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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito vol.11  Salvador out. 2010

 

De que falo, se é que (é) falo: o significante do poder nas instituições de formação psicanalítica

 

Phallus: the signifier of power in psychoanalytic training institutions

 

 

Rui Maia Diamantino*

 


RESUMO

O falo se presta à metonímia, deslizando em sentidos que endereçam à questão do (não) poder. A instituição psicanalítica como locus de formação não tem escapado da equação do poder: nela a condição gozante desliza nas suas muitas camadas de inter-relações, a partir da sustentação do falo imaginário (signo do poder) que propicia o saber (sempre suposto) e a legitimação do lugar de analista (sempre precária). Questiona-se aqui o contexto institucional, onde o discurso da histérica e o discurso do analista caminham juntos na formação. Entre esses discursos, o discurso do mestre faz-se legitimador de poderes?

Palavras-chave: poder fálico; formação do analista; instituição psicanalítica; legitimação do analista.


ABSTRACT

The phallus is essentially metonymic. Its significance leads to the question of (lack of) power. The psychoanalytic institution as a locus of training has not escaped from the power equation: the enjoyment glides in its many layers of inter-relationships, sustaining the imaginary phallus (sign of power) that provides knowledge (always supposed to) and the legitimation of the status of psychoanalyst (always precarious). It discusses here the institutional context in which the histeric's and the analyst's discourses go together in the training. Between these discourses, the master's discourse becames legitimating powers?


Key words: phallic power; psychoanalyst training; psychoanalytic institution; legitimation of psychoanalyst.


 

 

O falo se presta a múltiplas metonímias quando na condição de significante: a priori ele é presença e ausência, tal como se pode conceber em tempo da formulação freudiana, ao abordar o objeto privilegiado no homem e anelado pela mulher que busca o homem para tamponar o penisneid. Daí ele desliza na cadeia gerando sentidos que referem à posição do sujeito quanto ao seu desejo e ao desejo do Outro, lembrando o ensino de Lacan nos ”Escritos” quando afirma “Que o falo seja um significante impõe que seja no lugar do Outro que o sujeito tem acesso a ele. Mas, como esse significante só se encontra aí velado e como razão do desejo do Outro, é esse desejo do Outro como tal que se impõe ao sujeito reconhecer [...]” (LACAN, 1998a, p. 700). É na dialética entre esses desejos que se imbricam, que a alienação entra em jogo.

Ora, a alienação é fundamento do poder. Lacan destaca na dialética hegeliana senhor-escravo que a alienação se dá entre ambos, muito embora se possa conceber uma alienação inicial do escravo ao desejo-poder do senhor quando este se apodera do corpo do escravo. Entretanto, permanece a condição de sujeito que subverte a equação do poder, justamente pelo gozo do senhor da servidão do escravo, de quem se torna dependente para fruir o gozo do Outro.

Afinal, de que lado está o poder? De quem supostamente se apodera do corpo do outro (como a) ou de quem se faz imprescindível enquanto gozo do Outro?

A instituição psicanalítica como locus de formação, onde se instauram muitos supostos, não tem escapado da equação do poder: nela a condição gozante desliza nas suas muitas camadas de inter-relações, a partir da sustentação do falo imaginário (significado do poder) que propicia o saber (sempre suposto) e a legitimação do lugar de analista (sempre precária). O saber se refere à transmissão e à legitimação do sujeito no laço coletivo do ofício, constituindo pares e atenuando a angústia de um fazer eminentemente solitário.

No registro argumentativo aqui desenvolvido se insere ainda a proposição lacaniana quanto ao fato de, sendo o ser humano marcado na sua relação com o significante pela incompletude, “[...] o falo é o significante privilegiado dessa marca, onde o logos se conjuga com o advento do desejo [...]” (LACAN, 1998a, p. 698). Tem-se, então, a função do saber, enquanto logos que se enuncia por quem ensina, ou seja, o Outro que transmite e legitima o lugar de analista, articulado ao desejo de um sujeito que anela por ocupar tal lugar. Evidencia-se, portanto, uma relação de poder que perpassa a formação do analista no contexto institucional, onde o discurso da histérica e o discurso do mestre caminham juntos na formação, “atropelando” o discurso do analista1 , sabendo-se que o discurso do mestre é o avesso do discurso da Psicanálise, conforme ensina Lacan no seminário “O avesso da Psicanálise” (LACAN, 1992).

Assim, uma primeira questão pode ser formulada cotejando o sujeito e o poder na perspectiva freudiana: como articular o que é marcado pela falta e pela correlata angústia de castração, com um significante que remete à completude e à cópula (quando se derrape levemente na primeira consoante)?

Birman (1994) remete a um paradoxo que se estabelece entre o sujeito e o Outro: muito embora o sujeito do inconsciente se constitua a partir do Outro enquanto lugar da inscrição na ordem simbólica, a tensão que se estabelece entre a linguagem e as pulsões empuxa o sujeito a um confronto com as fontes do poder dimanadas da “associação humana” (BIRMAN, 1994, p. 113), estabelecendo a diferença do sujeito ou, a sua singularidade.

O ponto de vista acima introduz uma noção de política no sentido de que entre o sujeito e o corpo social, as contradições, não se resolvem: a Psicanálise propõe que a lógica do desejo confronta permanentemente o sujeito com as exigências da cultura e que o sujeito em parte a elas se submete, em parte as transgride e, em muitas situações, em parte ou completamente dela se foraclui. No primeiro caso, o custo são as demandas da neurose, no segundo caso tem-se a montagem perversa e na foraclusão, os fastos da psicose.

Assim, a tensão aqui referida, a qual caracteriza o sujeito do inconsciente, coloca-o num persistente mal-estar frente ao estatuto simbólico, vale dizer, frente ao poder, seja o poder da parentalidade na dimensão microssocial ou o poder das instituições, na dimensão macrossocial. Por princípio, a pressão do poder visa normalizar para mediar os sujeitos e conciliar seus interesses singulares, possibilitando a vida civilizada.

A normalização fez parte de um fazer psicanalítico que se instaurou a partir da Associação Internacional de Psicanálise – IPA, fazer que “[...] se instituiu como uma moral de regulação das individualidades numa ordem social altamente competitiva, em que se prometia a felicidade pela aquisição de seus modelos de subjetividade, para a ascensão do indivíduo num espaço marcado pela mobilidade social. [...]” (BIRMAN, 1994, p 119). Hierarquizada, a IPA fundou as bases de poder pela diferenciação entre analistas didatas e analistas terapeutas, estabelecendo critérios sobre a legitimação do ofício psicanalítico.

A normatização social proposta pela Psicanálise americana, pseudo-herdeira de Freud e a normatização da Psicanálise da IPA, de Eitington e Jones (ROUDINESCO, 2000), caminharam lado a lado, carregando projetos de poder que se emparelhavam. Roudinesco (2003, p. 151) afirma que a IPA se transformou numa “[...] máquina de fabricar notáveis. [...]” e que detém modelos de formação exportada para cada país.

Crítica da IPA, Roudinesco (2000; 2003) afirma que a “psicanálise dos notáveis” não sustentou o vigor das proposições freudianas, pois, deixou de lado o debate político e intelectual. Acima do bem e do mal, negligenciou a extensão social do campo, desinteressando-se do “[...] mundo real para se voltar para as suas fantasias de onipotência. [...]” (ROUDINESCO, 2000, p. 152). Recusas ostensivas ou veladas de temas como a homoparentalidade e a homossexualidade, enquanto expressões da diversidade contemporânea, integram a citada dissociação entre o mundo real e o campo das idealizações normativas da IPA, conforme Roudinesco (2003).

Como instituição que transmite um saber e forma analistas, a IPA vai se defrontar com momentos de ruptura, motivada pelo que Birman (1994, p. 134) denomina de “narcisismo das pequenas diferenças”. Um desses momentos é a “excomunhão” de Lacan, em 1963, da IPA, quando este propôs a prevalência do tempo lógico sobre o tempo cronológico da sessão, questionou a formação de analistas, não concordando com a separação dos lugares do analista didata e do analista terapeuta, então praticada pela instituição e criticou a dissolução da transferência como marca de fim de análise (ROUDINESCO, 2000), tese defendida pela associação psicanalítica.

A “excomunhão” de Lacan traz em si as marcas da sustentação da herança e da identificação com o pai morto. Trata-se de um embate pela continuidade e ostentação fálica do legado freudiano.

No seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” (LACAN, 1998b) o tema da autorização e da autoridade abre o ensino no ano de 1964. Está também em questão o que seja efetivamente a Psicanálise. Subsumida a estes temas, a estrutura de poder questionada por Lacan aparece na homologia que este faz com a excomunhão de Spinoza da sinagoga, em 27 de julho de 1656, culminando com um encadeamento discursivo do ensino de 15 de janeiro de 1964, quando Lacan (1998b, p. 11) observa que há um “[...] singular bicentenário, pois, corresponde ao de Freud [...]”, alusão que o identifica ao fundador da Psicanálise através de situação similar vivida por Spinoza. Roudinesco (2000, p. 154) considera que esse foi o genuíno motivo do rompimento, qual seja, “[...] Lacan restabeleceu, através de seu ensino e seu estilo, a imagem freudiana do mestre socrático numa época em que ela era julgada nefasta pela IPA [...]”.

A posição de Lacan em confronto com a “psicanálise de notáveis” tornou-o um ídolo e um ícone não só na sua Escola Freudiana de Paris (ROUDINESCO, 2000) como para um amplo conjunto de adeptos de uma teorização que inicialmente buscou ser a “mais freudiana das freudianas” e se consolidou nos anos de 1980 com estatuto próprio e paralelo ao ensino de Freud.

Muito embora o ensino de Lacan se processasse em sessões públicas, diferentemente das sessões privadas dos encontros da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras promovidas por Freud (GAY, 1989; ROUDINESCO, 2000), a posição profética e patriarcal eram muito similares. O cenário descrito por Peter Gay (1989) dessa sociedade reunida para entender as proposições do fundador da Psicanálise tinha um tom religioso, quando Freud dava a última palavra e procedia às autorizações de relatos e escritos. As palavras da autobiografia de Stekel, um dos primeiros seguidores de Freud, mostram o clima de exaltação que envolvia o nascimento da Psicanálise: Stekel seria “o apóstolo de Freud, que era meu Cristo!” (GAY, 1989, p. 170). Situação similar se observará nos seminários lacanianos onde um clima de reverência levará Lacan a explicitar ironias freqüentes sobre o quanto os presentes, sejam os leigos ou seus seguidores, não alcançavam a magnitude das suas ilações. O significante fálico, endereçando à significação de poder pela via do saber suposto ao mestre tem, portanto, uma linha de continuidade entre Freud e Lacan.

Muito embora o lugar primacial de Freud no percurso da elaboração da Psicanálise, observa-se que seu senso de auto-crítica não o abandona, moderando o seu discurso e posição de saber com as experiências pessoais nas quais o sentimento de incompreensão e abandono por alguns mais próximos surge confessionalmente, tal como em “Um estudo autobiográfico” (FREUD, 1996{1925[1924]}). Ainda assim, o senso de maestria aparece no uso de expressões (constantes da Edição Standard Brasileira, portanto, traduzidas do inglês) como “[...] domínio sobre um número tão vasto de pessoas intelectualmente eminentes [...]” (FREUD, 1996{1925[1924]}, p. 57).

Surge aqui outra questão: é por causa da forma pela qual se instituiu a Psicanálise, qual seja, pela experiência pessoal e carismática de um “pai da horda”, diga-se Freud e ou Lacan, que a instituição psicanalítica experimenta o “narcisismo das pequenas diferenças” em torno do falo, enquanto significante que conjuga logos e desejo (LACAN, 1998a) e se consubstancia como centro de irradiação do saber, da autoridade e da autorização? Outra questão: as análises dos que fazem a formação e a transmissão da Psicanálise não têm possibilitado a superação da colabagem2 do pai imaginário que desliza em direção à Freud e Lacan, no sentido de realizarem-se outros modos institucionais onde a autoridade e a autorização não alienem os sujeitos que aspiram ao lugar de analistas às metonímias de um copião do pai primevo?

É observável no trânsito por muitas instituições psicanalíticas que há encaixes entre o discurso do mestre e o discurso da histérica. Isso equivale dizer que, quem transmite, ao enunciar o significante mestre que produz o saber, elide o sujeito barrado e coloca o Outro como objeto do seu gozo. Eis, então, a fórmula do senhor da dialética hegeliana citada no início deste texto. Quanto ao discurso da histérica, obviamente que ela confere ao mestre o saber do seu desejo sexual, a ele atribui o advir do S1 que vai dar conta do seu gozo. Aqui, tem-se a fórmula do escravo.

Como afirma Lacan (1992), é no quarto de volta que o discurso do mestre se transforma no discurso da histérica, ou seja, a subversão da condição senhor-escravo é uma iminência que norteia a relação da formação do analista: tem-se o mestre por haver escravo que por sua vez sustenta o gozo do mestre sem o qual este não o seria. Engodo e emgozo3 maior, impossível. Em primeiro lugar, porque o discurso do mestre, em sendo o avesso do discurso psicanalítico, não pode produzir analistas, claro. Em segundo lugar, Lacan (1998b, p. 13) afirma que a verdade do sujeito, mesmo em lugar de mestre, não está nele, mas num objeto velado, objeto que “[...] é propriamente cômico [...]”, ou seja, o que está em lugar de mestre na Psicanálise não sabe o que diz sobre o sujeito do inconsciente, embora fale muito (produzindo S2).

Paradoxalmente, o que se elide no contexto institucional psicanalítico é justamente o discurso do analista, o discurso que institui o semblante de objeto como desejo para que o sujeito barrado produza o significante mestre da análise.

Advém, então mais uma questão: que formação de analistas está se produzindo na contemporaneidade? Na continuidade da transmissão, que Psicanálise se ensina? Na práxis, que análises estão se processando na transferência?

Trago aqui, a título de reflexão em torno das questões aventadas, a proposição de Birman (1994, p. 135) sobre o esvaziamento do lugar de poder:

[...] o vazio nesse lugar soberano indica a existência de um mundo sem Deus, mundo secularizado pela ciência e dominado pelo poder dos homens. Nesse mundo desencantado, os homens devem inventar suas formas de saber e reinventar permanentemente seus discursos, para estabelecer o diálogo entre si e remodelar a paisagem do universo. [...]

Ao abordar o falo, na dimensão do significante do (não) poder nas instituições psicanalíticas, espero que d´isso (ich) tenha falado de modo (in) satisfatório e, ao encerrar este trabalho, lembro que o falo só pode cumprir o seu papel enquanto esteja velado (LACAN, 1998a). Portanto, jouyceando4 um pouco: logos de mestre não é em si falo, porque falo em si não fala, mas é silêncio... do analista.

 

 

Referências

BIRMAN, J. Psicanálise, ciência e cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.         [ Links ]

FREUD, S. Um estudo autobiográfico. In: FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, 20, (pp. 11-78). Rio de Janeiro: Imago, 1996 (1925[1924]         [ Links ]).

GAY, P. Freud. Uma vida para o nosso tempo. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário. Livro 17. O avesso da Psicanálise. Tradução: Ary Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.         [ Links ]

______. Escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998a.         [ Links ]

______. O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução: MD Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998b.         [ Links ]

ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise? Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.         [ Links ]

______. A família em desordem. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.         [ Links ]

 

 

*Psicólogo formado pela UFBa. Mestre em Psicologia pela mesma universidade. Doutorando em Psicologia (2010.1) também pela Universidade Federal da Bahia. Professor Assistente da Universidade Salvador, UNIFACS. Exerce a clínica psicanalítica desde 2001.
1Lacan define em “O seminário, livro 17. O avesso da Psicanálise” a disposição do discurso em quatro termos desejo/verdade =>Outro/perda, sendo que o discurso da histérica é definido por $/a => S1/S2, o discurso do analista, a/S2 => $/S1 e o discurso do mestre, S1/$ => S2/a.
2Pode-se usar colabagem no sentido de dois pontos que se colam pelo esvaziamento de um espaço antes preenchido por algo. Por exemplo: quando uma bola de futebol, um frasco de soro hospitalar ou um tubo de pasta dental se esvaziam, ocorre a colabagem das paredes desses objetos. Uma análise promove ou deve promover o esvaziamento da dimensão imaginária do pai, para dar vez ao discurso do sujeito que se autoriza na relação com o seu desejo. Assim, pretendo dizer que a colocação desses dois "pais" em lugar privilegiado no registro do imaginário, quase promovidos à deidades (depois dizem que psicanalistas não têm religião!), parece indicar uma colagem do sujeito que fez ou faz uma análise aos mesmos por um esvaziamento do seu desejo. Aliena-se, assim, aos signos de poder institucional. Tem acontecido, ao meu ver, que esse signo se correlaciona a alguns "mestres" na formação. Como, então, o sujeito autoriza-se a si mesmo, pelo seu próprio desejo, a ser psicanalista? Essa autorização fica quase sempre ancorada na palavra desse Outro-mestre.
3O uso do neologismo busca enfatizar o caráter íncito dessa relação gozante, então estabelecida.
4Jouissance, gozo em francês, se presta a uma provocadora condensação e homofonia com Joyce (James), escritor inglês que Lacan faz paradigmático na formulação do quarto nó borromeano no seu seminário sobre o sintoma. Mais que uma formulação, o fechamento deste texto foi uma emergência do isso comportando, assim, gozo e sintoma.

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