SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.10The humor in the wordsAbout humor, still inspired by Freud and Pirandello author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.10  Salvador Oct. 2009

 

Sobre as paixões na comédia

 

About passions in comedy

 

 

Cleise Furtado Mendes*

 

 


RESUMO

Partindo de uma revisão crítica do conceito de catarse no drama, este artigo direciona o estudo desse fenômeno para a ótica da comicidade. Questionando abordagens tradicionais sobre o efeito cômico, abrem-se perspectivas para uma investigação das paixões que estão em movimento na recepção da comédia.

Palavras-chave: catarse; drama; comédia; paixões.


Abstract

Starting from a critical review of the concept of dramatic catharsis, this work studies this phenomenon from the point of view of comedy. To accomplish this aim, it analyses some traditional approaches of comic effects, giving place for a research about the passions that are involved in comedy’s experience.


Key words: catharsis; drama; comedy; passions.


 

 

A experiência catártica propiciada pelo drama, em suas diferentes formas, depende sempre de um circuito afetivo-cognitivo que põe em movimento todo o repertório de imagens, conceitos, afetos e valores do receptor. Em outras palavras: a catarse oferecida pela ficção dramática é um processo e um acontecimento, um circuito que vai de um sujeito a outro sujeito, de um desejo a outro desejo. Nesse processo, a personagem tem um papel fundamental, pois é graças a ela que se estabelece o jogo de proximidade e distância pelo qual a representação dramática permite ao espectador, através de suas máscaras e simulacros, brincar de conhecer o próprio desejo.

No caso da comédia, graças a certas teorias já centenárias, muitos estudiosos ainda hoje insistem em afastar o componente passional na explicação do seu efeito catártico. Vou me referir aqui brevemente apenas ao mais conhecido estudo nessa direção: a teoria da comicidade desenvolvida por Henri Bergson, que tem como ponto capital a idéia de que uma certa anestesia afetiva é um pré-requisito do efeito cômico. Para Bergson, a insensibilidade, seria um "sintoma" que acompanharia o riso "naturalmente" (BERGSON, 1987, p. 12). Aceitar essa concepção seria renunciar à minha visão do processo catártico como um fenômeno que não se reduz nem à experiência puramente emocional nem à aprendizagem lógico-racional; a catarse conecta a produção e a recepção da obra, mobilizando o repertório afetivo e intelectual do espectador. Por isso é importante compreender como se desenvolveu certo curso de idéias que iria, pouco a pouco, confundir a alienação de determinadas emoções com a figura de um espectador reduzido a um puro intelecto, livre de turbações afetivas.

"O cômico parece só produzir o seu abalo sob condição de cair na superfície de um espírito tranqüilo e bem articulado. A indiferença é seu ambiente natural. O maior inimigo do riso é a emoção" (Idem, p.12). Aqui Bergson faz eco às mais antigas concepções psicofisiológicas sobre o efeito cômico. O riso é um tremor, um terremoto, uma convulsão do corpo. No entanto, desde as primeiras observações filosóficas desse efeito, a trepidação causada pelo riso foi vista justamente como turbação ou impedimento da faculdade de pensar. Platão e Aristóteles, que em tudo o mais divergem sobre causas, efeitos, valor e sentido do riso, concordam quanto a isso. Ao movimentar o diafragma, barreira entre a parte alta ou nobre do corpo e o baixo digestivo, sexual e excrementício, o riso causaria uma espécie de contaminação do "centro frênico" (centro do pensamento) por humores nocivos ao raciocínio e à capacidade de julgamento. Então, já temos aí um desacordo. O abalo do riso impede o sentir, ou o pensar?

A afirmação de Bergson parece a princípio uma exclusão radical: para dar lugar ao riso, seria necessário afastar "a emoção", ou seja, toda e qualquer reação afetiva. Mas logo vemos que ele se refere a emoções bem determinadas; na verdade, a duas velhas conhecidas que surgem sempre de braços dados na longa história de discussões sobre a catarse: a piedade e o terror. Quando esses afetos recebem um nome, tudo vai se tornando claro. A teoria "científica" de Bergson trabalha com a separação popular entre sensível e inteligível, entre coração e mente, mantendo uma alternância inconciliável entre "rir de" e "sentir com", vistos como movimentos excludentes de afastamento e aproximação. Assim, o que Bergson denomina "a emoção" são apenas os afetos visados pela catarse na tragédia, definidos desde Aristóteles; sua teoria aponta, assim, as emoções a serem evitadas na produção da comicidade.

No prefácio à 23º edição de seu livro, em 1924, Bergson acrescentou uma lista de trabalhos publicados sobre o assunto desde 1900, sem discuti-los, porém (p. 7-8). No entanto, entre as obras aí listadas, encontra-se nada menos que o minucioso trabalho de Freud sobre os chistes! Esse estudo, por si só, representaria um golpe mortal em qualquer "teoria da insensibilidade", porque ele aponta exatamente os propósitos libidinais e agressivos que subjazem no jogo social da espirituosidade e abre caminho para que se possa reexaminar essa estranha negação do pathos da comédia.

Ainda entre os autores citados no prefácio de 1924, um outro merece especial destaque. Trata-se do crítico inglês George Meredith, que apresenta, em 1877, uma teoria da comédia segundo a qual seria tarefa do comediógrafo dirigir-se à mente dos espectadores: o pré-requisito indispensável ao seu ofício é que ele se desenvolva no seio, ou melhor, nas cabeças de uma sociedade "cultivada" — onde exista um grau suficiente de atividade intelectual e igualdade entre os sexos (MEREDITH, 1885-1895). O tipo de comédia descrito por Meredith tem como característica principal uma palavra inglesa de difícil tradução. Wit é razão, perspicácia, sagacidade, juízo, agudeza de espírito, engenho, sabedoria, e muito mais — noção que só se apreende desdobrada em metáforas — como a luz súbita do entendimento, ou o corte exato do raciocínio.

(A palavra "corte" detona para mim uma imagem de wit que está cifrada na carta da Justiça, no Tarô. Ela representa a deusa Atena (Minerva) logo após seu nascimento da cabeça de Zeus, parto puro da razão, não contaminado pelo corpo da mãe, pelo mundo físico e instintivo. Ela salta da cabeça de Zeus-pai, como num curto-circuito, portando seus emblemas — a espada e a balança — e executando uma dança de guerra. Em seu ofício de cortar e pesar, Atena é uma deusa guerreira, mas bem diferente de Ares (Marte); sua luta nada tem a ver com a força bruta, com a batalha sangrenta; ela é uma estrategista, representa o Logos guerreiro, o debate, a argumentação, o gume da mente afiada, a avaliação imparcial – isenta dos fluidos maternos – , o planejamento objetivo, a frieza da ponderação. Wit é o brilho dessa espada súbita que corta, atravessa, penetra...)

Não é difícil perceber que essa recepção puramente intelectual é um mito racionalista, destinado a conferir uma suposta nobreza ética ao efeito cômico. Os autores de comédia, de Aristófanes ao besteirol baiano ou carioca, jamais se dirigiram à pura inteligência, ao julgamento frio do espectador. Recorrendo a um exemplo histórico: recordem-se as violentas reações provocadas pelas primeiras encenações do Tartufo (1664), as repetidas interdições da peça, o ódio declarado dos contemporâneos ao burguês atrevido que ousava pintar com tal esmero a máscara da hipocrisia reinante, o furor da Cabala de Devotos, a cólera dos que o acusavam, entre outras coisas, de ter desposado a própria filha e tente-se em seguida imaginar esse público composto de espíritos tranqüilos, de "corações anestesiados" (Bergson) ou de "mentes cultivadas" (Meredith). A teia de rancores tecida em torno do comediógrafo por todos aqueles que foram alvo da sua crítica (ou que por ela se julgavam e se reconheciam alvejados, o que é bem pior) é apenas uma ocorrência entre muitas de tal tipo registradas na história das reações do público.

É claro que, defendendo-se de tantos ataques, o comediógrafo Molière sacou a sua única arma (como outros o fizeram em outras épocas): a função social, ética e mesmo terapêutica da exposição dos vícios. E uma boa parte dos críticos e teóricos acreditaram nisso, eles queriam acreditar nisso, e o fizeram por séculos e séculos. Daí nasceu a ficção engraçadíssima de um circuito de produção e recepção da comédia, tendo numa ponta um comediógrafo plenamente consciente da mensagem corretiva que aplicará aos vícios de sua comunidade, e na outra o público: um agrupamento de intelectos que se rejubilam em vingar-se das infrações às regras de convívio que todos comungam pacificamente. Tal ficção alimenta apenas o desejo de não ver as paixões em movimento na catarse cômica, mesmo na mais witty das comédias. Nessa linha de interpretação, já clássica, o complexo fenômeno catártico se reduziria a um processo puramente intelectivo, anulando a participação afetiva do fruidor. Isso tornaria a catarse, como eu a defino, impossível. Mas uma coisa é rir, outra bem diversa é aceitar as razões porque se ri. Os resultados da reflexão podem assustar o observador, e tanto mais na medida em que ele tenha um alto conceito das motivações humanas e, claro, de suas próprias motivações.

O que não se viu, o que não se quis ver, mesmo após as revelações incômodas da psicanálise, é que a não-solidariedade em relação ao objeto não implica que o espectador tenha se transformado numa "inteligência pura", numa espécie de observador impassível. Bem ao contrário, é por não entregar-se à empatia e à comiseração (por estar protegido disso pelas estratégias cômicas), é por não "sofrer com" que ele pode dar vazão a seus impulsos libidinais e agressivos. Por mais chocante que possa parecer a comparação, esse processo nos remete à filosofia do libertino, exposta pelo Marquês de Sade. O libertino sadiano é tão sensível à fonte do seu prazer que é capaz de gozar apenas ouvindo os gritos de uma vítima, no quarto ao lado (BARTHES, 1979, p. 148). Não se trata, pois, apenas de bloquear a empatia, mas de deliciar-se com o sofrimento alheio, de obter prazer com a dor do escravo ou súdito do ritual orgíaco. Se reduzirmos os castigos, sevícias, flagelamentos, suplícios, lacerações etc, apenas à exposição ao ridículo (e nem é preciso reduzir tanto, se pensarmos em todas as surras de pauladas que recebem infalivelmente os escravos e criados da comédia antiga, e que perduram, com diferentes classes de vítimas, em todo tipo de farsas populares, incluindo o humorismo televisivo, para o puro deleite do espectador) teremos um processo semelhante na comédia. Afinal, o impedimento da piedade e do terror é o exato pré-requisito para dar lugar a outro tipo de paixões. O que parece acontecer com o gênero cômico é o recurso a um alto grau de disfarce dos afetos em jogo, ao contrário do trágico, que consiste exatamente na explicitação (e ritualização) do luto e do sofrimento.

Somente afastando a idéia já tão sedimentada do espectador neutro, dotado de "inteligência pura", será possível compreender o fenômeno catártico próprio da comédia — nos termos de um processo ao mesmo tempo afetivo e cognitivo, de uma experiência, enfim. Chega a ser curiosa a vigência e a disseminação dessa imagem do fruidor superior e impassível que seria alvo da comédia, mesmo um século depois de certos estudos que no mínimo a colocariam sob suspeita. O primeiro e mais importante deles, que citei há pouco, é o minucioso trabalho de Freud sobre os chistes.

Por sua importância para a dramaturgia em geral, e para a comédia em particular, o estudo de Freud seria suficiente para deslocar de seu nicho a resistente teoria da insensibilidade. Sua investigação sobre os propósitos dos chistes representa, para a teoria e a prática do drama, e em especial para o estudo da comédia e seus efeitos sobre o espectador, muito mais do que a apresentação detalhada de um rico repertório de técnicas. Freud cuidou de modo exaustivo, como nenhum outro autor antes dele, de um tipo específico de comicidade verbal que sempre foi justamente a parte do cômico considerada "nobre" pela maioria de críticos e teóricos. E por quê- Porque supostamente o chiste ou "espírito" se dirigiria ao intelecto puro, a mentes refinadas, exigindo platéia culta, capaz de anestesiar, ainda que momentaneamente, suas emoções frente aos pobres-diabos arrastados em cena pelo ridículo. E é justo nesse ponto que o estudo freudiano destrói as premissas da teoria da insensibilidade.

Como se sabe, para Freud, os chistes ou frases espirituosas, embora sejam "a mais social de todas as funções mentais que objetivam a produção de prazer" servem sempre ao propósito inconsciente de satisfazer a um instinto — libidinoso ou hostil — diante de um obstáculo, seja ele externo (normas e limites da sociedade) ou interno (repressão psíquica); ao contornar tais obstáculos, os chistes conseguem extrair prazer de fontes que de outro modo permaneceriam interditadas. O homem civilizado, incapaz de rir de uma obscenidade que lhe pareceria repugnante, a ela tem acesso através de todo um repertório de chistes aceitos socialmente. O mesmo se daria com os impulsos hostis, que estão sujeitos à repressão desde a infância. Ao renunciar à expressão da hostilidade através da ação, desenvolve-se uma técnica substituta: tornar o inimigo inferior, desprezível, ridículo, e isso diante de uma terceira pessoa, uma testemunha que obtém prazer pelo riso. Transforma-se assim o desprazer do contato com fatos e pessoas desagradáveis num pretexto social de diversão, como no exemplo de alguém que se refere à dolorosa companhia de um chato com o saboroso comentário: "Viajei com X tête-a-bête" (FREUD, 1977, p. 39). Se aceitarmos a ambiguidade constitutiva do efeito espirituoso — a intenção consciente de fazer rir servindo a um propósito inconsciente de agressão ou desnudamento — depois do estudo de Freud, é impossível afirmar que "as emoções" estão ausentes do processo cômico; necessitam ser afastadas, como vimos, emoções bem determinadas, talvez todas as integrantes do naipe da compaixão e do medo, mas de modo algum as que estão associadas às pulsões agressivas e libidinais, para falar apenas das que foram devidamente reconhecidas por Freud. Mas cabe lembrar que, bem antes dos afetos revelados nesse estudo sobre os chistes, existe uma longa trajetória de discussões no pensamento ocidental sobre a comicidade, quando se trata de compreender esse fenômeno dentro do espectro das paixões humanas.

A diferença entre tragédia e comédia, para Aristóteles, aponta exclusivamente para o ethos (aqui no sentido de relativo às personagens): representação de homens superiores/inferiores ao que são na realidade (ARISTÓTELES, Poética, cap. II). A superioridade ou inferioridade com que vemos e somos vistos, ou as assimetrias que geram identidade e diferença é questão sempre presente, que repercute na ética, na poética, na retórica, na política, e parece estar aí a chave que regula os fluxos passionais.

Ao considerar que a peripécia — inversão no curso dos acontecimentos — só pode ocorrer no trânsito da felicidade à infelicidade, e vice-versa, Aristóteles adverte que não devem ser representados "homens muito bons que passem da boa para a má fortuna" — pois isso, além de não provocar terror e piedade, suscitaria "repugnância" e nem "homens muito maus que passem da má para a boa fortuna" —, pois "não há coisa menos trágica", além de não ser "conforme aos sentimentos humanos" (Idem, cap. XIII, p.81). Quando, porém, nos deslocamos da tragédia para o drama romântico e daí para o melodrama, a indignação é um afeto que recobra sua importância na economia catártica, desde que convenientemente dirigido às personagens negativas ou vilões em geral. Na comédia há uma tendência de amenizar a indignação, transformando-a numa antipatia para com as personagens obstrutoras (pedantes, avarentos, autoritários, gananciosos, intolerantes e obsessivos em geral que detêm algum poder). A piedade, por sua vez, é transformada em simpatia para com as personagens facilitadoras.

Para manter a mesma referência nesta exploração dos afetos associados ao efeito cômico, lembro que na Retórica, assim como à piedade opõe-se a indignação, a paixão oposta ao medo é a confiança (ARISTÓTELES, Retórica das Paixões, Livro II, cap.5). No desenvolvimento de uma ação cômica, o que importa é a confiança (ou segurança) que se produz exatamente porque um perigo cresceu a ponto de ser temido para depois ser vencido, ou afastado. Essa é a função do suspense cômico. E para quem ache que um mal ou um dano dentro do universo cômico não é passível de suscitar efetivo temor, seria suficiente imaginar um diferente desenlace para certos enredos consagrados e ver que esses perigos ou ameaças não são, na maioria das vezes, desprezíveis. Perder a jovem amada para o rival velho e rico, quando não para o próprio pai, como em várias comédias latinas; ser punido por leis injustas e cruéis, como em Medida por Medida; dar a vida em pagamento de uma dívida, como em O Mercador de Veneza; ser privado dos bens, da respeitabilidade e do amor da família, como em Tartufo; resignar-se a uma existência miserável, sob o arbítrio dos poderosos, como em O Auto da Compadecida seriam perspectivas dolorosas, se o perigo não se dissolvesse como um sonho mau, graças a um golpe de sorte, a uma ajuda providencial ou, mais frequentemente, ao uso da astúcia. Quando usada como arma contra algum tipo de força aterradora ou obstrutora, a astúcia parece conferir um sentimento de triunfo que pertence à escala afetiva da confiança, e da auto-confiança, mas em grau superlativo, e que podemos nomear como júbilo. Esse riso de vitória sobre um perigo iminente é quase um ponto pacífico nos estudos sobre a comicidade, associado ao sentimento de autoconfiança e superioridade que infunde no espectador.

Não há muita dificuldade em perceber a participação do júbilo e da simpatia no processo catártico da comédia. O mesmo não ocorre com uma paixão menos confessável, que se insinua como um tempero amargo no prato das emoções positivas: a inveja. Apesar de raramente apontada nas teorias do cômico, sua presença foi denunciada no que parece ser a mais antiga abordagem filosófica do riso e da comicidade que chegou até nós: o diálogo Filebo, de Platão. Na verdade, o assunto desse diálogo não é o cômico, e sim uma crítica às idéias hedonistas, mas nesse contexto vemos Sócrates apontar aquele que ri como alguém turbado por uma "afecção mista", que reúne malícia e inveja. Ele extrai seu prazer dos infortúnios de personagens que ignoram as próprias falhas, já que o vício cômico é invisível para o seu portador. Mas, além de não cientes de si mesmas, Platão adverte que tais personagens devem também ser fracas no sentido de destituídas de poder, porque diante da ignorância e insensatez dos poderosos sentiríamos ódio ou temor, afetos que, como já sabemos, afastam a possibilidade do riso (Cf. PLATÃO, Diálogos IV, p.218).

Se é aceitável que a própria fraqueza da personagem cômica faça com que ela seja vista com simpatia, não é igualmente claro porque ela deva ser invejada. Mas Platão aponta a inveja como um importante componente afetivo do "estado de alma" em que nos colocam as comédias. Como entender isso- De que modo a imagem de seres fracos, que desconhecem seus próprios vícios, despertaria em nós o afeto invejoso- Se a suprema lei do funcionamento psíquico é "evitar o desprazer", de que modo encarar a vantagem estratégica de uma emoção tão vergonhosa, inconfessável, dolorosa- A inveja seria emoção aparentada à cobiça e à admiração. Mas, por que eu sentiria inveja de uma personagem cômica- O que haveria a invejar nesse herói risível, que ao expor o seu ridículo, o nosso ridículo, funciona como signo da finitude, do limite, da menor dimensão do humano- O que se poderia cobiçar nesse anti-herói que não se conhece minimamente, que de nada sabe, nem mesmo que é ridículo-

Acontece que aquilo mesmo que torna esse herói irrisório — a inconsciência de seu pedantismo, avareza, burrice etc — é o que contribui para transformá-lo numa criança aos nossos olhos, livre para agir fora dos rigores de um padrão adulto de comportamento. Ao atuar de modo louco, absurdo, extravagante, ao dar-se o direito de dizer bobagens, a personagem cômica nos dá a impressão de manter intacto aquele "patrimônio lúdico" da infância a que Freud se refere e que o espectador sente ter perdido em nome das exigências sociais de coerência e seriedade. Realmente, de certo modo, toda personagem cômica é uma criança grande: alguém que acredita ser maior, mais forte, mais belo, mais sábio do que realmente é — e age como se o fosse. Sganarello, vestindo armadura para duelar com um suposto rival, em O Traído Imaginário, tem algo do menino fantasiado de super-herói.

Ao mesmo tempo, a personagem cômica, obviamente, não é uma criança. Dentro de uma estrutura de papéis muito persistente, que vem da Comédia Nova latina até as atuais sitcoms da televisão, ela é freqüentemente o representante de uma "sociedade de velhos" (seja por idade, posição de poder ou culto de comportamentos conservadores). Nós vemos esse adulto infantil espernear contra a realidade e agir de modo simultaneamente livre e ridículo, e nos perguntamos "por que ele acha que pode fazer isso"— A platéia adulta que ri inveja essa loucura — não quer corrigi-la ou curá-la pelo riso, como pensam Meredith e Bergson, e sim fruí-la no espaço de liberdade delimitada socialmente pela comédia. Assim, se todas as paixões têm origem nas duas grandes vertentes pulsionais de vida e morte, a personagem cômica parece funcionar (tal qual a trágica) como a vítima de um sacrifício ritual, amada e odiada, fonte de simpatia e júbilo tanto quanto alvo de pulsões erótico-agressivas: um pharmakós com máscara de bufão.

Parece, pois, haver um ponto de convergência entre o mais antigo escrito a ocupar-se do cômico (o Filebo, de Platão) e a psicanálise do século XX. Sejam "afecções da alma" ou "impulsos reprimidos", as paixões desencadeadas pelo efeito cômico podem vir de tendências tão opostas — permitindo o jogo entre proximidade e distância, atração e repulsão — quanto provêm o terror e a piedade. No atual estágio dos estudos de recepção no drama, e na comédia em particular, é difícil propor algo mais que este magro esboço de possíveis trilhas para a investigação das paixões presentes na catarse cômica. Mas reconhecer essa presença talvez seja o primeiro passo para isso.

 

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução e comentários de Eudoro de Souza. Porto Alegre: Globo, 1966.         [ Links ]

ARISTÓTELES. Retórica das Paixões. Introdução, notas e tradução do grego Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2000.         [ Links ]

BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loiola. Trad. de Maria de Santa Cruz, Lisboa: Edições 70, 1979.         [ Links ]

BERGSON, Henri. O Riso. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.         [ Links ]

FREUD, Sigmund. Os Chistes e Sua Relação com o Inconsciente. Trad. Margarida Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1977.         [ Links ]

MEREDITH, George. An Essay on Comedy. In: Collected Works. London: Chapman & Hall, 1885-1895.         [ Links ]

PLATÃO. Filebo. In: Diálogos IV. Introd, comentários e notas de Emily Chambry. Portugal: Publicações Europa-América, 1999.         [ Links ]

 

 

*Escritora, dramaturga e professora doutora da UFBA.

Creative Commons License