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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito vol.10  Salvador out. 2009

 

Brincando com as palavras: o reencontro da alegria infantil

 

Playing with words: finding child's joy again

 

 

Maria Clarice Baleeiro*

Círculo Psicanalítico da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Na pretensão de falar do humor, falamos do infantil que se evidencia e se recupera toda vez que algo escapa e nos faz rir. Jogo de palavras, gracejo, chiste — como passos que buscam nos desafogar das mágoas, da dor, do trágico. Surpresas que o inconsciente nos prepara para podermos superar obstáculos, seguir em frente. .

Palavras-chave: Jogo; humor; linguagem; alegria.


ABSTRACT

Intending to deal with humour, we will focus on child’s good mood which can be evident and recovered whenever something comes out and makes us laugh. Play on words, joke, jest — like steps which make us relieve our sorrows, grief and the tragic waste of human life. Surprises created by the unconscious to make us overcome obstacles and go ahead.


Key words: Play; humour; language; joy.


 

 

Do que você está rindo menina?
Não acho a menor graça!
E a criança continua rindo.
Do que ri?
Ri de puro prazer.
E nós, do que rimos?

Rimos do amor, da dor. Rimos da alegria e da tristeza. Rimos do outro, de nós.
Rimos porque alguma coisa escapa e do trágico algo sobra e, porque não damos conta, rimos.

Uma criança de quase três anos, já com a linguagem em bom estágio de desenvolvimento, começa a evidenciar determinados sons das palavras, principalmente os erres - brrrrrrrincar, prrrrrreciso, prrrimeira ...

Percebo o imenso prazer que esta aparente brincadeira lhe dá. Nós, adultos, rimos, nos deliciando com o que parecia ser algo deliberado na busca de nossa atenção.

No entanto, um olhar mais atento nos faz perceber que a criança brinca de fato com as palavras, com seus sons, seus tons, num jogo cujo domínio é só dela e o prazer também. Os outros, são apenas os outros e entram como expectadores que, afetados pelo processo, participam desse estado de prazer.

Freud afirma que a produção humorística causa prazer em quem realiza e naquele que assiste, sendo, no entanto, própria de algumas pessoas. Esse dom humorístico não é de muitos, ele se constitui num "dom raro e precioso". (Freud 1927, p. 169).

O jogo de palavras é um humor dirigido à própria pessoa. É o primeiro passo para a construção do chiste e acontece no período inicial do desenvolvimento da linguagem. Quando a criança balbucia, o faz pelo enorme prazer que encontra nos sons e na sua repetição. Isso lhe traz satisfação e, é esse encontro com o prazer que faz com que ela vá em frente explorando novas maneiras e possibilidades de pronunciar palavras, nomear objetos e pessoas, descobrindo um mundo fantástico que, antes, só existia na sua imaginação.

No jogo, há sentido nessa aparente falta de sentido. Para Freud (1905, p. 117), "As crianças, ainda acostumadas a tratar as palavras como coisas, tendem a esperar que palavras idênticas ou semelhantes tenham, subjacente, o mesmo sentido – fato que é fonte de muitos equívocos dos quais os adultos riem".

Mas o jogo, não se constitui como algo eterno, perene. Num certo momento, ele se encerra, quando a criança se depara com o absurdo dessa brincadeira, usada, por um bom tempo, para buscar o prazer e "escapar da pressão da razão crítica". (Freud, 1905, p. 123). Segundo Freud, a racionalidade e a faculdade crítica, fortalecidas, põem fim a esse jogo. (1905, p.125).

Ao ser iniciado, o jogo com as palavras insere o prazer e faz marca na criança. Diria, inclusive, ser uma marca de humor, uma marca de alegria, que ela vai procurar, sempre, reencontrar, repetindo e buscando se deparar com esse algo já vivido e que lhe traz imensa satisfação.

Não seria essa a marca que daria ao sujeito a possibilidade de possuir certo bom humor como base para a sua vida? Essas não seriam as pessoas predispostas a ter uma atitude humorística no lidar com as suas questões? Não teriam elas, essas pessoas, um recurso a mais para lidar com o sofrimento e a dor?

Faço um convite a essa reflexão, percorrendo o caminho que realizamos na construção da linguagem.
Nascemos predispostos à fala e, inicialmente, não nos preocupamos com o significado das palavras. Aurélio de Souza, na jornada da SEDE Psicanálise (setembro de 2008), afirma que a linguagem é como um vírus, ela nos contamina, nos liga com o objeto, com o desejo e com o nosso corpo. Nosso mundo é de palavras e frases.

A construção da linguagem se inicia quando, antes de nascermos, alguém fala sobre nós. Dessa maneira, nos constituímos como objeto de gozo daqueles que dizem: será homem, será mulher, vai parecer com o pai, com a mãe, será... será... será...

Quando começamos a falar, repetimos o discurso do outro. Primeiro, o discurso da mãe, depois, o do pai. Com o tempo, os diversos discursos se entrelaçam até que, com o não, no momento do corte, passamos a ter um discurso próprio. Isso não se dá de forma linear e sim, como numa dança, num ir e vir dos pares, que rodopiam, param, avançam, começam, recomeçam.

Segundo Freud (1905, ps.122 e 123), ao adquirir o vocabulário da língua materna, a criança encontra prazer. Reúne palavras sem buscar coerência, sentido, almejando apenas a gratificação. Isso é o que forma o jogo, que ela repete, toda vez que tenta reeditar esse prazer. E, é este prazer que faz com que o jogo continue por um bom tempo e seja repetido em muitas outras ocasiões quando nós, já adultos, para vencermos o sofrimento, buscamos nossa marca infantil de humor e alegria.

A construção da linguagem é um momento de satisfação — a criança brinca com as palavras. Freud afirma que "As palavras são um material plástico que se presta a todo tipo de coisas" (1905, p, 41). Por isso, a criança cria, inventa, busca empregá-las de várias formas, une idéias, descobre a satisfação de repetir o semelhante, operar mudanças no já conhecido.

Estamos sempre a exercitar nossa capacidade de fala, repetindo o similar, o familiar. Com o prazer obtido nesse exercício, vamos repetindo e encontrando novas formas, até que a censura e a crítica se façam presentes. O princípio de prazer é abandonado pelo de realidade que não despreza a intenção de obter prazer. O princípio de prazer insiste.

E por isso prosseguimos, a despeito das restrições acerca do uso das palavras, da família, da escola e da sociedade, buscando manipular a linguagem, alterando vocábulos, criando uma maneira própria de nos expressarmos.

Não é isso que faz o adolescente quando subverte regras, cria neologismos e constrói uma linguagem própria, formando sua tribo?

O adulto, também, vai procurar retornar a essa satisfação inicial.

Evidentemente, continuamos repetindo mais ou menos as experiências de nossa infância, por todo e sempre; porém os indivíduos variam inclusive nisso; e não repetimos nossas experiências de infância, por assim dizer, pelo simples prazer de repeti-las. Quando o fazemos, é pela mesma razão por que assim procedemos no primeiro caso, e porque, embora nos tenhamos adiantado em anos, ainda não encontramos melhor maneira de agir. (Klein e Riviere, 1970, ps. 72 e 73)

Aquele prazer inicial, infantil, será sempre buscado e, por muitas maneiras, cada um de nós fará tentativas de reeditá-lo no dia a dia do seu viver.

Como "O homem é um incansável buscador de prazer" (1905, p.123), diz Freud, sem saber de onde tirou esta citação, a busca do bem e do belo não é sem razão – toda busca do ser humano tem um sentido: Busca de alívio, de prazer, tamponar a falta. Procuramos as diversas maneiras de evitarmos o sofrimento e, como a tendência do ser humano é ir ao ato, a civilização nos faz ir para o simbólico – o chiste é um desses recursos para soltar a raiva, o sexual, etc.

O adulto, já quando o jogo parece não lhe caber mais, encontra mecanismos para reeditar o prazer, "O instinto reprimido nunca deixa de esforçar-se em busca da satisfação completa, que consistiria na repetição de uma experiência primária de satisfação". (Freud, 1920, p. 52) Ele, o sujeito, é tomado por uma euforia infantil que permite que a censura seja inibida e surja a possibilidade de, mais uma vez rever o "velho jogo de obtenção de prazer". (Freud, 1905, p. 125)

O prazer cômico, como sabemos, traz o peso do infantil. Como nos diz Jonildes Souza, baseada em Freud: "O que é singular no infantil, vai conservar-se no inconsciente do adulto. O último riso infantil se tornará, para o adulto, a fonte de prazer cômico". (1988, p, 43)

Continuando com Freud

Pois o infantil é a fonte do inconsciente e os processos de pensamento inconscientes são exatamente aqueles produzidos na tenra infância. O pensamento que, com a intenção de construir um chiste, mergulha no inconsciente meramente procurando lá a antiga pátria de seu primitivo jogo com as palavras. O pensamento retroage por um momento ao estágio da infância de modo a entrar na posse, uma vez mais, da fonte infantil de prazer. (1905, p. 160).

O humor não é resignado, mas rebelde. Significa não apenas o triunfo do ego, mas também o do princípio de prazer, que pode aqui afirmar-se contra a crueldade das circunstâncias reais"... "Seu desvio da possibilidade de sofrimento coloca-o entre a extensa série de métodos que a mente humana constrói a fim de fugir à compulsão para sofrer... (1927, ps.166 e 167).

O humor é transgressor, insistente e desafiador e ameaça a ordem e o poder. Ele está em toda parte, em todo lugar, integrado na vida das pessoas e no seu cotidiano. Diante dele, as tensões e a realidade se alteram, as convenções se enfraquecem e a visão de mundo se inunda de outra lógica, diferente da usual. "Resistir e se opor ao humor, como atitude deliberada, seria algo como uma tentativa de "suicídio estético"- não mata, mas provoca o enrijecimento". (Lulkin, 2008, p.21)

O humor cria certa cumplicidade do sujeito com o outro capaz de empreender uma vinculação. Para Freud, ele tem um caráter liberador, emana grandeza e possibilidade de elevação que o cômico e o chiste não possuem. (1927, p.166 e 167). O humor é o veículo para o riso. Esse riso que nos libera, marca a alegria e que, mesmo correndo o risco de afastar as pessoas, tem um caráter socializante. O riso integra.

No seu recém lançado livro, O Diário de Bruno, Carlos Pinto Corrêa implica sua personagem em relação à alegria. Bruno busca a alegria no outro ao pensar em relação à Suzana: "Talvez aquela moça trouxesse a alegria da expectativa de que novas alegrias pudessem surgir em minha vida". (p.171)

Será que um outro poderia dar a Bruno o que ele constata não ter? "Rachel e eu tivemos muitos momentos bons, mas não somos pessoas alegres".(p. 206) E afirma que cada um tem uma razão própria para isso."Mas Lenira tem aquilo que não temos. Seu sorriso, seu olhar astuto e curioso, sua gargalhada, isso é uma alegria interior que transborda, apesar de conviver com esse marido chato". (p. 206).

Num determinado momento, Lenira pergunta:"E você Bruno, não tem dentro de si uma criança feliz?" ao que Bruno responde:"Não acho que tenha sido uma criança feliz..." "E por que sua preocupação agora com a questão da alegria?" retruca Lenira.(p.206).

Bruno prossegue: "Na verdade, nossa preocupação é com a felicidade, sendo a alegria o final da linha na exterioridade"(p. 206)..."Queria ouvi-los sobre a incurável falta de alegria em algumas pessoas"..."Arimatéia prosseguiu comigo lembrando que o amadurecimento intelectual torna as pessoas mais exigentes, mais críticas e, consequentemente, menos disponíveis para o bom humor superficial".(p.224).

E Bruno fala de um encontro entre ele e Suzana: "Ela falou um pouco das traquinagens da infância que mostravam como fora uma criança realmente alegre. Isso me fez pensar na conversa em minha casa onde defendi que as pessoas alegres trazem isto da infância".(p.224).

Pensei, a partir do que li no romance em como seria quando buscamos, já adultos, reeditar esse prazer encontrado um dia. Esse prazer infantil, cheio de alegria e júbilo e me bato com algo vivido, recentemente, que me trouxe enorme satisfação, tão forte que me fez pensar: recuperei minha criança alegre e feliz!.

Mensalmente, participo de um grupo que se reúne, sob a orientação de uma Escritora/Analista, para uma oficina de escrita. Nosso compromisso é ler textos e escrever outros tantos.

Num dos últimos encontros, escrevi um texto carregado de emoção, cuja leitura me embargou a voz e mexeu com o grupo. Estávamos trabalhando com o livro Fennício Riovém de Donaldo Schüler e, portanto, com a criação de palavras.

Mas, ao escrever, não consegui entrar no clima do que havia sido solicitado e meu texto era só emoção, catarse, me trazendo, no entanto, certa leveza após sua leitura. Para mim, após a apresentação do texto, estava acabada a tarefa.

Mas a nossa coordenadora fez um comentário, disse não. Não, seu texto ainda não acabou, continue. É preciso trabalhar com as palavras, inventando outras tantas, novas e construídas por você.

Saí do encontro, angustiada. Como continuar um texto que me parecia acabado? Aquilo não me saía da cabeça e, prontamente, resolvi fazer uma carta para a "Professora", tentando amolecer a fera e, trabalho realizado, enviaria por e-mail.

Mas, alguma coisa aconteceu. De repente, tomei alguns termos do Fennício e lá estava eu brincando com as palavras. Ria muito, gargalhava com aquela brincadeira que, a princípio me parecia tão infantil. E era.

Mas me trazia uma enorme satisfação e um prazer cuja origem, certamente, estava bem lá atrás, nos primórdios de minha vida.

Lembrei-me do poeta Manuel Bandeira, do seu poema Neologismo:

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo.
Teadoro. Teodora.

E continuei, mergulhada num êxtase de alegria, que só as crianças possuem.

 

Referências

FREUD, Sigmund. Os Chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Vol.VIII. Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda.,1987.         [ Links ]

______. O Humor (1927). Vol. XXI. Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda.,1987.         [ Links ]

______. Além do princípio do prazer (1920/22). Vol. XVIII. Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas. Imago Editora Ltda. Rio de Janeiro, 1987.         [ Links ]

SOUZA, Jonildes Mirian de. Agente – Revista de Psicanálise no. 10 - Escola Brasileira de Psicanálise - Bahia. Abril de 1998,         [ Links ]

CORRÊA, Carlos Pinto. O diário de Bruno. Edições Macunaíma. Salvador, 2008.         [ Links ]

KLEIN, Melaine e RIVIERE, Joan. Amor, Ódio e Reparação. Tradução de Maria Helena Senise. Imago Editora. Rio de Janeiro,1970.         [ Links ]

SCHÜLER, Donaldo. Fennício Riovém. Lamparina Editora. Rio de Janeiro, 2004.         [ Links ]

BANDEIRA, Manuel. O Melhor da Poesia Brasileira. José Olympio Editora. 12ª. Edição. 2006        [ Links ]

LULKIN, Sergio Andrés. Revista Presente. Edições Loyola. Ano XVI, No. 60. 2008.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Eduardo José dos Santos No.147, Centro Integrado de Saúde Prof. Fernando Filgueiras, sala 1411, Garibaldi, CEP 41.940-455, Salvador, Bahia. Tel. (71) 91462855

 

 

* Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia. Trabalho apresentado na XX Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia - 2008.

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