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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito vol.10  Salvador out. 2009

 

Humor: nudez e máscara

 

Humor: nudity and mask

 

 

Véra Motta*

 

 


RESUMO

Parte-se da noção esboçada em Freud segundo a qual aquele que produz humor identifica-se, até certo ponto, com o pai, reduzindo o outro ao infantil. Percorrem-se em Lacan as pistas que o levam a propor a raiz da identificação na primeira comunicação verdadeira da criança, o riso. A identificação é aqui tomada como correlata do riso. Em seguida, procede-se a um recorte de duas obras literárias em momentos distintos da história mundial, com Aristófanes e Émile Zola, em que o humor é a via encontrada pelos autores para alcançar, ao fim, a ideia segundo a qual a identificação com o pai produzida no humor tem, como corolário, a suspensão provisória da função paterna.

Palavras-chave: Humor; Identificação; Função paterna.


Abstract

We took as point of departure the Freudian notion of identification to the father to whom produces humor. According to Lacan, the roots of the identification are found in the first true communication of the child — in laughing. We then try to situate two different moments in the literature, especially in Aristofanes and Emile Zola, in which humor is the privileged way.


Key words: Humor; Identification; Paternal function.


 

 

A CENA HUMORÍSTICA EM FREUD: O INFANTIL

Já sabemos com Freud (1905/1969-1980) que o humor, uma das mais altas manifestações psíquicas, desfruta do particular favor dos pensadores, revelando-se ao preço de uma liberação de afeto que não ocorre, ou seja, trata-se de uma economia na despesa de afeto.

Uma grande variedade de espécies de humor pode ser encontrada, de acordo com a natureza da emoção economizada: compaixão, raiva, dor, ternura —, série que é, por natureza, ilimitada, porquanto o território do humor é comumente expandido por uma categoria de indivíduos especiais: o artista ou escritor. "O artista ou o escritor consegue submeter emoções até então inconquistadas ao controle do humor, tornando-as, através de diferentes dispositivos, fontes do prazer humorístico". (FREUD, 1905/1969-1980, v. VIII)

A concepção freudiana do humor afirma-o como processo de defesa que impede a eclosão do desprazer. Ao contrário do recalque, o humor não procura subtrair da consciência o elemento penoso, mas transforma em prazer a energia já acumulada para enfrentar a dor. Freud (1905/1969-1980) situa-o em conexão com o infantil, que lhe coloca à disposição os meios para executá-lo. Apenas na infância existem dolorosos afetos a respeito dos quais o adulto hoje se ri, tal como o humorista ri de seus afetos dolorosos atuais.

O humor surge quando um escritor ou narrador descreve o comportamento de pessoas reais ou imaginárias de modo humorístico. Essas pessoas não precisam demonstrar humor algum; a atitude humorística interessa apenas à pessoa que as está tomando como seu objeto, partilhando o ouvinte da fruição do humor. A atitude humorística é possível de ser dirigida para o próprio eu do indivíduo ou para o outro, fazendo-nos supor que ocasione uma produção de prazer à pessoa que a adota, e uma produção semelhante de prazer no assistente.

O humor tem algo de liberador, mas possui também qualquer coisa de grandeza e elevação, que reside claramente no triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego recusa-se a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para obter prazer.

A pessoa que adota uma atitude humorística com o outro comporta-se como um adulto o faz com uma criança, quando identifica e sorri da trivialidade dos interesses e sofrimentos que parecem tão grandes a esta última.

Assim, o humorista adquiriria sua superioridade por assumir o papel do adulto, identificar-se até certo ponto com o pai, e reduzir as outras pessoas a crianças. Essa conceituação provavelmente abrange os fatos, embora dificilmente pareça ser conclusiva. Perguntamo-nos o que é que faz o humorista arrogar-se esse papel. (FREUD, 1905/1969-1980, v. XXI)

Um homem de humor, como lembra Minois (2003), é capaz de representar um personagem fraco e ridículo na vida real, seja assumindo-se como tal, seja fazendo-o representar-se por outra pessoa. O verdadeiro humor é próprio de um autor que aparenta ser grave e sério, mas pinta os objetos de tal modo que provoca a alegria e o riso.

O humor e o riso, segundo Menezes (1974), relacionam-se com a sexualidade e a obscenidade, e a importância desses fatores decorre do significado de distensão face aos constantes tabus impostos pela sociedade e interiorizados na mente dos indivíduos. O humor é mais transitório do que outras espécies do cômico, e seu efeito é menos intenso ou profundo. Sua importância parece ao autor residir em dois fatores: o elemento de jocosidade ou de irrealidade envolvido parece tornar permissíveis assuntos considerados tabus e geralmente reprimidos em ambientes mais sérios. Um segundo fator relaciona-se com o relaxamento do recalque, que parece representar um papel mais amplo na atitude face a esse tipo de simbolismo, visto que permite reduzir o sentimento de culpa.

Desde Freud (1905/1969-1980) aponta-se no humor a negação da realidade, daí o senso refinado e elevado dessa espécie de cômico. O elemento de nobreza deve-se ao papel desempenhado pelo superego, que pode olhar de cima para as ansiedades normais do ego com certo desprendimento altivo e estóico.

 

O RISO LACANIANO E A IDENTIFICAÇÃO

Não é de todo surpreendente encontrar na obra lacaniana referências ao fenômeno do riso, em que pese ao fato de não ser ele um escritor de humor, propriamente. Nos Seminários dedicados às formações do inconsciente, Lacan (1999) aponta uma grande variedade do fenômeno: desde a simples comunicação do riso ao riso do que não convém rir, passando pelo das crianças, da angústia, da ameaça iminente, até pelo riso nervoso da vítima que se sente ameaçada por algo que ultrapassa os limites de sua expectativa, o riso do desespero. Lacan também inclui na série o riso do luto a respeito do qual se é informado. "O riso, com efeito, toca em tudo o que é imitação, dublê, sósia, máscara, e, se olharmos mais de perto, veremos que não se trata apenas da máscara, mas do desmascaramento [...]"(LACAN, 1999, p. 136).

Numa outra passagem, Lacan (1999) estabelece um paralelo entre o riso e a máscara. De início, assinala que o desejo está ligado a alguma coisa que é sua aparência, sua máscara, o que é representado por um sintoma. A ideia de máscara, afirma o autor, significa que o desejo apresenta-se sob uma forma ambígua, que justamente não nos permite orientar o sujeito em relação a esse ou aquele objeto da situação, fazendo-o interessar-se pela situação enquanto tal. Isso é o que se expressa no sintoma, que Lacan designa como elemento de máscara do sintoma.

Para perseguir a simbolização do objeto como objeto da invocação, da presença, Lacan (1999) percorre os desfiladeiros das origens, indo ao infans, às reações da criança diante da máscara, e fazendo-nos notar que a criança ri da retirada da máscara. Isso o leva a estabelecer o riso como uma das primeiras comunicações verdadeiras entre a criança e o adulto que a materna. O riso é a comunicação com o além daquilo que o outro, como presença simbolizada diante da criança, estabelece. O riso, poderíamos nós atualizar, responde a todas as brincadeiras maternas que introduzem a alíngua na criança. O riso está ligado ao para-além, além do imediato, além de qualquer demanda. Se o desejo está ligado a um significante, o significante da presença, os primeiros risos dirigem-se ao para-além dessa presença.

Desde esse momento, desde a origem, por assim dizer, encontramos aí a raiz da identificação, que se fará sucessivamente, ao longo do desenvolvimento da criança, primeiro com a mãe e, depois, com o pai. Não lhes estou dizendo que isso esgote a questão, mas a identificação é, muito exatamente, o correlato desse riso (LACAN, 1999, p. 343).

Se o riso é comunicação, dirigindo-se ao para-além da presença significada, a identificação, ao contrário, postula-se como uma suspensão do riso, o que nos permite inferir que, do lado do ouvinte, de um espectador da cena humorística, pode-se rir, ao passo que, do lado daquele que a produz, estabelece-se uma seriedade, pela identificação. A identificação é uma operação de transformação, uma máscara do sintoma.

 

UMA CONVOCAÇÃO INUSITADA: A MÁSCARA DA BELEZA

Com Freud, aprendemos que não há territórios inexpugnáveis para o artista ou escritor derivar humor de situações. Um exemplar magnífico dessas produções pode ser localizado na obra de Émile Zola (1840-1902), romancista francês e crítico implacável da corrupção da sociedade da época, mais exatamente num conto publicado, originalmente, em 1891. O conto é narrado em primeira pessoa e tem o sabor de uma crônica de costumes da época, localizando-se sua ação em Paris, quando chegam aos ouvidos do narrador os ecos de um anúncio feito por Durandeau, homem de negócios original e inventivo.

Paris, 1º de maio de 18 –
AGÊNCIA DE FEIOSAS
L. DURANDEAU
18, rue M –, Paris
Expediente:
10h às 16h
MADAME,

Tenho a honra de informá-la de que acabei de fundar uma casa que deverá prestar o maior serviço à manutenção da beleza das mulheres. Sou o inventor de um artigo que irá realçar com uma nova glória os encantos concedidos pela natureza.
Até este dia, os adornos não foram disfarçados. Rendas e jóias são evidentes. Pode-se perceber facilmente um cabelo postiço no coque, e se o vermelho dos lábios e o delicado rosa das bochechas são ou não hábeis pinturas.
Tentei encontrar a solução para esse problema, impossível à primeira vista, de embelezar as mulheres, deixando todo o mundo a imaginar de onde se origina o toque adicional. Sem uma fita a mais, sem tocar a pele, a minha proposta foi encontrar para elas um meio infalível de atrair todos os olhares, sem porém exagerar a delicada graça da natureza.
Acredito poder me gabar de que resolvi totalmente o problema insolúvel que me coloquei.
Hoje, toda senhora que me honre com sua confiança pode garantir, por um preço acessível, a admiração da multidão.
Meu artigo é de uma simplicidade extrema e de um efeito infalível. Basta apenas descrevê-lo, madame, para que compreenda de imediato o mecanismo.
Notou já alguma vez uma mulher pobre ao lado de uma beldade que usa sedas e rendas, que dá a ela uma esmola com a mão enluvada? Observou que a seda brilha em contraste com os farrapos, que a riqueza fica bastante realçada e se beneficia desse contraste com a miséria?
Madame, ofereço aos rostos belos a mais completa linha de rostos feios que se pode encontrar. As roupas gastas valorizam as novas. Os meus rostos feios valorizam os rostos belos.
Basta de dentes postiços; basta de cabelos postiços; basta de colos postiços! Basta de maquiagem, de roupas caras, de gastos enormes com cores e rendas! Digamos sim à simples feiosa que se toma pelo braço e se leva pela avenida, para realçar a sua beleza e conquistar os olhares amorosos dos cavalheiros.
Madame, sua clientela é respeitosamente solicitada. Encontrará aqui os produtos mais feios, e os mais variados. Poderá escolher e adequar a sua beleza ao tipo de feiúra que lhe assente bem.
Preços: 5 francos a hora; 50 francos o dia.
Aceite, madame, os cumprimentos mais respeitosos de
Durandeau.
P.S.: A agência fornece também mães, pais, tios e tias. Preços módicos. (ZOLA, 1891, apud BLOOM, 2003, p. 134-136)

Desnecessário dizer do sucesso da convocação. As freguesas abarrotaram no dia seguinte o escritório, cada qual escolhendo sua feiosa, dentro do variado estoque de mercadorias selecionado, prévia e criteriosamente, pelo empresário. Não se imagine que o funcionamento da agência foi fácil, ao contrário. Por vezes, algumas freguesas reclamavam que nenhuma das feias adequava-se a seu próprio estilo de beleza; em outras ocasiões, elas próprias eram irremediavelmente feias, retirando-se indignadas por lhes terem sido oferecidos objetos semelhantes. Pouco a pouco, cada feiosa obteve sua freguesa habitual de modo que, conclui o narrador com ironia, Durandeau pôde então descansar, com a certeza de ter ajudado a humanidade a dar um novo passo adiante.

 

A CENA ARISTOFÂNICA: UMA INSURREIÇÃO

Lacan (1999) nos convida com Aristófanes a verificarmos que, se o Estado existe, se a pólis existe, é para nos beneficiarmos deles, para que se estabeleça na ágora uma comunhão imaginária, um banquete luxuriante no qual, aliás, ninguém acredita, e que só a comédia permite encontrar.

No teatro grego, a tragédia representou a relação do homem com a fala, na medida em que essa relação o tomava em sua fatalidade conflitante. A cadeia que liga o homem à lei significante não é a mesma no nível da família e no nível da comunidade, assinala Lacan (1999). A comédia, por seu turno, apresenta-se para o autor como o momento em que o sujeito e o homem tentam assumir com a fala uma relação diferente, tirando proveito da comunhão, dela gozando. A comédia representa o fim do banquete comunal a partir do qual a tragédia foi evocada. O que a comédia mostra são pessoas comprometidas, de modo fascinado e obstinado, com um objeto metonímico, tendo como princípio o fato segundo o qual o isso do sujeito cômico, seja ele quem for, saia sempre ileso.

Para Minois (2003), a arte de Aristófanes é feita de improvisos sucessivos, de uma progressão delirante da ação. O autor aponta que a poesia aristofânica, ferozmente absurda, abre uma brecha, uma fenda na ordem, no ritual sagrado e citadino. Considera o dramaturgo um pensador político que provocava reflexão nos meandros do poder e sofria pressões para moderar seu riso, julgado inconveniente. A democracia, sugere Minois, não tolera a derrisão porque não se deve zombar do povo.

Entre os comediantes antigos, Aristófanes ocupa uma posição destacada na análise de Lacan (1999), referido pelo seu conjunto de obra e, mais particularmente, por A revolução das mulheres (ARISTÓFANES, 2002), escrita em 392 a. C., uma sátira às teorias de certos filósofos da época, especialmente os sofistas, que mais tarde se cristalizaram na República de Platão.

Lideradas por Valentina (a Praxágoras do original, ou dominadora da ágora), as mulheres de Atenas decidem tomar conta do poder, cansadas da incapacidade dos homens no governo. Impõem nova constituição, com base na comunidade dos bens, tendo em vista a eliminação da miséria. Inspiradas no princípio da similaridade entre a direção da coisa pública e a da privada, as mulheres passam a governar a cidade com a mesma eficiência com que conduzem a administração dos seus lares. À comunidade de bens, soma-se a comunidade de mulheres, de tal sorte que todas as mulheres deverão, em troca do poder, servir a todos os homens, indistintamente. Recortemos algumas passagens, que evocam muito justamente o mesmo objeto metonímico de que nos fala Lacan (1999) em seu seminário sobre as formações do inconsciente.

VALENTINA – A terra será de todos, bem como o dinheiro e tudo que atualmente pertence a cada um. Com base num fundo comum, constituído por todos os bens, nós, as mulheres, sustentaremos vocês, administrando com economia e pensando em tudo. [...] As mulheres serão comuns a todos os homens; cada um poderá ir com qualquer uma e ter filhos de quem quiser. [...] As feias e mal-acabadas ficarão ao lado das mais bonitas, e quem quiser as bonitonas terá que satisfazer primeiro as feiosas.

BLÊPIRO [cerca de 60 anos, marido de Valentina] – E nós, os velhotes, como nos arranjaremos? Se tivermos de "traçar" primeiro as feias, o nosso... entusiasmo murchará, e como é que vamos dar conta das bonitas? [...]

VALENTINA – O... entusiasmo que já está murcho não tem o que murchar, meu velho. Esse problema você não terá.

BLÊPIRO – Para vocês, mulheres, o plano está muito engenhoso; você já arranjou as coisas de tal maneira que nenhuma mulher ficará sem o dela. Mas quanto aos homens, como é que vai ser? As gostosonas fugirão dos feios para se entregar aos bonitões.

VALENTINA – Não senhor! Isso aconteceria no regime antigo, quando só se pensava em um lado dos problemas. Agora, o mecanismo vai ser o mesmo! Os feios tomarão conta dos bonitões e as mulheres não poderão ir com os altos, morenos e simpáticos antes de ter resolvido o problema dos baixinhos e mal-acabados. (ARISTÓFANES, 2002, p. 110-112).

Como podemos notar, a comédia aristofânica propicia ao espectador verificar os modos de apropriação de um escritor criativo para expandir o território do humor, ao preço de uma economia na despesa de afeto. Rimo-nos da cena humorística, partilhando do mesmo prazer que o dramaturgo, ao acompanharmos o desenrolar da história, cujo desenlace dá-se por uma operação aritmética. Após uma longa diatribe entre três velhas de sessenta anos, em disputa por um jovem de vinte anos interessado por uma moça de semelhante idade, Valentina, aquela que domina a ágora, intervém no conflito, dizendo:

Então, esse cidadão não vai nem com a moça nem com as senhoras. A moça tem vinte anos, as senhoras devem ter uma média de sessenta, vinte mais sessenta igual a oitenta, oitenta divididos por dois igual a quarenta (a mamãe aqui tem mais ou menos quarenta...)[...]Venha comigo! Resolvi o seu caso, agora você vai resolver o meu! [...] Afinal de contas, eu não ia fazer essa revolução para aprontar a cama para outras deitarem! (ARISTÓFANES, 2002, p.147).

 

A MÁSCARA E SUA QUEDA: DOIS PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO

Os fenômenos cômico-humorísticos são processos sociais e caracteristicamente humanos. São processos de comunicação, em sua essência, aponta Moraes (1974). Lembremos Lacan (1999), ao afirmar que o riso comunica. Moraes pergunta-se onde está a máscara no sujeito que tropeça e cai, ao que ele mesmo responde: no andar do sujeito. Retoma Bergson (Le Rire), segundo o qual risível é toda imagem que sugira a ideia de uma sociedade que se disfarça e, por assim dizer, de uma máscara social, estendendo o princípio ao nível individual.

Minois (2003), por sua vez, aponta que o riso foi uma reação instintiva de autodefesa do corpo social diante das ameaças potenciais da cultura, tendo por objetivo amenizá-las, aliviando a tensão por uma espécie de psicanálise social e expondo clinicamente todas as proibições que ameaçam fazer saltar o verniz da civilização.

Autorizamo-nos a estabelecer, a partir das referências aqui destacadas, dois princípios no funcionamento da criação humorística, notadamente na literatura e na dramaturgia, mas também no corpo social: de um lado, o rosto que revela sua nudez e que provoca no outro o riso, ao transpor a interdição, desmascarando-se, o que põe o outro no circuito do desejo. Do outro lado, o seu correlato, o elemento máscara do sintoma, da identificação com o pai, o rosto impassível, que mantém o outro no circuito da demanda. Sob um ângulo, suspende-se o recalque e, por outro, o reafirma-se.

Trata-se, para o homem contemporâneo, de fazer suspensão, provisória, daquilo que Freud chamou de pai, e que Gerbase (2007), em sua atualização de conceitos, mais que propriamente agente interditor, aponta como função paterna e também como função de enodamento, de laço do nó do real, do simbólico e do imaginário. O termo pai pode ainda ser traduzido como sintoma, o que, de acordo com Gerbase, permite resgatar a dimensão positiva do sintoma, questionando a normalização suposta à psicanálise. A interdição, segundo o autor, é operada pela linguagem, pelo fato de não se poder dizer toda a verdade, e que Freud denominou de recalque.

 

Referências

ARISTÓFANES. A revolução das mulheres. In: A greve do sexo (Lisístrata), A revolução das mulheres. Tradução Mário da Gama Kury. 5ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.         [ Links ]

FREUD, Sigmund (1905). Os chistes e as espécies do cômico. In: _____. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Edição eletrônica brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969-1980, v. VIII. 1 CD-ROM        [ Links ]

FREUD, Sigmund (1927). O humor. In: _____. O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos. Edição eletrônica brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969-1980, v. VIII. 1 CD-ROM        [ Links ]

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MINOIS, George. História do riso e do escárnio. Tradução Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003.         [ Links ]

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ZOLA, Émile. As feiosas. In: BLOOM, Harold. (Seleção). Contos e poemas para crianças extremamente inteligentes de todas as idades; primavera. Volume 1. Tradução de José Antonio Arantes. Rio deJaneiro: Objetiva, 2003, p. 127-140.         [ Links ]

 

 

* Graduada em Letras e Psicologia, Mestre em Linguística e Doutora em Artes Cênicas (UFBA). Professora adjunta da Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Psicanalista. Membro do Campo Psicanalítico de Salvador.

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