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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.9 n.9 Salvador  2008

 

PSICANÁLISE E CINEMA

 

A Vila: tabu e melancolia

 

The Village: taboo and melancholy

 

 

Natália G. Galucio Sedeu*; Eugenia Teofila**

Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

Neste trabalho, o filme A Vila, do diretor M. Night Shyamalan, é interpretado a partir das teorias de Sigmund Freud sobre o tabu e a melancolia. Destaca-se a instalação do tabu como forma de evitar o contato com o sofrimento causado pela morte de entes queridos, sem que seja efetuada a elaboração do luto — o que é uma característica da melancolia.

Palavras-chave: Segredos; Tabu; Melancolia; Sofrimento; Cinema.


ABSTRACT

In this work, director M. Night Shyamalan's film The Village is interpreted from Sigmund Freud's theories about taboo and melancholy. It's stood out the instalation of taboo as a way to avoid contact with suffering caused by the death of beloved relatives, without the accomplishment of mourning elaboration — that's a feature of melancholy.

Keywords: Secrets; Taboo; Melancholy; Suffering; Cinema.


 

 

Tudo é dor / e toda dor / vem do desejo / de não sentirmos dor
Renato Russo

O filme A Vila (The Village), escrito e dirigido por M. Night Shyamalan, nos fornece um material que pode ser interpretado à luz das teorias freudianas sobre o tabu e a melancolia. Nossa intenção, neste trabalho, é trazer alguns subsídios para essa interpretação, sem pretender esgotar o assunto.

A Vila se localiza em terras cercadas por uma floresta (Covington), num clima de século XIX (no início do filme, aparece a inscrição "1897" no túmulo de uma criança que acaba de morrer). Seus moradores formam uma comunidade de trabalhadores do campo (que vivem longe das "cidades"), isolada do resto do mundo. Esse isolamento serve para criar a "sociedade perfeita": não há dinheiro, todos repartem os alimentos que semeiam e colhem, todos são amigos e vivem em harmonia.

A comunidade é presidida por um Conselho de Anciãos que determina as regras, acatadas por todos. Uma dessas regras é a de que ninguém pode adentrar a floresta, habitada por "Aqueles De Quem Não Falamos", criaturas malignas capazes de atacar e matar quem quer que ultrapasse os limites da floresta. Romper o isolamento é proibido, um tabu — existe uma trégua que é respeitada de ambos os lados: enquanto os moradores da Vila não entrarem na floresta, as "criaturas" também não entrarão na Vila. Os moradores compartilham o medo que sentem da "força maligna" e o pressentimento de que algo os espreita lá fora. Ao anoitecer, alguns moradores acendem tochas que iluminam o perímetro urbano; existe um guarda noturno fazendo vigília numa torre, que deverá tocar um sino caso aviste alguma "criatura" entrando na Vila. O vermelho é uma cor proibida (outro tabu) naquela comunidade, pois atrai as "criaturas": em uma cena, duas mulheres jovens estão varrendo a frente de casa e encontram uma flor vermelha, arrancam-lhe até as raízes e a enterram.

Freud tratou extensamente dos tabus e suas implicações psicanalíticas na obra "Totem e Tabu", de 1913. O tabu é expresso na forma de proibições e restrições. Segundo a definição da Encyclopaedia Britannica (citada nessa obra de Freud), o tabu pode ser comunicado e imposto por um sacerdote, chefe ou outra pessoa. Dentre outros objetivos, serve para a proteção das pessoas contra a cólera ou o poder dos deuses e espíritos. Ao se submeterem às proibições, os indivíduos sabem que qualquer violação terá punição. Segundo Freud, "em seu inconsciente não existe nada que mais gostassem de fazer do que violá-los, mas temem fazê-lo; temem principalmente porque gostariam, e o medo é mais forte que o desejo" (Freud, 1913, p. 51).

No filme, os moradores da Vila gostariam de violar o tabu de não se ultrapassar o limite entre a Vila e a floresta. Isso é mostrado na brincadeira em que alguns jovens mais corajosos tentam ficar no limite da floresta, de costas para a mesma e de braços abertos, pelo maior tempo possível, enquanto ouvem os ruídos das "criaturas" se aproximando. Em certo momento, o temor acaba sendo irresistível e eles fogem do local. Assim, o temor é sempre maior que o desejo e os moradores seguem a proibição do tabu — todos vivem sem poder falar sobre "Aqueles De Quem Não Falamos" e sem poder ultrapassar os limites da Vila.

Dentre os diversos personagens que compõem a trama, alguns se destacam: Edward Walker, chefe do Conselho de Anciãos; Ivy, filha de Edward, uma jovem cega que demonstra ter mais sabedoria e sensibilidade que os outros moradores; Lucius, filho de Alice Hunt (também pertencente ao Conselho), rapaz introvertido, com dificuldade de expressar seus sentimentos, mas bastante corajoso (é o "campeão" da brincadeira citada acima, que ficou por mais tempo de costas para a floresta); Noah, filho de um casal de Anciãos, doente mental, que gosta muito de Ivy, adora brincar de briga com os outros rapazes da Vila e ri quando se fala das "criaturas".

Os moradores submetem-se às proibições, como se isso fosse uma coisa natural. Estão convencidos de que qualquer violação do tabu terá automaticamente a mais severa punição. Para Freud, "a violação de certas proibições tabus constitui um perigo social que deve ser punido ou expiado por todos os membros da comunidade se é que não desejam sofrer danos" (Idem, p. 53). Em determinado momento, Lucius entra na floresta e avança alguns metros antes de retornar; pouco tempo depois, as "criaturas" invadem a Vila, levando o pânico a todos os moradores, que se escondem em suas casas para se protegerem. Lucius se sente culpado e acaba confessando sua violação da regra ao Conselho, pedindo desculpas a todos. Segundo Freud, "A proibição deve sua força e seu caráter obsessivo precisamente ao seu oponente inconsciente, o desejo oculto e não diminuído — isto é, a uma necessidade interna inacessível à inspeção consciente" (Idem, p.50). No filme, todos tinham o desejo de ultrapassar a floresta, mas não o faziam por medo do castigo que viria se violassem o tabu, a mesma relação que o homem tem com seus desejos — tem vontade de satisfazê-los, mas algo o impede de fazê-lo.

Na Vila, não existe dinheiro, negócio ou competição, todo o povo segue as resoluções do Conselho de Anciãos, num ambiente de tranqüilidade e paz que, na verdade, se sustenta no medo permanente de que as "criaturas" ataquem a Vila. A "harmonia" se mantém até que Noah, enciumado pelo noivado entre Ivy e Lucius, esfaqueia este último e o deixa entre a vida e a morte. Nesse momento, Ivy se oferece para atravessar a floresta e ir à cidade buscar os medicamentos necessários para que Lucius não morra. Edward então revela a Ivy que a "harmonia" em que vive a Vila foi artificialmente criada pelo Conselho de Anciãos: as "criaturas" eram uma farsa inventada por eles para impedir que os moradores cruzassem a floresta e atingissem a "cidade".

Na verdade, os Anciãos não queriam lembrar, apesar de nunca terem esquecido, os entes queridos perdidos na "cidade" de forma dramática. Não queriam se lembrar do sofrimento que sentiam pela perda dessas pessoas queridas; portanto, não queriam se lembrar dos mortos, ao mesmo tempo em que não podiam esquecê-los. Encontrando apoio uns nos outros, formaram um grupo que se reunia para discutir a dor sofrida. Escolhem fechar-se em si mesmos, numa Vila onde o tempo não existe, pois as roupas e os costumes são bem mais antigos do que o mundo externo. Nessa Vila, a dor da perda supostamente não iria fazê-los sofrer (como se isso fosse possível). Os Anciãos mantinham em suas casas cofres trancados, nos quais guardavam todas as fotos e as lembranças de um tempo de que não queriam recordar. Guardavam o sofrimento da dor da perda, não conseguindo se desligar das lembranças.

Em certo momento, após olhar para o cofre guardado por sua mãe, Lucius afirma que "a Vila é repleta de segredos". Esses segredos se referem aos mortos e aos sentimentos que surgem com sua lembrança — são tabus. Tabu é o que não pode ser tocado. Para Freud, "o tabu sobre os mortos surge do contraste entre o sofrimento consciente e a satisfação inconsciente pela morte que ocorreu" (Idem, p. 83). Ainda segundo o mesmo autor, "o tabu é uma ação proibida, para cuja realização existe forte inclinação do inconsciente" (Idem, p. 52). Falar dos mortos gera muito sofrimento nos Anciãos. Pronunciar seus nomes equivaleria a invocá-los: Freud descreve um tipo de tabu em relação aos mortos, onde se evita falar o nome de uma pessoa morta. No filme, essa proibição se estende às "criaturas", referidas pelos moradores como "Aqueles De Quem Não Falamos".

A morte é vista pelas pessoas como um acontecimento pavoroso, assustador, um medo universal. Como encaramos a morte? O que acontece conosco quando perdemos alguém amado? O que sentimos? Como expressamos esses sentimentos? Essas perguntas sempre foram importantes para o ser humano, em todas as épocas e culturas. A experiência mostra que, face à morte de um ente querido, várias emoções vêm à tona. Sentimos raiva pelo fato da pessoa nos ter deixado. Também sentimos culpa, por acharmos que, de certa forma, temos participação na causa da morte, uma vez que, em algum momento em que a pessoa não pôde nos satisfazer ou atender, desejamos que algo de ruim acontecesse a ela. Em nossa onipotência, acreditamos que, de fato, nosso querer poderia efetivamente causar algum mal à outra pessoa. Somente após nos convencermos de que não foi o nosso desejo que causou a morte da pessoa é que a culpa diminui e podemos sentir o pesar por essa perda.

No filme, a culpa relacionada a esses mortos não diminui nos Anciãos, que se fecham para não sentirem essa culpa pelas perdas que tiveram e não cairem na tentação de retornarem à "cidade", numa tentativa de evitar que se repetissem as perdas com outros entes queridos. Os Anciãos não conseguem elaborar os seus processos de luto, permanecendo ligados às lembranças e fotos dos mortos, entrando num estado de melancolia.

Freud explica que a melancolia está "relacionada a uma perda objetal retirada da consciência, em contraposição ao luto, no qual nada existe de inconsciente a respeito da perda" (Freud, 1917, p. 278). Para esse autor, a melancolia apresenta "uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição" (Idem, p. 276). Aparece um empobrecimento do ego, uma perda relativa ao ego, que se coloca como sendo incapaz, sem valor, como se devesse ser punido por algo que supostamente fez. Essas auto-recriminações, no entanto, são "recriminações feitas a um objeto amado, que foram deslocadas desse objeto para o ego do próprio paciente" (Idem, p. 280). Sentindo-se incapaz de comunicar diretamente ao objeto amado a hostilidade para com ele, o indivíduo utiliza as auto-recriminações, as auto-punições como uma forma de atormentá-lo através da sua doença. Atacando a si próprio, o indivíduo objetiva atacar, por conseqüência, o objeto amado.

Na melancolia, ocorre uma identificação do ego com o objeto perdido, fazendo com que a sombra do objeto recaia sobre o ego e "este pode, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado" (Idem, p. 281). Assim, a perda objetal se transforma na perda do ego; o conflito entre o ego e a pessoa amada se transforma "numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação" (Idem, p. 282).

Os Anciãos não queriam falar dos entes amados perdidos, não conseguindo passar pelo processo de luto. O filme começa com a morte de um dos filhos de um Ancião — ao longo de todo o filme, são recorrentes os temas da negação da morte e da melancolia. A perda do objeto amoroso favorece, na melancolia, o surgimento do conflito, devido à ambivalência da relação. Esse conflito se apresenta como auto-recriminação, no qual a pessoa se sente culpada pela perda do objeto amado porque assim o desejou.

Os Anciãos queriam apagar todo o mal que sentiram no mundo exterior, por isso criaram uma Vila pacata, distante do mundo, onde todos se conhecem e se respeitam, valorizando a pureza e a calma, afastando toda e qualquer hostilidade, mas onde também existe um tabu do contato e da expressão emocional. Percebe-se que alguns personagens do filme reprimem suas emoções e seus afetos, sejam de amor ou de ódio. Edward gosta de Alice, mas não consegue tocá-la; da mesma forma, Lucius gosta de Ivy, mas só consegue romper o tabu do contato quando a Vila é ameaçada pela invasão de uma das "criaturas".

Procurando evitar os sentimentos de amor, ódio e culpa, os Anciãos criam tabus que se deslocam para outros objetos-tabus — como a cor vermelha, que atraía as "criaturas", mas estava simbolizando o sangue que seus entes queridos derramaram, a raiva, a morte e a sexualidade (tabu do contato). Segundo Freud:

O desejo instintivo se desloca constantemente, a fim de fugir ao impasse, e se esforça por encontrar substitutos — objetos substitutos e atos substitutos — para colocar em lugar dos proibidos. Como conseqüência disso, a própria proibição também se desloca de um lado para o outro, estendendo-se a quaisquer novos objetivos que o impulso proibido possa adotar. Qualquer novo avanço feito pela libido reprimida é respondido por um novo aguçamento da proibição. (Freud, 1913, p. 5).

No filme, a proibição se deslocou para a cor "ruim", que atrai: ninguém pode ver nem tocar na cor vermelha, pois estará chamando a "criatura". As cores usadas no filme são suaves e neutras, dando a impressão de um lugar aparentemente calmo e controlado, onde não é permitido o toque, nem a expressão de afeto (seja este amor ou ódio).

Esse ambiente controlado, no entanto, não consegue impedir a irrupção dos sentimentos de hostilidade de Noah, que, ao tentar matar Lucius, desfere várias facadas, demonstrando estar sentindo prazer. Ivy, ao saber o que Noah fez, vai atrás dele e bate nele com raiva. Noah, depois disso, fica agitado e alterado, acabando por encontrar as roupas de "criatura" de um dos Anciãos e fugir com elas para a floresta, transformando-se na própria "criatura".

Face à tentativa de assasinato de Lucius, os Anciãos percebem que, por mais que tentassem afastar a hostilidade do mundo externo, ainda existiria a hostilidade inconsciente, a ambivalência pertinente a todos nós: no dizer de Freud, "por trás do terno amor há uma hostilidade oculta no inconsciente" (Freud, 1913, p. 82). Os sentimentos hostis dos próprios Anciãos foram projetados na figura da "criatura". Segundo Freud, "a hostilidade, da qual os sobreviventes nada sabem e, além disso, nada desejam saber, é expelida da percepção interna para o mundo externo, sendo assim desligada deles e empurrada para outrem" (Idem, p. 84). Noah, contudo, expressa essa hostilidade quando tenta matar Lucius e, ao encarnar a "criatura", ataca Ivy na floresta (não se sabendo até que ponto por brincadeira, para assustá-la ou com o intuito de matá-la). Sendo diferente dos outros moradores da Vila, Ivy não teme e enfrenta a "criatura", acabando por fazê-la cair num buraco e morrer. A morte de Noah serve, então, para reforçar a idéia de que qualquer violação do tabu seria punida severamente — assim, o tabu poderia continuar a existir, sendo passado para as próximas gerações.

Os tabus relacionados às "criaturas" ("Aqueles De Quem Não Falamos"), à cor vermelha (não por acaso a cor da vestimenta das "criaturas") e à expressão das emoções têm a função de impedir o contato com os sentimentos ambivalentes para com os mortos — trata-se, na verdade, de tabus do contato, instaurados com a finalidade de evitar sentir a dor e o sofrimento decorrentes das mortes dos entes queridos. O mesmo Ancião que perde o filho no início do filme acaba percebendo em determinado momento que "não podemos evitar o sofrimento, o sofrimento faz parte da vida" —ou seja, que não há como fugir da dor.

Poderíamos também acrescentar que não há como fugir do desejo, do afeto, seja amor ou hostilidade. E, principalmente, que a ambivalência entre amor e ódio faz parte do ser humano.

 

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu [1913]. In: ___. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. v. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 13-194.         [ Links ]

FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia [1917]. In: ___. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 271-294.         [ Links ]

 

 

* Psicóloga e membro do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do C.B.P – seção RJ
** Artista Plástica e membro do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do C.B.P - seção RJ

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