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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.10  Salvador Oct. 2009

 

O humor e a delicadeza

 

Humor and Delicacy

 

 

Marcus do Rio Teixeira

 

 


RESUMO

No seu filme Encontros e Desencontros (Lost in Translation, 2003) Sofia Coppola ilustra de forma precisa o papel do humor, no sentido freudiano, como defesa contra a depressão. O encontro com o objeto do amor reinstala no sujeito a instância fálica, mas isso não é suficiente para que ele possa lidar com a falta da relação sexual.

Palavras-chave: Humor; falo; desejo; depressão; Outro; amor; gozo Outro; relação sexual.


ABSTRACT

In her movie Lost in Translation (2003) Sofia Coppola shows with accuracy the role of humor, in the Freudian sense, as defense against depression. The meeting with the object of love reinstalls the phallic instance, but it’s not enough to deal with the lack of sexual relationship.


Key words: Humor; phallus; desire; depression; Other; love; Other joy; sexual relationship.


 

 

O cinema, mesmo aquele que se pretende realista, não é neutro — disso somos alertados há tempos. A novidade que nos martelam na cabeça é que ele também não é neutro no sentido de sexo (ou de gênero, como quer a terminologia politicamente correta, herdeira do puritanismo norte-americano): cineastas criariam representações a partir de um ponto de vista masculino ou feminino. Tal argumento justificaria a estratificação de filmografias rotuladas segundo o ponto de vista sexual (filmes feministas, gays, transexuais, etc).

Porém, o que talvez escape a esses teóricos é que o referido ponto de vista, quando existe, não é determinado unicamente pelo sexo anatômico ou imaginário do cineasta, mas pela sua capacidade, enquanto artista, de transcender as limitações imaginárias que o seu sexo lhe impõe. É segundo essa perspectiva que Jean-Luc Godard, escrevendo nos Cahiers du Cinéma nos anos 50, destacava Bergman como um diretor dotado de um talento para filmar as mulheres do ângulo dos homens e os homens do ângulo das mulheres. Sendo o próprio Godard um exemplo maior entre os diretores que sabem filmar as mulheres do ponto de vista dos homens, não é preciso muito esforço para compreender que ele considerava o talento de Bergman não somente grande, mas raro.

Assim sendo, é um privilégio contarmos na atualidade com uma cineasta viva que possui esse mesmo talento. Trata-se de Sofia Coppola, terceira mulher (e a primeira americana) na história do Oscar a ser indicada como melhor diretora, pelo seu filme Lost in Translation (Encontros e Desencontros), obra na qual ela lida com o humor de forma exemplar.

 

O LUGAR

O enredo se passa em Tóquio, no início do sec. XXI, para onde os personagens viajam a trabalho. Nesse cenário, somos confrontados com a alteridade extrema, onde impera a falta de referências com algo equivalente na nossa cultura. A diferença radical dos costumes, dos códigos de conduta, e, sobretudo, da língua (que a diretora destaca no título original), provoca nos personagens e em nós, espectadores, uma sensação de desconforto e estranheza.

Porém essa estranheza, no sentido freudiano do Unheimlich, é na realidade um retorno do familiar como familiarmente estranho. Pois o que o Japão moderno nos apresenta é uma imagem da cultura ocidental, ou seja, aquilo que nós encontramos nesse Oriente estrangeiro é a nossa própria cultura. Mas, assim como o Outro devolve ao sujeito a sua mensagem invertida, o Japão nos devolve uma versão modificada, hipertrofiada, da cultura ocidental: alta tecnologia onipresente, adolescentes de olhos puxados vestidos como teenagers americanos, passando horas em casas de jogos eletrônicos e karaokês de rock.

É essa sensação inquietante de se defrontar com uma versão distorcida da cultura ocidental que os norte-americanos tentam disfarçar diplomaticamente, com um pudor politicamente correto. Afinal, quando você lança duas bombas atômicas (e milhares de bombas incendiárias) sobre um país, é de bom tom um pouco de diplomacia em relação ao que os nativos fazem. Sofia Coppola rompe com a hipocrisia ao mostrar um Japão da forma que ele parece aos nossos olhos: bizarro e incompreensível. Ela explora ao máximo essa sensação de estranheza e a barreira da língua.

Mas o Outro, segundo Lacan, é também o lugar do feminino. É nesse lugar que se situa a mulher, a qual tem relação com o gozo Outro, que o homem não pode experimentar. Esta referência teórica não é casual no que diz respeito ao enredo do filme em questão.

 

OS PERSONAGENS

Somos apresentados a Bob Harris (Bill Murray), um ator hollywoodiano de meia-idade, protagonista de filmes de ação, cuja carreira está em fase de declínio. Sua fama, porém, ainda é suficiente para que fabricantes de uma marca de whisky japonês o convidem para estrelar um comercial, com um cachê de dois milhões de dólares. Como se isso não bastasse, o casamento de Bob está se desfazendo. Sua mulher, Lydia, manifesta um nítido desinteresse em relação a ele e parece inteiramente voltada para suas atividades domésticas. Seus contatos, via celular e fax, nos horários mais absurdos devido ao fuso, se restringem a questões sobre os filhos e a mobília.

Bob apresenta todos os sinais de depressão. Ele sofre de insônia, que atribui ao fuso, e que o leva a passar as noites no bar do hotel ou sozinho no seu quarto, zapeando filmes dublados em japonês. No seu desamparo, até os objetos inanimados parecem conspirar contra ele: o fax, a cortina automática, o chuveiro, o aparelho de ginástica estendem ao seu corpo a inadequação entre ele e o mundo, em cenas que evocam o humor chapliniano. Sua expressão permanente em todas as situações é de um tédio abissal. Ele executa de forma obediente e passiva seus compromissos profissionais, enquanto se auto-recrimina por não estar atuando, mas sem fazer nada para modificar essa situação.

Para Roland Chemama, que tenta trazer o tema da depressão para o campo da psicanálise, o sujeito deprimido enxerga o futuro como uma continuidade do presente. Há uma espécie de congelamento do tempo, que se apresenta como uniforme, impossibilitando qualquer mudança. Bob também apresenta um desinvestimento em relação aos objetos do desejo; para ele, o sexo não desperta mais nenhum interesse. Em uma das cenas mais cômicas do filme, ele recebe no seu quarto a visita de uma garota de programa enviada pelos seus contratantes, ansiosos por agradá-lo. O único interesse de Bob, porém, é se ver livre dela, o que se revela uma tarefa bastante difícil, complicada pela barreira do idioma.

Porém, Bob possui um recurso disponível para enfrentar a depressão. Seu humor o protege contra os "afetos desprazerosos", na expressão freudiana. No seu artigo clássico sobre o humor, Freud o considera mais elevado que o chiste, e lhe confere uma dignidade especial, por resguardar o eu das adversidades, convertendo-as — e isso é o mais importante — em motivo de fruição de prazer. Ele considera que nesse processo há uma divisão entre um supereu benevolente (sic!) e o eu, que é tratado pelo primeiro como uma criança é tratada por um adulto. Essa referência ao supereu como benevolente é rara em Freud; que eu saiba só há outra ocorrência em um texto publicado postumamente.

Como no exemplo freudiano do condenado que ironiza a sua situação a caminho do cadafalso, Bob lança o tempo todo comentários humorísticos sobre a situação em que se encontra, que transformam o seu desamparo, de constrangedor em engraçado. Nesses momentos, Bob se dirige essencialmente a si mesmo, uma vez que os seus interlocutores não têm capacidade de entender o seu humor. Como, por exemplo, na cena da sessão de fotos, em que ele tenta atender às demandas do fotógrafo, expressas num inglês canhestro. Ao ser solicitado a interpretar James Bond, ele comenta: "Ele bebe Martini e não whisky, mas tudo bem". Nós, os espectadores, somos como intrusos que usufruem desse humor secundariamente, como diria Freud: rimos da sua atitude auto-irônica, até mais do que ele, que como um bom humorista profere suas piadas sério (em alguns momentos, entretanto, o ator nos inclui: a quem se dirigem, senão a nós, esses olhos revirados para o alto e essas expressões de desconsolo diante das situações absurdas?). Dessa forma, o tédio (imenso) do personagem é amenizado e sua depressão, apesar de não diminuir, se torna suportável. Ele bebe, por exemplo, mas não chega a ser um alcoólatra.

Charlotte (Scarlet Johansson), a personagem feminina, é uma jovem de vinte e poucos anos, recém-graduada em Filosofia, que acompanha o seu marido, um fotógrafo de moda, da sua geração, numa viagem a trabalho. Este último, por sua vez, é um sujeito narcisista, que só se interessa pelo seu trabalho e por si mesmo. Ele não parece prestar a menor atenção na mulher que está ao seu lado, a não ser para criticá-la por fumar ou ser, segundo ele, pedante. Charlotte passa os dias sozinha no quarto do hotel ou perambulando sem destino pela cidade, num estado melancólico permanente.

Ela também possui um recurso para se defender desse estado, porém com uma diferença sutil em relação àquele utilizado por Bob. Charlotte possui uma capacidade de leitura dos laços sociais que a faz identificar com clareza a futilidade e a mediocridade do meio fashion no qual vive o seu marido. Trata-se de um tipo de saber que não se confunde com o saber teórico, acadêmico, que ela por acaso também demonstra possuir. Em uma cena de um dos seus passeios solitários ela atravessa um lago artificial de um típico jardim japonês, caminhando sobre as pedras dispostas na água. Na nossa língua é possível dizer que ela "sabe o caminho das pedras".

O saber de Charlotte, porém, não a defende de forma tão eficaz quanto o humor de Bob. Isso porque ela acredita que há em algum lugar um saber, que lhe falta, e que lhe ensinaria o segredo do bom funcionamento do laço conjugal (em um de seus passeios solitários ela observa uma cerimônia tradicional de casamento, onde os noivos trajando quimonos executam gestos rituais). Charles Melman diz que os sujeitos preferem acreditar que são eles os culpados pelo fracasso dos relacionamentos, do que admitir que se trata de uma falha estrutural, ou seja, que a relação sexual não existe. Essa é a diferença entre Charlotte e Bob: a primeira se pergunta como funciona o laço conjugal; para ela, a desconfiança de que a relação sexual não existe é relativamente recente.

Já Bob é cético, porque tendo constatado que a relação sexual não existe, generalizou essa constatação para a descrença em qualquer laço amoroso/sexual. Ele se parece com um leitor neófito que toma a máxima lacaniana literalmente, sem saber que, como diz Ricardo Estacolchic — "A relação sexual não existe... e é por isso que as pessoas transam". Ele se esquece também que o movimento do sujeito é o de tentar fazer existir essa relação, e que uma forma disso é acreditando que a mulher existe, ou seja, se apaixonando. Mas isso ele vai descobrir em pouco tempo.

 

O DOM DO QUE NÃO SE TEM

A primeira cena em que os personagens se encontram se passa no elevador. Esse encontro, porém, não os aproxima e deve ser contado como anterior ao primeiro. Este se passa no bar do hotel, onde Charlotte está sentada na mesa com seu marido que, como de costume, não presta a menor atenção a ela, completamente absorvido numa conversa com os membros da sua equipe de produção. Uma banda americana se apresenta no bar e a cantora interpreta, num estilo afetado e cafona, uma velha música de Simon e Garfunkel. No final da apresentação, o público aplaude entusiasticamente, inclusive o marido de Charlotte e seus amigos. Charlotte percebe Bob, que bebe whisky sozinho numa mesa, ainda maquiado após a sessão de fotos. Bob segura um charuto em uma das mãos e com a mão livre estala os dedos à guisa de aplauso, ostentando sua habitual expressão de tédio. Charlotte bate umas palmas desanimadas enquanto sorri com expressão irônica. Em seguida, pede a um garçom que ofereça um drinque de saquê a Bob, que de longe agradece com um brinde e se retira, deixando à mostra os pregadores da sessão de fotos ainda presos no seu paletó.

Essa cena me faz lembrar a afirmação freudiana de que a identificação é anterior ao amor. É claro que Freud estava se referindo à constituição do eu, mas no caso de Charlotte, podemos pensar que para ela a identificação com Bob, em quem ela reconhece a mesma percepção da mediocridade circundante, vem antes do amor. Este virá logo em seguida, suscitado não pelos atributos fálicos deste, pela sua fama, por exemplo, mas, ao contrário, pelo seu desamparo e fraqueza. "Que haja amor à fraqueza, está aí sem dúvida a essência do amor", afirma Lacan. E prossegue: "Como já disse, o amor é dar o que não se tem, ou seja, aquilo que poderia reparar essa fraqueza original."

A cena do segundo encontro é bastante elucidativa desse aspecto e constitui um exemplo de um excelente trabalho de direção. Nela, Charlotte e Bob se encontram no balcão do bar, numa madrugada insone. Vemos os atores do ponto de vista do barman, de frente para nós. Ambos mantêm uma distância que permanece inalterada durante todo o diálogo. O único movimento de aproximação física é quando Bob acende o cigarro de Charlotte, e mesmo aqui se trata de um gesto cavalheiresco, e não de sedução. A sedução, aliás, parece estar ausente desse diálogo, tanto da parte de Charlotte, que não utiliza nenhum recurso histérico, quanto de Bob, que em lugar de ostentar seus atributos fálicos, opta por se expor como imaginariamente castrado.

Quando Charlotte lhe diz, direta e tranquilamente, que ele deve estar passando por uma crise de meia-idade e pergunta se ele já comprou um Porsche (o clichê norte-americano reza que os homens de meia-idade compram Porsches para parecerem jovens, apesar de na realidade esse ser um carro inacessível para um jovem, devido ao seu preço), ele responde, muito sério, que está pensando em comprar um. Para Jean-Jacques Rassial, seduzir é manter o outro na dúvida quanto ao lugar em que ele é colocado, ou seja, escavar, alargar a falta do outro. Já no amor, como vimos, se trata de supor ser capaz de sanar essa falta (e de que o outro seja capaz de sanar a nossa falta).

 

O FALO COMO UMA ATRIBUIÇÃO FEMININA

A seqüência da aproximação entre os personagens mantém essa tônica. Quando Bob leva Charlotte a um hospital para engessar um dedo quebrado, a sua atitude não é motivada por um jogo histérico desta, mas porque ela suscita em Bob um autêntico desejo de cuidar. Ou seja, ao se colocar como não-fálica, ela abre para ele a possibilidade de se colocar como fálico, numa posição masculina. Essa nova posição não deixa de provocar conseqüências sobre Bob: seu estado depressivo se ameniza, seu interesse pela vida retorna e seu humor, antes estritamente auto-irônico, se dirige agora ao mundo. Um outro ponto digno de nota é o efeito dessa nova posição fálica sobre o seu desejo. Num paradoxo aparente, isso faz com que ele transe com a cantora do bar, o que não deve ser tomado como uma mera traição, mas como efeito do próprio envolvimento com Charlotte, que o conduz de volta à posição de sujeito desejante. Num efeito de feedback, a entrada em cena de uma outra mulher vai fazer Charlotte se interessar ainda mais por Bob.

Apesar desse interesse mútuo, nunca chega a haver uma aproximação sexual entre os personagens. Creio que foi o crítico Inácio Araújo que definiu a cena de abertura do filme, onde aparece a bunda de Charlotte com uma calcinha rosa em primeiro plano, como "uma promessa não cumprida". Isso porque não se trata de um filme sobre o desejo sexual, mas sim sobre o amor (com todas as implicações dessa diferença). As saídas do casal na noite de Tóquio são momentos de intensa proximidade, porém sem jamais chegar a um contato físico. A cena emblemática dessa situação é aquela na qual ambos os personagens, num estado de sonolência, trocam confidências na cama até caírem no sono. Bill Murray declara no making of ser esta a melhor cena que ele já filmou. Note-se que a intensidade dramática se deve menos às palavras, apesar de ser um diálogo bem escrito, do que à interpretação dos atores. Essa ausência de contato entre os personagens se deve menos a Charlotte, que espera uma iniciativa de Bob, do que a este, que descumprindo o preceito lacaniano, cede no que diz respeito ao seu desejo.

Em um diálogo na véspera da sua viagem ele consegue dizer a Charlotte que não quer voltar, ao que ela replica: "Então não vá. Fique comigo. Vamos formar uma banda de jazz". Na verdade, essa resposta tem o valor de uma intervenção analítica e deve ser dividida em três partes: a primeira, "Então não vá", é uma exortação direta — "Assuma o seu desejo". A segunda, "Fique comigo", constitui a contrapartida exemplar, onde é ela que assume o seu próprio desejo. E a terceira, "Vamos formar uma banda de jazz", é uma quebra no tom sério da conversa, uma defesa na forma de concessão ao estilo do humor de Bob.

Como pensar a partida de Bob e o desfecho da história? Podemos levantar três hipóteses. A primeira, de que Bob executa um gesto cavalheiresco ao abrir mão de Charlotte, de quem ele diz que "tem futuro". Como ele vê o seu próprio futuro como um beco sem saída, ele receia que, ao se unir a ela, esteja lhe dando um abraço de afogado, sabotando as possibilidades que ela ainda tem pela frente. Tal tipo de desfecho costuma agradar enormemente ao público, vide a popularidade de Casablanca. No caso de Bob, há ressonâncias com o amor cortês e a idealização d’A Mulher, mantida à distância justamente para que possa existir. Já a segunda hipótese é bem mais prosaica, conforme acima: Bob cede no único aspecto em relação ao qual um sujeito nunca deve ceder, segundo Lacan — no seu desejo. Qualquer que seja a sua justificativa para tal ato, como, por exemplo, pensar mais no bem do outro do que no seu próprio bem, ele só vem confirmar a posição de covardia moral do depressivo.

A terceira hipótese, por sua vez, é ao mesmo tempo a mais simples e a mais complexa: Bob e Charlotte não ficam juntos porque eles não são sujeitos, mas personagens de uma obra cinematográfica. Personagens não fazem escolhas, nem seguem o destino; eles devem obedecer ao roteiro. Eles não têm desejo, mas agem conforme o desejo de Sofia Coppola. Somos nós, espectadores, que na suspensão da descrença, os tomamos por pessoas legais e lhes atribuímos afetos, desejos e possibilidade de decidir o seu destino. Esse balde de água fria é necessário para que nos lembremos sempre que quando nós, psicanalistas, falamos de personagens de uma obra cinematográfica ou literária, não estamos falando de sujeitos, mas de modelos criados por um artista. Caso contrário, chegaremos sempre ao impasse de esperar dos personagens decisões humanas.

Para mostrar como essa ilusão não é algo banal, mas afeta de fato as pessoas, eis um dado curioso. Inconformados com o final deixado em aberto pela diretora, onde Bob, sempre tardio a respeito do seu desejo, alcança Charlotte nos últimos instantes antes da sua partida para lhe dar um beijo e sussurrar algo que não escutamos no seu ouvido, alguns fãs resolveram solucionar por sua própria conta esse mistério. Um deles postou no YouTube o que alega ser a fala do ator, utilizando um programa que filtra sons indistintos ou sussurros. O resultado, num inglês gramaticalmente incorreto, é algo como: "Eu tenho que partir, mas não vou deixar que isso se interponha entre nós". Alegria dos fãs, que durou pouco, porque outros parecem ter colado o ouvido nos alto-falantes e alegam que o texto na realidade seria: "Prometa que nunca vai deixar (ininteligível) dizer o que você é, OK?" ou "Prometa que na próxima viagem de negócios vai dizer a ele a verdade, OK?"

Não se sabe a posição de Sofia Coppola acerca desses delírios inofensivos. E nem seria necessário, uma vez que ela já expressou, com humor e delicadeza, sua leitura do desencontro entre os sexos. Este se deve menos à inabilidade ou má-vontade dos parceiros, do que à impossibilidade de inscrição da relação que os ataria. A investidura fálica que o homem recebe desse Oriente feminino não lhe basta para colonizá-lo, pois o gozo que aí habita não pode ser por ela limitado. Desse corpo infinito não lhe é dado conhecer as fronteiras, mas apenas recortar nele o objeto que se designa por uma letra — a minúsculo.

 

Referências

CHEMAMA, Roland. Dépression, la grande névrose contemporaine. Paris: Érès, 2005.         [ Links ]

ESTACOLCHIC, Ricardo e RODRIGUEZ, Sérgio. Pollerudos. Buenos Aires: Ediciones Odisea, 2001.         [ Links ]

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MELMAN, Charles. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre: CMC Editora, 2003.         [ Links ]

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