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versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito vol.13  Salvador nov. 2012

 

Kairós – fragmentos de uma viagem ao caos

 

Fragments d’une voyage aux caos

 

 

Maria Lúcia Martins*

 

 


RESUMO

À luz de Kairós, objetiva-se uma hipótese de representação da travessia psicanalítica, colocando, primeiramente, uma posição para a psicanálise atual, a nosso ver, ponto de interseção entre ética, contingência, política e poesia. A rota dessa travessia parte do saber implícito (temporal e intersubjetivo) e segue com imagens do fractal, conjunto de relações matemáticas de formas irregulares infinitamente complexas e belas, também definida como uma travessia para o Caos; deste, surge a necessidade de nova direção da cura, que, através de noções de O Princípio da Incerteza, de Heinsenberg, pode chegar à última estação (provisória) da travessia em causa.

Palavras-chave: Kairós; saber implícito; travessia psicanalítica; fractal; caos; representação.


RÉSUMÉ

À la lumière de Kairós, on a une hipotèse de la nouvelle représentation du chemin (d’écute) psychanalytique, en determinant d’abord, une position pour la psychanalyse actuelle –intersection d’éthique, contingence, polithique et poesie. Le chemin vient du savoir implicite (temporale et intersubjectif) et suit avec des images du fractal, ensemble de relations mathématiques de formes irregulaires, belles et infinites: ce Caos s’elève la necessitée d ‘une nouvelle direction de la cure. Notions de Le principe de l’incertitude, de Heinsenberg peuvent nos aider à arriver à la dernière gare (proviseur) du chemin.

Mots clés: Kairós; savoir implicite; chemin psychanalythique; fractal; caos; representation.


 

 

POSIÇÃO ATUAL DA PSICANÁLISE: PONTO DE INTERSEÇÃO DE ÉTICA, CONTINGÊNCIA, POLÍTICA E POESIA

Neste trabalho — uma nova hipótese de travessia psicanalítica —, colocaremos, primeiramente, a posição (dinâmica e dialógica) que, a nosso ver, a psicanálise atual se encontra; posição em um universo espaço-temporal, marcada por um ponto. Logo, um ponto/posição criado pela interseção de linhas distintas. Por sua vez, o ponto — a mais simples de todas as marcas visíveis em certo universo — não tem dimensão e, sim, só e somente, posição.

Tal posição da psicanálise atual (não nos arvoramos, aqui, a estabelecer um período datado) corresponde ao ponto de cruzamento da ética, da contingência, da política e da poesia. Tais linhas (ou saberes) são transdisciplinares, pois, para além da psicanálise, dialogam com outros saberes, a exemplo da arte, da filosofia, da ciência.

E ainda é preciso que a posição em causa atenda a mais uma condição: pertencer a um sistema aberto. Isso significa que, por ser dinâmica e dialógica, seu corpo possa ser renovado através de novas descobertas clínico-teóricas de psicanalistas brasileiros e estrangeiros.

Desde Freud, pode-se afirmar que, no processo psicanalítico, a separação entre prática e teoria é algo impossível. Assim, cada novo trabalho desenvolvido em psicanálise exige do autor uma mobilidade capaz de passar da prática à teoria (e vice-versa), sem que, por tal, se afaste do objeto desse trabalho. Mesmo quando um psicanalista declara que necessitou, em certo estudo psicanalítico, marcar sólida fronteira entre a teoria e sua correspondente prática, e mais, que isso tenha sido feito, só e somente, por exigência didática, diríamos que tal fronteira, ao fim e ao cabo, denuncia uma falta. Falta do que deveria ter sido feito: correspondência entre cada ponto do processo prático e seu fundamento teórico, como cabe ao tônus do saber ou estudo psicanalítico. Enfim, do que introduz pesquisa em psicanálise.

Por sua vez, a escolha das quatro secantes transdisciplinares (ponto/posição da psicanálise atual) merece um aprofundamento prático-teórico que, aqui, não nos será possível efetuar: este texto corresponde à palestra de vinte minutos.

 

POESIA E POLÍTICA EM NOSSA MÚSICA: UM FILME DE GODARD

Não sendo possível desenvolver (a contento) todos os conceitos das quatro linhas acima apontadas, calaremos quanto à contingência e quanto á ética, apesar de sabê-los imprescindíveis e caros ao território da psicanálise. E, também, assim o faremos por considerarmos que, na prática teórica do psicanalista, enquanto a ética há de ocupar o próprio cerne do viver do homem e profissional analista, a contingência é condição da vida mesma: a humanidade é contingente.

Considerando, aqui, Política e Poesia sob uma mesma ótica de uma obra de arte (filme: Nossa Música1 ) que as integra — e também por serem, entre as quatro secantes de nossa hipótese de posição atual da psicanálise, talvez as menos comuns —, não será preciso dizer muito: as palavras e as imagens de Godard nos parecem bastar.

Dele, sugamos a ideia (mais que importante) de que, ao indivíduo da Polis, sempre há de haver a possibilidade do surgimento do sujeito creator. E criar, por sua vez, para além da Arte, também passa por um permanente desafio do próprio viver. Do viver a Polis, ou viver em sociedade, criando vínculos, agrupando-se. E, se, por um lado o homem é condicionado à liberdade, concordando com Sartre, por outro, não há como esquecer que o par política e poesia ora alarga, ora limita os diferentes modos de tal liberdade ser vivenciada. Em conjunto ou separadamente, de forma direta ou indireta, poesia e política operam não só subjetivamente na vida do homem-entre-homens, mas também objetivamente (ainda que, disto, o indivíduo não tenha consciência).

E, mais que nunca, é necessário pensar no desejo: se, por um lado, ao sujeito psicanalítico cabe dar-se conta da lei lacaniana jamais ceder do desejo, por outro, a vida em sociedade impõe limitações a esse (correspondente) indivíduo, todo o tempo. Enfim, todo um conjunto de condições de natureza psicossocial (sentimento x emoção; reflexões de si e do outro: espelhos), a mais das vezes, solicita do homem-humano, entre necessidades e desapegos, atitude crítica e generosa. Referimo-nos à ternura e à solidariedade cultivadas: o enfrentamento da vida plena assim exige. Ao fim e ao cabo, somos o único animal terrestre que sabe da própria morte. E, por tal, a nossa ver, eis eternidade (possível) do casamento entre política e poesia.

Lembremos que o lacaniano Jacques-Allan Miller (Escola de Psicanálise – Paris) é um dos escritores psicanalistas que têm desenvolvido tal casamento, com real consistência e beleza.

Inúmeros escritores têm tratado da relação entre Arte x Psicanálise. Dentre eles, ouçamos:

Assim se é possível pensar em uma psicanálise poética ou uma poética psicanalítica pode ser relevante adentrar os caminhos que a estética atual tem procurado apontar. [...] O conceito de arte como formatividade por Pareyson, é de grande valia para pensarmos tanto o trabalho artístico quanto o fazer psicanalítico.2

Para dar voz à Política e à Poesia de maneira econômica (economia no sentido freudiano), vamos tomar algumas falas/cenas do fantástico filme Nossa Música, de Godard: a cada vez que o assistíamos, descobríamos algo novo: tal tem sido a nossa experiência. E mais: dela, sobretudo movidos de surpresa, dor e alegria, percebíamos semelhança com momentos da travessia psicanalítica. O aspecto humano, demasiadamente humano, do filme, para além de ser uma chamada permanente à consciência de cidadão da Polis, ao mesmo tempo, realiza uma poética que atravessa o sujeito do mundo com o mundo e o faz sonhar com outro mundo melhor. Assim, a Arte, mais que nunca, é amálgama de estética e ética, de poesia e política, caibros de sustentação da crítica sensível do cinema de Godard.

Infelizmente, falas como as desse filme passariam em branco ao sujeito do consumo (exacerbado) e do poder (pelo poder); até porque os horrores também originários desse consumo caminham pari passu com a “atração” pela guerra, entre outros crimes que desconhecem a arte do bem dizer.

Na poesia de Nossa Música, pode-se tomar como imagem de fundo “A Virgem de Cambray”, um belo ícone. As falas foram colhidas às três distintas partes do filme: Inferno, Purgatório e Paraíso, títulos que mostram a admiração de Godard pela Divina Comédia, de Dante Alighieri. No filme, há uma jornalista de Tel-Aviv que entrevista poetas e políticos. Ela nos desafia a refletir sobre a crueldade e injustiças do mundo contemporâneo, até mesmo quando, afirmando que a vida nada tem a ver com a morte, declara ter escolhido morrer. O próprio Godard aparece algumas vezes. As cenas do curso que ele ministra em Saravejo “IMAGEM e TEXTO” são instigantes.

Vejamos algumas falas//cenas

A luz foi o primeiro animal visível do invisível.

Campo e contracampo... Campo e contracampo.

Tentem ver uma coisa./ Tentem imaginar uma coisa // No primeiro caso, dizemos: veja / No segundo caso, feche os olhos. /No primeiro, o real: a incerteza. / No segundo, a imaginação: a certeza.

Há duas maneiras de ver a morte: como o impossível do possível – e como possível do impossível. (Aula pelo próprio Godard cujo tema Imagem é desenvolvido com textos e belíssimas imagens).

Uma jovem alemã, católica, em 1943, disse: o sonho do indivíduo é ser dois. O sonho do Estado é ser só um. Foi decapitada. (Resposta de um ministro à jornalista de Tel-Aviv que lhe pedia autorização para publicar sua palestra).

Se nossa época alcançou uma interminável força de destruição, será preciso fazer uma revolução que crie uma indeterminável força de criação, que fortaleça as lembranças, que materialize os sonhos.
Que trate melhor os mortos, que dê aos efêmeros uma suntuosa leitura de sua transparência, permitindo aos vivos uma navegação segura e veloz por este vale de trevas. (Fala de um poeta).

O homem passa por florestas de símbolos que o observam com olhos familiares. (Fragmento de um poema de Baudelaire).
A verdade sempre tem duas faces [...]. Troia não contou sua história.
Um país ou um povo, que tem grandes poetas tem o direito de vencer um povo que não tem poetas? Pode um povo ser forte sem escrever poesia?
Há muito mais inspiração e riqueza humana na derrota que na vitória.
Se um país nos vencer pela poesia, será o fim. (Fala do poeta Mahoud Darwich).


Enfim, escutemos os versos de Mário Quintana que, a nosso ver, podem nos ajudar a sair do filme de Godard e continuar a travessia:

Da vez primeira que me assassinaram
perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, cada vez que me mataram
eu fui perdendo qualquer coisa minha.

Esses versos, para além de tanger o cerne poético/político do filme de Godard, também expressam, a meu ver, o horror (possível) de certo momento de uma verdadeira travessia psicanalítica. Confesso que, no meu primeiro tratamento analítico, em momento de angústia insuportável, eu, a alta voz, dizia esse poema caminhando pela casa. E ia até o espelho procurando os meus olhos; mas o que via eram dois buracos escuros... Com os versos de Quintana atravessados na garganta, voltava a andar até o mais fundo soluço. Mas a poesia e a psicanálise trataram de me ensinar que é da Arte que, de fato, são lançadas as reais perguntas ao mundo. Tropeçar nelas é um momento (de duração nula...) entre a “queda” e o sujeito psicanalítico. Tempo da cadeia de significante a outro significante.

Mas, quem sabe, ao longo da travessia psicanalítica, um dia, possamos ler, no avesso desses versos de Quintana, algo assim: Depois, cada vez que eu me falara / fui reconhecendo coisas que sempre foram minhas. Coisas de guardar na alma, como Nossa Música.

 

KAIRÓS E O SABER IMPLÍCITO

Iniciemos nossa travessia, tomando por empréstimo dois objetos do livro Momento Presente3 : Kairós (tempo de início, concepção subjetiva de tempo dos gregos); e Saber implícito (percepção intersubjetiva, saber impossível de ser falado ou mesmo simbolizado).

No livro Momento Presente, de Daniel N. Stern, um poema define Kairós: “Quando a noite avança e as estrelas percorrem o céu elas parecem nascer e depois se esconder no horizonte. O momento em que uma estrela atinge seu apogeu e parece mudar de direção ascendente para descendente é o seu Kairós”4. Assim, Kairós não pode ser medido, somente vivido. Por isso, para que nossa travessia não perca a luz de Kairós, necessitamos do saber implícito, lembrando que ambos dispensam a fala ou a palavra. E tal dispensa nada mais é que a intersubjetividade, tantas vezes acontecida entre psicanalista e psicanalisando.

O fluxo de consciência de um momento presente (acontecimento que implica subjetividade) é sempre um acontecimento psíquico indefinido, uma marca, um traço, um resto. Uma representação, podemos afirmar, bem ao modo como Freud renomeou o seu primeiro conceito de representação, em “Além do Princípio do Prazer”5.

Na prática psicanalítica, a verdadeira transferência também se insere na categoria de um saber implícito, que não se caracteriza como de natureza inconsciente, ou seja, não se trata de algo “reprimido”, ou inconsciente, tampouco pode ser simbolizado. Eis uma linda metáfora do nomeado Momento presente (livro de Stern, já citado): na voz de R.W. James6 — “Como a vida de um pássaro, parece ser feito de uma alternância de vôos e pousos”. Seguindo nesse traço, é lícito concordar com Stern citando Alessandro Barrico7: “Leia saberes implícitos no lugar de idéias pois a idéia, ao nascer, é como galáxias de pequenas intuições, confusa, estado puro, bagunça maravilhosa”. Não é difícil perceber que aí pousa a “ideia pura” (também de Barrico) ou estado pré-subjetivo que equivale a uma aceitação de uma desordem inicial. Desordem que inaugura o saber implícito, saber que captura sem palavras.

Enfim, a “ideia pura” nos arrancou de certa indecisão, pois até aí não conseguíramos saber como continuar a desenvolver a hipótese de representação intentada. Então, de muito pensar numa dupla “desordem” (a nossa, sujeito da escrita, e a do sujeito psicanalítico em travessia), veio a luz de seguir pela via dos fractais.

 

DOS FRACTAIS DE MALDERBROT AO PRINCÍPIO DA INCERTEZA DE W. HEINSENBERG

São infinitas as aplicações do conceito de fractal: suas imagens já se espalharam por quase todos os domínios da atividade humana.

Voltemos à nossa hipótese.

Quando, em 2003, pela primeira vez encontramos o livro de Lima8 , apontando os fractais como um dos modos de representação em psicanálise, fomos tomados de espanto (embora soubéssemos, há muito, da existência dos fractais). Em síntese, fractais são relações matemáticas ou objetos que se desenvolvem conservando a propriedade da autossemelhança; a mais notável, a nosso ver, é a de uma espécie de couve-flor, mas há outros na natureza. Os fractais (mais conhecidos através de imagens virtuais) foram fantasticamente desenvolvidos pelo matemático Benoît Mandelbrot9.

Entretanto, a ideia original de um fractal, ou a existência do infinito dentro do finito, existe desde os tempos antes de Cristo. A lenda da fundação de Cartago (814 a.C.), longa história de lutas, heranças, cobiça e morte, nos versos do poeta Virgílio, conta que Dido, a Errante, negocia a posse de terras com os nativos (líbios da tribo dos maxios), enquanto vencedora da guerra. Acontece que Dido (fenícia e boa negociante como todo o seu povo) só poderia ocupar a área de terras (condição que lhe foi imposta, ou proibição a estrangeiros) que pudesse ser coberta por uma pele de boi. E tal pele lhe foi entregue. Dido recebe-a e corta toda ela em uma só tirinha, fazendo um enorme anel circular. Com ele, Dido rodeia uma colina, que se torna sua... E que foi nomeada Brysa (pele de boi em grego). Afinar o anel (cortá-lo infinitamente pelo meio), eis uma ação infinita, dentro do finito: o anel, um círculo, uma linha fechada.

Mas outra dificuldade nos surgiu: se, por um lado, hipoteticamente, os fractais podem representar uma travessia psicanalítica (infinita...), por outro, na realidade, o analisando e seu psicanalista sabem que tal “infinitude” é barrada, pois um tratamento psicanalítico tem “fim” (ainda que provisório...). Então, foi preciso buscar, para esse período — nomeado “final de análise”— algo que, de fato, o representasse. Afinal, a ética há de estar presente em todos os momentos da prática e da teoria de um tratamento psicanalítico: sabemos que acolher não é sinônimo de prometer, ou de seduzir, tampouco de apresentar solução; enfim, para a psicanálise, o sujeito é o único responsável por si mesmo.

Foi nesse clima que nos “encontramos” com a teoria do Princípio da Incerteza de Heisenberg. E, então, apesar de estudarmos apenas noções dessa teoria, com ela ganhamos a certeza (da incerteza) de que poderíamos reorientar o sentido de direção da travessia em causa. E isso também significou uma mudança; ou seja, a travessia sofrera, não apenas um rearranjo, mas uma transformação, uma mudança de universo.

E, aqui, façamos um parêntese para lembrar que o CPB — agora, em 2011, aniversário de 40 anos — teve um belo Momento Presente dez anos atrás: Jornada de aniversário de 30 anos. Nela, tivemos a alegria de, a convite de Carlos Pinto Corrêa, apresentar um trabalho, que também tratava de Tempo: “Tempo de mudança”. Mudança em dois diferente níveis: o permanente (transformação ou mudança de universo ou uma mudança de segundo nível fundamentada no paradoxo do matemático e filósofo Bertrand Russel) e o aparente (mudança de ordem ou de lugar dos elementos de um mesmo grupo, este sempre conservado). Dessa Jornada em diante, temos acompanhado o CPB, em tempo vivo de mudanças, não só no cerne da instituição, mas, sobretudo, em produção criativa de seus membros. Aos poucos, fomos apreendendo seus desejos de realização. E, quando pudemos embarcar em algum de seus voos, não tememos, pois a curiosidade (desejo de aprender) sempre nos foi companheira.

O que é nos fascina então neste Caos, que veio destruir as aspirações humanas de ordem universal? É que ele é um velho conhecido do Homem: das suas emoções, das suas atitudes, das suas decisões. Ele representa aquilo que temos de espontâneo, mesmo quando tentamos ser racionais. Ele representa as incertezas de sempre, mesmo quando achamos que temos resposta para tudo. Mas também representa que temos algo a dizer sobre o nosso futuro, que as nossas ações, por insignificantes que pareçam no geral, podem ter um peso fundamental; que o DEVIR não deixou de estar nas nossas mãos. Ele representa o próprio Homem.10

 

O INFINITO DENTRO DO FINITO: PARA ALÉM DE NÓS

Mesmo depois das palavras fantásticas de Heisenberg, parece-nos solidário lembrar o antropólogo inglês John Gray11 quando este afirma que a humanidade é contingente. Ou seja, o cientista, por mais que invente novas tecnologias, não pode ter a pretensão de dominá-las totalmente, todo o tempo. Até porque o feiticeiro, ao inventar um veneno invencível, bem pode vir a morrer dele... Isso equivale a dizer que não há mais como aceitar o determinismo: hoje, e tal linha filosófica é apenas um marco histórico e teórico. Nada pode nos convencer de que a ciência seja suficientemente forte, para prever e evitar, por exemplo, certas intempéries de nosso planeta (para ficar somente nele).

Enfim, ao confessarmos nossa atração pelo infinito, não podemos esquecer que (mesmo convivendo com inúmeras instâncias de natureza infinita) nos cabe criar, sim, não só no campo da arte, mas criar o próprio espaço-tempo de nossas vidas, sabendo-o finito; cuidando que a Natureza, também é finita.

Por isso, ao final desta travessia, pedimos licença para aqui inserir um poema nosso:

Para além de nós

Para além de nós... Uma janela aberta
para o mundo. Nele, tudo que está.
Minha conivência com a paisagem
esvaída do não-descoberto.

“Para além”... certamente é muito longe
de olhos de ver, de ouvidos de escutar.
(Diga, apenas – depois – em sussurro).

Para além... certamente é distante,
e o viver tão incerto. (Diga, apenas
– talvez – em voz mansa, não afirme).

Para além de nós: não, não posso dizer
assim. Que um homem “é estar aqui
e agora, cada qual no seu tempo”.

 

Referências

FREUD, S.. Além do princípio do prazer [1920]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.XVIII, p.11-76.         [ Links ]

GRAY, John. Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais. 2. ed. Trad. Maria Lúcia Oliveira. Rio de Janeiro: Record, 2005.         [ Links ]

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LIMA, Alcimar A. de Souza. Pulsões: uma orquestração psicanalítica no compasso entre o corpo e o objeto. Petrópolis: Vozes, 1995.         [ Links ]

MARTINS, Maria Lúcia. A condição de Pégaso. Salvador: Selo Bahia, 2002.         [ Links ]

NOSSA Música. Direção: Jean-Luc Godard. Produção: Alain Sarde e Ruth Waldinger. Roteiro: Jean-Luc Godard. Intérpretes: Sarah Adler, Nade Dieu, Jean-Luc Godard, Ronny Kramer, Georges Aguilar e outros. França/Suíça: Les Films Alain Sarde, 2004. 80 min. Título original: Notre Musique.         [ Links ]

SALLES, João Moreira. Intuições fractais. Revista Piauí, ano 5, n.50, nov. 2010. Disponível em: revistapiaui.estadao.com.br.         [ Links ]

STERN, Daniel N. O momento presente na psicoterapia e na vida cotidiana. Tradução de Celimar de O. Lima. Rio de Janeiro: Record, 2007.         [ Links ]

TEORIA do Caos: Uma nova visão (fractal) do mundo [Heisenberg]. 30 maio 2007. Disponível em: www.orkut.com        [ Links ]

 

 

*Maria Lúcia Martins, psicanalista. Ex-membro do Círculo Psicanalítico da Bahia, atualmente clinica no Rio de Janeiro, RJ — é escritora, poeta e estuda pintura. Este texto, em parte, é resultado do trabalho em grupo sobre psicanálise e arte, em Paris, de maio a julho de 2010. [e-mail: luciarma2010@gmail.com.
1 Embora a compreensão deste texto não necessariamente implique as imagens (26 slides) que acompanharam nossa apresentação oral, seria interessante que o leitor assistisse ao filme de Jean-Luc Godard Nossa Música, 2004. E que, também, revisse imagens de fractais e de O Princípio da Incerteza. (TEORIA do Caos – Uma nova visão (fractal) do mundo [Heisenberg]. 30 maio 2007. Disponível em: www.orkut.com).
2
KON, Noemi Moritz. Entre a psicanálise e a arte. In: SOUSA, E. L. A. de; TESSLER, E.; SLAVUTZKY, A. (Org.). A invenção da vida: arte e psicanálise. Porto Alegre: Artes e Ofício, 2001. p.39.
3 STERN, Daniel N. O momento presente na psicoterapia e na vida cotidiana. Tradução de Celimar de O. Lima. Rio de Janeiro: Record, 2007 .
4 Id., ibid., p.29.
5 FREUD. Além do princípio de prazer [1920] In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.XVIII, p.11-76.
6 STERN, Daniel N. O momento presente na psicoterapia e na vida cotidiana, op. cit. p.65.
7 Id., ibid., p.140.
8 LIMA, Alcimar A. de Souza. Pulsões: uma orquestração psicanalítica no compasso entre o corpo e o objeto. Petrópolis: Vozes, 1995.
9 Sobre ele e seus fractais, sugerimos a leitura do artigo de SALLES, João Moreira. Intuições fractais. Revista Piauí, ano 5, n.50, nov. 2010. Disponível em: revistapiaui.estadao.com.br.
10 TEORIA do Caos – Uma nova visão (fractal) do mundo [Heisenberg], op. cit.
11 GRAY, John. Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais. 2.ed. Trad. Maria Lúcia Oliveira. Rio de Janeiro: Record, 2005.