dele mais se fasta. Ao aperfeiçoar esta que é uma das características da literatura moderna, o deslocamento do drama para a vida de pessoas comuns, Nabokov se situa ao lado de Joyce, superando-o talvez em alguns momentos. Porém, ao pretender superá-lo na elaboração da narrativa, desprezando ao mesmo tempo o seu trabalho com o significante, ele se confunde e perde de vista aquilo que constitui o essencial para Joyce. Talvez seja justamente na descrição do desejo que ambos voltam a se aproximar, mas essa é outra história.

 

REFERÊNCIAS

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 5, As formações do inconsciente . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.         [ Links ]

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 6, O desejo e sua interpretação. Porto Alegre: APPOA, 2002 (publicação não comercial, circulação interna)         [ Links ].

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23, O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.         [ Links ]

LACAN, Jacques. Entretien de J. Lacan aec G. Lumeroy. In: Le Discours Psychanalytique nº 7, Paris: Editions J. Clims - Association Freudienne, fev. 1992.

MAFFEI, Marcos (Seleção). Os Escritores : As históricas entrevistas da Paris Review. v.2. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.         [ Links ]

NABOKOV, Vladimir. Lectures on Literature. New York: Harvest, 1982.         [ Links ]

 

 

* Psicanalista. Salvador, Bahia.

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