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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.11  Salvador Oct. 2010

 

Psicanálise como um modo de saber e poder

 

Psychoanalysis as a mode of knowledge and power

 

 

Kelber Silvio Rios Carneiro*

 

 


RESUMO

Este artigo pretende demonstrar que a psicanálise, como prática social, cria domínios de saber, produz novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, bem como faz surgir outro tipo de sujeito, o sujeito do inconsciente. Assim, seu discurso, como um modo de saber, surge ligado aos fenômenos de poder e relações de poder que emergem do inconsciente, através do desejo.

Palavras-chave: Saber; poder; inconsciente; sujeito do inconsciente; desejo.


ABSTRACT

This article argues that psychoanalysis, as a social practice, creates areas of knowledge, produces new objects, new concepts, new techniques, and gives rise to another type of subject, the subject of the unconscious. So his discourse as a way of knowing appears linked to the phenomena of power and power relations that emerge from the unconscious through desire.


Key words: Knowlege; power; unconscient; subjet of unconscient; desire.


 

 

Introdução


“Saber é poder”.
Francis Bacon

O sujeito cartesiano é paradigma fundante do sujeito moderno, na medida em que, para qualquer intervenção em torno de temas que envolvam a subjetividade, o sujeito, faz-se imprescindível o retorno a esse ponto arquimediano. Qualquer abordagem em torno da psicanálise vai requerer, de pronto, a presença cartesiana e de seu sujeito, mesmo que este retorno tenha, intencionalmente, o desejo de modificá-lo, visando com isto produzir profundas alterações em seu estatuto de sujeito lógico do conhecimento.

Coube a Freud, no início do século XX, a invenção do Inconsciente. No entanto, a formalização do sujeito do inconsciente é criação de Lacan. Sabe-se que o inconsciente freudiano só foi possível pela existência do sujeito da ciência, que remonta ao ato de Descartes nomeando o cogito.

Em assim sendo, a teoria do sujeito, a sua concepção filosoficamente tradicional, bem como a relação sujeito/objeto e o conceito de saber sofreram uma reelaboração. Neste processo, a teoria do conhecimento, seu sujeito, seu objeto e seu saber filosóficos foram radicalmente reinventados pela teoria e prática psicanalítica. Esta teoria foi a que mais ressaltou, de modo fundamental, a prioridade do sujeito no pensamento ocidental, a partir de Descartes (FOUCAULT, 2005, p. 9-10)

Com o ato de invenção do inconsciente e do sujeito do inconsciente, a psicanálise produziu uma torção epistemológica no saber, fundando com isto o saber do inconsciente e, com este, a presença determinante do desejo e não mais o da razão, no comando epistemológico do poder. Assim, o poder torna-se o objeto de desejo do Outro.

 

Desenvolvimento

Seguindo essa linha de investigação, num roteiro que considera como ponto de partida a reelaboração da teoria do sujeito do conhecimento, a partir da teoria e prática da psicanálise, tendo como ponto de emergência o desejo e seu objeto, o poder, cabe agora buscar apoio numa referência que valide a tese de que o saber é inventado. Nietzsche em um texto póstumo, afirma que:

Em algum ponto deste universo, cujo clarão se estende a inúmeros sistemas solares, houve uma vez, um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante da maior mentira e da suprema arrogância da história universal (NIETZSCHE apud FOUCAULT, 2005, p. 13).


A invenção1 surge tanto como um conceito de ruptura como um conceito de desvalor, significando ao mesmo tempo mesquinho e inconfessável. Mas tudo isto para se opor a noção de origem e de história como origem dos acontecimentos, pois também a história é uma invenção, com tudo que ela descreve e narra. Pode-se dizer que a noção de invenção é o ponto crucial, onde obscuras relações de poder entram em jogo para construir, fabricar, produzir um determinado tipo de saber (FOUCAULT, 2005, p. 15).

Assim sendo, todo tipo de saber é construído, fabricado, produzido por obscuras relações de poder que entram em conjunção, ou em jogo. Não obstante, o começo não passa de uma vilania (Ibid., p. 16).

O conhecimento foi inventado, logo não teve origem. Ou seja, no comportamento humano, no instinto, no apetite, não há germe do conhecimento. Assim, o conhecimento é produto do jogo entre os instintos. O conhecimento resulta do jogo, do enfrentamento, da junção, da luta e do compromisso entre os instintos (Ibid., p. 16). É dizer de modo incontornável que conhecimento não faz parte da natureza humana, não constitui instinto do homem.

Entretanto, o conhecimento não é da mesma natureza que os instintos; ele não resulta do refinamento dos próprios instintos. Mas o conhecimento tem por fundamento a luta dos instintos entre si, fazendo surgir um clarão, uma luz que se irradia, após o atrito entre materiais de natureza totalmente diversa (Ibid., p. 16).

O conhecimento atua doravante, entre, no meio, diante dos instintos; os comprime, gera certo estado de tensão ou de apaziguamento entre os instintos. Logo, não é possível aplicar a dedução, a analiticidade, para inferir uma espécie de derivação natural do conhecimento (Ibid., p. 17).

O conhecimento não instintivo, mas contra-instintivo, como também não é natural, mas contranatural, porque resulta do desejo. Eis porque o conhecimento é invenção. Portanto, “as condições de experiência e as condições do objeto de experiência são totalmente heterogêneas” (Ibid., p. 17).

Pelo exposto, não há identidade entre conhecimento e mundo a conhecer, mas pura diferença entre conhecimento e natureza humana. Portanto, têm-se doravante uma natureza humana, um mundo e algo entre os dois que se chama conhecimento. Nenhuma semelhança, nenhuma afinidade ou elos de natureza. Enfim, nenhuma identidade entre os termos em jogo (Ibid., p. 18).

O mundo ignora os homens e as suas leis. Não há leis na natureza. O conhecimento tem, exatamente, que lutar “contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem formas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei” (Ibid., p.18).

Desse modo, tem-se, entre instinto e conhecimento, uma relação de luta, de dominação, de subserviência, de compensação, não uma continuidade natural. Não há relação de continuidade natural entre o conhecimento e as coisas que tem a conhecer. Há sim, uma relação de violência, de dominação, de poder e de força, de violação. É possível, então, dizer que entre o conhecimento e as coisas a serem conhecidas ocorre uma violação e não uma percepção, um reconhecimento, uma identidade (Ibid., p. 18).

Como resultado dessa operação, ocorre dupla ruptura: a primeira é a ruptura entre o conhecimento e as coisas; já não há mais identidade, continuidade entre conhecimento e as coisas a serem conhecidas, mas uma relação arbitrária, de poder e de violência entre termos estranhos entre si (Ibid., p. 19).

A segunda ruptura ocorre entre a teoria do conhecimento e a teologia. Deus não mais é o garante do conhecimento evidente, certo e indubitável (Ibid., p. 19). Com isso, cai por terra a unidade do sujeito do conhecimento que assegurava a continuidade do desejo ao conhecer, do instinto ao saber, do corpo à verdade (Ibid., p. 19-20).

Há, agora, os mecanismos do instinto, os jogos do desejo, os afrontamentos da mecânica do corpo e do desejo, de um lado; do outro, um nível de natureza diferente, o que faz que o conhecimento não dependa mais de unidade do sujeito do conhecimento (Ibid., p. 20). Esse rompimento atinge a tradição filosófica mais antiga do Ocidente.

Tomado esses lineamentos de Nietzsche, Foucault promove o fecho: as relações de força, as relações sociais, as formas políticas não são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento, e, consequentemente, para as relações de verdade. Mas, pelo contrário, é a partir de condições políticas que formam o solo em que se produz o sujeito, os domínios de saber e as relações com a verdade.

Foucault mostra como a tragédia de Édipo, em Sófocles, enquanto problema de fundo político é instaurador de certo tipo de relação entre poder e saber, entre poder político e conhecimento que ainda impera na sociedade. Pode-se falar de certo complexo de Édipo na civilização.

Portanto, trata-se do inconsciente coletivo (Ibid., p. 31) e não individual.

Édipo posto pela psicanálise, diz Foucault, não passa, na visão de Deleuze e Guattari, de um instrumento de limitação e coação, visando conter o desejo e fazê-lo entrar em uma estrutura familiar definida pela sociedade em determinado momento. Não é, portanto, uma verdade atemporal, nem histórica do desejo. Enfim, não é o conteúdo secreto do inconsciente, mas a forma de coação que os analistas tentam impor na cura ao desejo e ao inconsciente. Édipo é um instrumento de poder, ou seja, de poder médico e psicanalítico de se exercer sobre o desejo e o inconsciente (Ibid., p. 29-30).

Com efeito, aquilo que está em jogo, nesse contexto fundamental, é o estatuto do Édipo e a lei simbólica, que retoma no campo do poder, uma tensão entre as novas modalidades de poder e o saber psicanalítico. De que modo situar a posição do Édipo, seja no complexo, seja na estrutura, como correlativa da lei simbólica? Na relação de fundamento do sujeito no sexual, a saber, a via que se abre para situar o Édipo, na psicanálise, é a do sujeito do inconsciente que se modela segundo a regulação do desejo pela lei simbólica.

Desse modo, estão em jogo as relações entre a lei, o desejo e um sujeito do inconsciente. Essa verdade se constata na interpretação psicanalítica formulada em Totem e Tabu para com o grupo primário do Pai da horda; instala-o aí como figura fundadora e representante da Lei simbólica, assim como frente a Édipo Rei visando à interdição do incesto. Somente assim é possível, no primeiro caso, inventar uma irmandade e, no segundo, pôr a figura de Édipo permanentemente na posição de se transformar em Pai e Mãe, fazendo que se coincida com o Genitor arcaico, cruel, narcísico: Édipo antes do complexo de Édipo (KAËS, 1997, p. 22).

Desse modo, Édipo tomará conhecimento de seu próprio desejo, sabendo-se doravante como sujeito ambíguo (Ibid., p. 22). Este sujeito ambíguo é o sujeito do inconsciente de um saber/desejo carregando consigo o poder como seu objeto. Freud faz isso emergir da descrição da mutação do regime psíquico e cultural da horda, passando por Édipo. Este material serve de hipótese para o desenvolvimento da teoria e da prática psicanalítica.

Assim, os registros da pulsão e da cultura são intercambiáveis, bem como a idéia segundo a qual o inconsciente, conseqüência da repressão da pulsão pela ordem da lei, é sexual. Enfim, o Édipo deseja definitivamente encarnar o suporte da verdade para o sujeito.

Isso levou Freud a fazer uma crítica à moral sexual cultural e ao mal-estar da cultura, por considerá-las responsáveis pelas dificuldades geradas pela modernidade nas subjetividades como conseqüência da renúncia sexual imposta. Ou seja, a modernidade se constituiu sobre a base da repressão das pulsões sexuais, produzindo, assim, um crescente mal-estar nos sujeitos, que inevitavelmente derivou para a neurose.

Essa problemática tem como pano de fundo o controle social e cultural exercido pela sociedade sobre a sexualidade de seus membros, visando com isto a melhor canalização de suas forças para o trabalho, tendo em vista a produção e o lucro.

Ora, vale ressaltar que a psicanálise, enquanto instituição de práticas sociais, de vínculos intersubjetivos, não ficou infensa a esta problemática: a rivalidade, a dominação, como meios para evitar a questão sexual, enfrentar o narcisismo.

A psicanálise nasceu sob o signo do narcisismo. Em razão disto, eclodem os conflitos, as crises, as dissidências, as agressões, as rupturas, do duplo narcísico homossexual, com Fliess, depois Stekel e os demais que foram chegando. Assim, desde o início, Freud experimentou na formação do grupo “as tumultuosas descobertas do Inconsciente, seja nas suas aparições na solidão e nas vicissitudes do vínculo intersubjetivo” (Ibid., p. 26).

Isso fica patente, quando da criação do Comitê, visando constituir o grupo como guarda dos Ideais e da ortodoxia, bem como garantir sua função ideológica (Ibid., p. 27) de saber/poder.
Após a morte de Freud, a IPA dá mostra de padecer da neurose narcísica, em razão do que Lacan rompe com ela seus laços sociais, sobrevindo a excomunhão. Mas, logo depois, é a vez de Lacan dissolver o que fundara, a École Freudiannne, uma vez que “o grupo psicanalítico pôde mais que o discurso e tornou-se Igreja, como aconteceu a Freud” (ALVES, 1999, p. 200).

Sabe-se que esta problemática perdura até hoje, na medida em que “os psicanalistas, como pessoas, também estão sujeitos às mesmas paixões, conflitos, vaidades e fraquezas que povoam os agrupamentos humanos” (RODRIGUES, 1999, p. 31). Daí os conflitos, crises, rupturas, dissidências, agressões que ocorrem dentro e entre as diversas instituições e os grupos de psicanalistas.

Estaria, nesses casos, a instituição psicanalítica e seus elementos, vivendo ao mesmo tempo, uns do fascínio do saber/poder, enquanto outros, da servidão? Isto tudo derivaria do governo de um só? Estariam todos, fascinados e subservientes capturados no desejo do desejo do Outro? Estariam todos fazendo a pergunta ao Outro: Che vuoi? Que queres de mim? (FÉRES, 1999, p. 123).

Então, estariam todos esses sujeitos submissos ao Outro dizendo viva o Outro, para que dessa existência possam eles surgir, ouvindo o som melodioso do tu és inteligente, poderoso. Com isto, cultuando o saber/poder, todos estariam capturados no gozo do Outro (Ibid., p. 123).

Como qualquer instituição, a psicanálise vive sob um governo. A questão é saber que governo dirige os grupos psicanalíticos. Seria o governo de um só? Caso seja, faz-se imperioso recordar, elaborar para não repetir quanto à fantasia do um, isto é, qualquer grupo crê em um Deus único, pois se encontra na origem de todas as instituições, inclusive, nas terapêuticas. Aí ocorre a relação dual, onde cada um tenta exercer a fascinação sobre o outro, fazendo-o ser o que possibilita o gozo do fascinador (SOUKI, 1999, p. 49-50).

Em razão disso, a psicanálise, como instituição, detentora de práticas sociais de ensino, formação e tratamento analítico, é também detentora desse fascínio do saber/poder epistemológico. Isto permite que se extraia dos indivíduos, a partir de um saber, saber de observação, um saber clínico, psicanalítico (FOUCAULT, 2005, p. 121-122).

Desse modo, a psicanálise é portadora de um discurso sobre o inconsciente, o sujeito do inconsciente, o desejo, a sexualidade, a neurose, o tratamento desta, como dispositivo terapêutico. Enfim, a psicanálise como campo de saber/poder tem um discurso acerca do erotismo, do sexual.

Não há engano quanto à realidade posta pela sociedade no tocante a produção do discurso (Ibid., p. 8-9): controle, seleção, organização e redistribuição a partir de certos procedimentos a fim de conjurar seus poderes e perigos a cerca do saber por ele transmitido.

Pode-se dizer que todo discurso carrega poder através do saber que expressa. Isto faz com que o discurso se apresente para o seu portador com certa inquietação no tocante a sua realidade de coisa pronunciada ou escrita, poderes e perigos, dominações, servidões (Ibid., p. 8).

A exclusão como exercício de poder faz-se presente através da interdição, negando o direito natural da livre expressão de idéias: não pode dizer tudo em qualquer circunstância. Sabe-se que a sociedade exerce o domínio sóciopolítico mediante o artifício do “tabu do objeto, ritual da circunstância e o direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala”. Assim, se estabelece “o jogo de três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam formando uma complexa grade” (Ibid., p. 9).

Qualquer modo de controle e delimitação do discurso se exerce de fora como verdadeiro sistema de exclusão, toda vez que está em jogo o poder e o desejo.

Há uma relação de pertença entre discurso e poder, haja vista ser o discurso o meio pelo qual o desejo opera mediante investimento sobre seu objeto, o poder. Com isto surge a necessidade de se buscar, por trás do próprio discurso, algo que seria o desejo e seu objeto, o poder. Para tanto, busca-se deduzir do discurso algo que concerne ao sujeito falante: o inconsciente e o desejo do grande Outro.

Vale ressaltar que em assuntos que formam o calcanhar de Aquiles da dominação, como sexualidade e política, onde temíveis poderes latejam, o desejo é caçado e consequentemente o poder.

A psicanálise mostra que o discurso não é só o manifesto, mas também o oculto, ou seja, o desejo, bem como aquilo que é o seu objeto do desejo, o poder (Ibid., p. 10).

Sabe-se que o saber acerca do inconsciente, desvelando os sintomas e com eles as neuroses, semelhantemente, ao saber médico acerca da doença e do psiquiatra acerca da loucura, através da cesura que a escuta exerce, produz um discurso que é investido pelo desejo e que carrega terríveis poderes (Ibid., p. 12-13).

Aqui não se pode recuar frente ao desejo de saber e de poder, que o inconsciente, como artefato cultural e cientifico, hipótese fundante da psicanálise, veicula um discurso dominante acerca do sujeito do inconsciente: “o jogo de uma identidade que teria a forma da repetição e do mesmo” (Ibid., p.29).

O discurso psicanalítico é discurso do sujeito falante, reclamando análise acerca dos diferentes modos pelos quais o discurso desempenha um papel no interior de um sistema estratégico em que o desejo e o poder estão implicados e, para o qual, o poder funciona como objeto de desejo.

Não se pode desconhecer que o discurso da psicanálise reporta-se ao discurso da histérica. A histeria caracteriza-se pelo fenômeno de esquecimento, de desconhecimento pelo sujeito de si mesmo: ignorar um fragmento do seu passado ou uma parte do seu corpo. Esse desconhecimento não é total pelo sujeito de si mesmo, mas sim um desconhecimento de seu desejo, ou de sua sexualidade.

Eis aí o ponto de ancoragem da psicanálise, ou seja, o desconhecimento do seu desejo pelo sujeito. Aqui emerge inventivamente, saber e poder, a partir da hipótese do inconsciente como produto do desejo de Freud.

A psicanálise, enquanto disciplina, se define por um domínio de objetos, um método, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições. Assim, funciona como um princípio de controle da produção do discurso. Assim, fixa os limites do discurso pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente.

A psicanálise, então, se apresenta como fundamento racional de um saber sobre o desejo e seu objeto de desejo, o poder, fazendo parte dessa grande economia da produção de um saber crítico a respeito da sexualidade.

É factível de verificação a existência de um novo tipo de saber, da presença dos mecanismos de poder, inventado a partir da investigação empreendida pela psicanálise no inconsciente do sujeito e na economia de seu desejo, tendo como ponto de partida as relações parentais, ou seja, a relação entre o pai e o filho, a interdição da masturbação, a interdição na relação mãe-filho assim como nas relações pai-mãe e na distribuição dos papéis que se inscrevem no inconsciente da criança.

Esse saber/poder psicanalítico é exercido através do mecanismo de transmissão de ensino e formação de analistas, bem como de tratamento da neurose pela análise. Mas este saber/poder requer atores sociais para pô-lo em execução: os analistas.

Em razão disso, o analista não deve se descurar da ética do desejo que marca a psicanálise enquanto instituição de saber/poder, bem como ele, o analista em seu exercício, como proteção dos analisandos submetidos ao tratamento psicanalítico, justamente, evitando eventuais abusos que venham incorrer, graças à sua posição privilegiada em função do amor de transferência.

A relação entre analista e analisando é uma relação de saber/poder que desliza no fio da navalha da transferência. Não é por outra razão que o saber deve ser encarado como suposto saber, não diferentemente também dever ser encarado o poder, como um suposto poder.

Se assim o for, de fato, levado em conta, os percalços e perigos que emergem no percurso da análise, saberá o analista se fazer de morto para com a negatividade que emana do poder e do saber frente ao analisando que vive o drama de amor e ódio remanescentes da política saber/poder exercida pelos pais junto à prole e, consequentemente, entre ele e seus irmãos na sociedade familiar.

Ora, onde mora o perigo? No desejo e em seu objeto, o poder. O perigo ronda para os narcísicos que desconhecem que tanto o desejo quanto o seu objeto, o poder, são inconscientes.

O problema do poder e seu exercício passam primeiro pelo saber. Advertência nunca é presença indesejável: analista nenhum detém a priori saber e menos ainda o poder sobre o inconsciente de seu analisando. Caso acredite nisto, seu fim está mais próximo do que possa imaginar. Cometerá erros grosseiros que em pouco tempo o denunciarão, fazendo com que o analisando tome a iniciativa, por este ou aquele motivo, até mesmo fortuitamente, de interromper a análise.

Daí porque Lacan recomendava que o analista funcionasse como objeto causa de desejo, objeto a, e não objeto de amor para o analisando.

 

Considerações Finais

A psicanálise produziu uma torção na teoria do sujeito cartesiano, inventando, assim, um novo saber/poder, a partir de um ato transgressor inventivo de um inconsciente, de um sujeito inconsciente e portador de desejo.

De acordo com a trajetória produzida neste artigo mostrou-se que a psicanálise, enquanto prática social de saber/poder, como os demais saberes inventados no século XIX, resultou de um processo de dominação de um campo de conhecimento do inconsciente, visando exercer controle social, a partir de sua teoria e método analíticos.

A torção provocada pela teoria e prática psicanalítica no saber/poder vigente tornou-se uma transgressão à ordem e segurança político-social e jurídica na sociedade até os dias que passam, pois, seus efeitos vincaram o modo de ver e sentir o mundo, de se estabelecer relações pessoais e interpessoais.

Com a presença do inconsciente e do sujeito desejante, deflagrou-se outro modo de pensar e sentir, portanto, outro padrão de conduta social.

Nesse contexto, a discursividade é determinante para a dinamização dos jogos de poder, na medida em que se funda num saber que garante aquela. Isto porque o exercício do poder implica no saber e vice-versa, ou seja, o saber funda as possibilidades de poder. Portanto, a psicanálise legitima, pois, as práticas de poder. Enfim, o saber como discursividade e como jogos de fala se articulam com as estratégias de poder.

A intenção dessa investigação foi trazer à discussão a questão do saber/poder, pouco discutido e quase nunca estudado na instituição psicanalítica, visando abrir um canal de interlocução que possibilite melhor compreensão acerca dos efeitos que dele emergem.

A pretensão não foi esgotar o assunto, mas abrir uma via para que outros, que venham a se interessar pela temática, dêem continuidade com mais proficiência às futuras investigações acerca do saber/poder na psicanálise.

 

 

Referências

ALVES, Stélio Lage. Um fascínio descola. In: FURTADO, Ângela Porto; RODRIGUES, Gilda Vaz; CHAGAS, Nara França; ALVES, Stélio Lage; GONTIJO, Thais Dias. (orgs). Fascínio e servidão. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.         [ Links ]

FÉRES, Nilza Rocha. Fascínio e servidão – uma viagem institucional pela memória. In: FURTADO, Ângela Porto; RODRIGUES, Gilda Vaz; CHAGAS, Nara França; ALVES, Stélio Lage; GONTIJO, Thais Dias. (orgs). Fascínio e servidão. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.         [ Links ]

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU editora, 2005.         [ Links ]

______. A ordem do discurso. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. 14ª ed. São Paulo: Loyola, 2006.         [ Links ]

KAËS, René. O grupo e o sujeito do grupo – Elementos para uma teoria psicanalítica do grupo. Tradução José de Souza e Mello Werneck. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.         [ Links ]

RODRIGUES, Gilda Vaz. Fascínio e servidão. In: FURTADO, Ângela Porto; RODRIGUES, Gilda Vaz; CHAGAS, Nara França; ALVES, Stélio Lage; GONTIJO, Thais Dias. (orgs). Fascínio e servidão. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

SOUKI, Nádia. A servidão na estrutura dos grupos. In: FURTADO, Ângela Porto; RODRIGUES, Gilda Vaz; CHAGAS, Nara França; ALVES, Stélio Lage; GONTIJO, Thais Dias. (orgs). Fascínio e servidão. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.         [ Links ]

 

 

* Mestre em Filosofia pela Ufba.
1 O termo invenção aqui está empregado por Nietzsche em oposição à palavra origem.

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