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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito vol.13  Salvador nov. 2012

 

O tabu dos povos primitivos e o estigma das sociedades atuais: as duas faces de um mesmo fenômeno psicanalítico e sociológico

 

The taboo of primitive peoples and the stigma of present-day societies: the two aspects of the same psychoanalytic and sociologic phenomenon

 

 

Ricardo Henrique Araújo*; Joice Cavalcante Andrade**

*Universidade Federal da Bahia
**Universidade Federal de São Paulo

 

 


RESUMO

O tabu, evidenciados pelos escritos de Freud, está instituído na humanidade desde as organizações comunitárias primitivas. No intuito de promover a interdição de desejos que poderiam levar a uma dissolução da organização de um povo, o tabu era imposto através de símbolos, a exemplo do Totem, representante do que é considerado o primórdio de um constructo semelhante ao que hoje entendemos como religião. Em estudos mais recentes, o tema do tabu passou a ser descrito como “estigma social” e se reporta a assuntos reprovados pelos representantes da sociedade civilizada, por exemplo, os transtornos mentais graves. Assim, evidencia-se que este mecanismo social dito de proteção, porém com potencial de gerar danos à liberdade e a outros direitos dos indivíduos, transpassa os diversos povos e tempos da humanidade e persiste nos dias atuais.

Palavras-chave: Totem; tabu; estigma social; transtorno mental.


ABSTRACT

Taboo, as evidenced by Freud’s writings, was established in humanity ever since the primitive community organizations. With the intention of promoting the interdiction of desires that could foster the dissolution of the organization of a people, the taboo was imposed by way of symbols, of which the Totem is an example, representing what is considered to be the primordial construct similar to what we today understand as religion. In more recent studies, the theme of taboo has come to be described as “social stigma” and it alludes to topics that are censured by the representatives of civilized society, for example, serious mental disorders. Thus, it becomes evident that this social mechanism said to be of protection, but nevertheless having the potential to cause damage to the freedom and other rights of individuals, has pressed on through the different peoples and times of humanity and persists even to the present time.

Keywords: Totem; taboo; social stigma; mental disorder.


 

 

ESTIGMA
Aldo Lins1

Acordei chorando
Jorrava de dentro de mim
Toda uma denúncia de tudo aquilo que sou.

Vagabundo, maluco, moribundo,
anarquista, amante, poeta e sonhador.

Não me conheço,
Aliás, só por fotografia.
Não sou lavoura nem edifício.
Sou um homem que passou fome
Escarrou sangue
E foi preso como anarquista.

Também não sei mais sorrir
A minha pele hoje
É uma tatuagem cheia de escamas

Até o meu canário fugiu da garganta
Deixando minha alma de vidro
Perdida pelos escombros
Útero da solidão.

Meus trinta anos
O que direi a eles
Quando reinar o eclipse da despedida
Haverei de doar meus olhos
Para alguém poder te ver.

Pois quem sabe um dia
Eu, hóspede da utopia,
Assustado com a sombra
Dos meus próprios sonhos
Seja encontrado sem vida
Sentado num cabaré vazio.

 

TOTEM, TABU E ESTIGMA SOCIAL

Em seu texto “Totem e Tabu”, Freud2 discorre sobre o significado do termo “tabu”. Tomando por base as terminologias com as quais se relaciona ao longo das diversas civilizações (o sacer da Roma Antiga, o äyos da Grécia e o kadesh dos hebreus), o tabu é algo que tem uma significação multifacetada, reportando, de um lado, para o “sagrado” e, do outro, para o “misterioso”, o “perigoso” e o “proibido”. Em comum, entretanto, há o fato de todos esses elementos não deverem ser tocados ou abordados, de forma que denotam algo que deve permanecer à distância daqueles que não compartilham dele.

Esse desejo de manter distante e isolado algo (ou alguém) que, de alguma forma, encarna uma ameaça ao bom funcionamento da sociedade remete ao conceito de estigma. Goffman3 relata que este termo foi criado pelos gregos e dizia respeito a sinais corporais ou marcas feitas com cortes ou fogo para sinalizar que os seus portadores traziam algo de extraordinário ou ruim sobre seu status social. Esse sinal significava que o restante da população deveria manter-se afastado daquele indivíduo marcado. A confecção de estigmas pelos antigos gregos representa, entretanto, um processo mais amplo de estigmatização psicológica, referindo-se à tendência da maioria de se distanciar e limitar os direitos daqueles pertencentes a grupos desacreditados e ao potencial de internalização desse status degradado por aqueles que são desvalorizados4. Goffman define estigma como “um atributo profundamente depreciativo”. Alguém que poderia ter sido facilmente recebido na relação social cotidiana, possui um traço que se impõe e distancia aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus.

Reportando-nos às sociedades atuais, ambos os termos, tabu e estigma, correm estreitamente um ao outro e se aplicam às condutas e características que, de alguma forma, são consideradas desgraçadas e passíveis de reprovação ou reclusão. Não necessariamente requerem a presença de uma indicação visual, pois o que de fato importa é a marca ideológica. É o tabu que determina que um indivíduo seja estigmatizado pela sociedade em geral.

Freud5 já trazia a ideia do perigo ao se estabelecer contato com o que era considerado tabu, partindo dos próprios objetivos deste: a precaução de perigos decorrentes do contato, a proteção de pessoas importantes ou vulneráveis ou, ainda, o livramento da população em geral contra a cólera dos deuses. O tabu pode ser generalizado para um determinado povo em particular, tornando todos os seus membros harmonizados em relação àquele aspecto. Todavia, algumas pessoas podem criar as suas próprias proibições e a elas obedecerem da mesma forma que os povos primitivos o faziam em relação aos tabus comunitários. Fazendo uma ligação com a neurose obsessivo-compulsiva, Freud ressalta que o contato com algo que seja considerado um tabu, transforma o violador também em tabu, e ninguém mais poderá entrar em contato com ele.

Nas sociedades primitivas, o Totem, enquanto representação simbólica do Pai, e o Tabu, enquanto interdição do incesto, organizavam o grupo, na medida em que proibiam as relações sexuais entre os membros do mesmo clã, protegendo-os, não apenas do parricídio, mas principalmente do fratricídio, que levariam à destruição do grupo. A interdição de tais desejos, os homicidas e os incestuosos, dá origem ao inconsciente na medida em que são recalcados como efeito da interdição inerente ao tabu. De fato, o tabu é uma tentativa de organização de uma dada sociedade para evitar que os indivíduos possam agir conforme suas pulsões mais poderosas, o que poderia promover uma dissolução da organização comunitária, quer seja tribal, quer seja pós-moderna, através da regulamentação das trocas sexuais, instituindo as regras do incesto, como expressa Freud.

A manutenção da ideia de Freud sobre tabu pode ser observada na contemporânea constatação de Stuber, Galea e Link6 sobre estigma social. Esses autores definem estigma como “[...] rótulos negativos, avaliações pejorativas, distanciamento social e discriminação que podem ocorrer quando o indivíduo considerado com falta de força se desvia das normas do grupo”. Ainda advogam que:

A estigmatização é uma consequência para a falha no cumprimento das normas sociais, na proposta de fazer a pessoa desviante obedecer e ser reinserida no grupo ou de evidenciar, para os outros membros do grupo, os comportamentos que são inaceitáveis e quais são as consequências para aqueles que se engajam naqueles comportamentos.

Na atualidade, os temas considerados tabus podem estar intimamente vinculados aos relatados nas sociedades remotas. Entretanto, a cultura e as problemáticas emergentes influenciam no acréscimo de novos direcionamentos da tábua de proibições, os quais, muitas vezes, apenas são releituras de conceitos originariamente relacionados aos preceitos ditados pelos objetivos supracitados do tabu. Ao que parece, as motivações e a dinâmica do processo guardam em si as mesmas características em todos os povos dos mais diversos tempos e disposições geográficas. AIDS, transtornos mentais graves, suicídio, deficiências, pedofilia, homossexualidade, transexualidade, uso de drogas e diversidades étnica e religiosa são registros que facilmente afloram quando nos reportamos ao tabu nos tempos presentes.

 

O TABU DOS TRANSTORNOS MENTAIS E SUA ESTIGMATIZAÇÃO

No campo da saúde mental, o estigma relacionado aos transtornos da ordem psíquica e do uso de substâncias psicoativas está entre os principais complicadores para o tratamento dessas condições. Vários são os autores que colocam o estigma como sendo, muitas vezes, um elemento grave, que traz mais prejuízos que a própria doença mental em questão. Uma situação mais delicada é a detecção de que a estigmatização e as atitudes negativas, com certa frequência, são maiores entre os próprios profissionais de saúde e ainda entre os que trabalham especificamente na saúde mental.

Ronzani, Higgins-Biddle e Furtado7 relatam que as atitudes do público em geral e dos profissionais de saúde podem afetar a qualidade de vida do paciente, bem como a maneira como ele recebe o serviço oferecido, interferindo na sua adesão ao tratamento e às atividades de prevenção. De um modo geral, esses pacientes, vítimas de atitudes negativas por parte da população em geral e dos profissionais de saúde por suas mais diversas condições (depressão, tentativa de suicídio, esquizofrenia, transtorno bipolar e uso problemático de substâncias psicoativas), tendem a demorar mais a buscar ajuda, são diagnosticados mais tardiamente e têm pior adesão a medicamentos, além de uma pior qualidade de tratamento em geral.

No caso dos problemas relacionados a uso de drogas, a questão do diagnóstico é afetada pelo estigma, pois determina uma pior aceitação da denominação clínica por parte dos pacientes e também o seu uso errôneo pelos membros da sociedade em geral e até pelos profissionais de saúde. Neste caso, o significado nosológico pode ser transposto para um rótulo pejorativo, a partir das conotações morais de quem faz o julgamento (“viciado”, “drogado”, “bêbado”, etc.).

Chung, Chen e Liu8 nos informam que o estigma é capaz de influenciar todos os estágios da doença mental, desde o reconhecimento e a apresentação dos sintomas até o tratamento, a adesão e a reabilitação. Ainda partindo de visões negativas e pessimistas, médicos deixam constantemente de fazer o rastreamento de determinados transtornos, como é o caso do consumo abusivo de álcool.

Correlacionando com os conceitos do tabu trazidos pelos escritos de Freud e ratificados pelos estudiosos mais atuais, a estigmatização dos transtornos mentais pode estar de fato relacionada à ideia do “louco”, visto como um sujeito transgressor; alguém que pode romper com todos os preceitos ditados pelos códigos reguladores. O contato com ele, muito além de colocar o estigmatizador em risco de ser vitimado por qualquer tipo de agressão, poderia despertar os impulsos mais inerentes aos humanos, sejam eles relacionados, por exemplo, à pulsão de vida (na hiperssexualização), à pulsão de morte (autoinfligida — no suicídio e na anorexia nervosa — ou heteroinfligida — na agressividade do psicótico) ou à pulsão oral (no uso de drogas).

O transtorno mental coloca todos nós diante da possibilidade de consciência do arsenal destrutivo que se esconde nas profundezas do inconsciente, e encará-lo de perto parece acender a lembrança de que a doença é a expressão de algo que também faz parte de cada um de nós. Manter o portador de doença mental afastado e estigmatizado é uma tentativa de anular a possibilidade de os conteúdos inconscientes, eternamente em ebulição, romperem as trancas superegoicas e se expressarem aberta e descontroladamente, pondo em risco os ditames da ordem e da evolução civilizada.

As organizações totêmicas lançavam mão de todos os artifícios possíveis para impedir qualquer possibilidade de relacionamentos entre pessoas da mesma família (principalmente mãe e filho), como era o caso das subdivisões em fratrias, subfratrias e clãs totêmicos, que distanciavam ao máximo a possibilidade de conjunção carnal entre os indivíduos que tinham um mesmo Totem como ancestral, como descreve Freud. Esse esforço talvez se correlacione com o fato aplicado à doença mental, em que não só ela é estigmatizada, mas também as suas variantes menos graves e tudo aquilo que com ela estabelece algum tipo de vínculo, por exemplo, os métodos terapêuticos, os seus familiares e os profissionais de saúde que se voltam para seu tratamento, os quais também sofrem as restrições sociais e políticas impostas pelo distanciamento.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que foi exposto acima tenta demonstrar como o fenômeno do tabu está presente em todas as sociedades humanas, desde as mais remotas até as atuais. A conjuntura é capaz de promover uma adequação sociocultural da expressão do tabu, mas as análises mais pormenorizadas são capazes de detectar um fio de relação entre essas normas proibitivas dos diversos povos ao longo do tempo e dos estágios de civilização. Novos temas para os estigmas sociais estão sempre surgindo, todavia a lembrança dos impulsos que Freud descreveu como os inerentes à raça humana, por exemplo, vinculados à pulsão de vida e de morte, são recorrentes, tornando esses “novos temas” releituras dos já descritos inicialmente.


Vários são os elementos criados no intuito de promover uma mudança de paradigma em relação a esses temas, a saber: os movimentos e “paradas” que procuram exaltar as diversas condições – gay, “louco”, etc.; as instituições e organizações governamentais e não governamentais que reivindicam os direitos das minorias; as campanhas contra os preconceitos; e, ainda, as leis e projetos de leis que visam à proteção desses grupos. Entretanto, a questão do tabu parece estar tão arraigada nas sociedades que, apesar de todos esses esforços, a quebra de preconceitos e de atitudes negativas é um processo que evolui a passos lentos e ainda há espaço para retrocessos.

Os temas do tabu e do estigma parecem, de fato, se referir a um mesmo fenômeno, diferenciando-se um do outro apenas do ponto de vista do arcabouço teórico de quem o observa e o analisa, estando o primeiro termo vinculado aos estudos psicanalíticos publicados por Freud, em 1913, e o segundo, aos textos sociológicos que foram surgindo ao longo das décadas seguintes, tendo Goffman como um dos seus expoentes.

 

Referências

CHUNG, K.F.; CHEN, E.Y.H.; LIU, C.S.M. University students' attitudes towards mental patients and psychiatric treatment. Int. J. Soc. Psychiatry, v.47, n.2, p.63-72, 2001.         [ Links ]

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STUBER, J.; GALEA, S.; LINK, B.G. Smoking and the emergence of a stigmatized social status. Social Science & Medicine, v.67, p.420-430, 2008.         [ Links ]

 

 

* Psiquiatra. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Ciências da Saúde. Programa de Pós-Graduação em Processos Interativos dos Órgãos e Sistemas. Autor correspondente: Ricardo Henrique Araújo. Av. Gal. Edson Ramalho, 397, Manaíra, João Pessoa, Paraíba, Brasil. Telefone: 83 8831-2660. E-mail: ricardohenriquepb@yahoo.com.br. Trabalho apresentado na VI Jornada da Soc. Psicanalítica da Paraíba, 03 de novembro de 2012. João Pessoa, PB.
** Psiquiatra. Universidade Federal de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Teorias e Técnicas para Cuidados Integrativos.
1 LINS, A. Estigma. In: _____Alma de vidro. Recife: Grupo Paés, 2009.
2 FREUD, S. Totem e Tabu [1913].In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. XIII, p. 13-193.
3 GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1963.
4 HINSHAW, S. P. The mark of shame: stigma of mental illness and an agenda for change. Oxford: Oxford University Press, 2007.
5 FREUD, S. Totem e tabu, op. cit.
6 STUBER, J.; GALEA, S.; LINK, B.G. Smoking and the emergence of a stigmatized social status. Social Science & Medicine,v.67, p.420-430, 2008. Tradução nossa.
7RONZANI, T.M.; HIGGINS-BIDDLE, J.; FURTADO, E.F. Stigmatization of alcohol and other drug users by primary care providers in Southeast Brazil. Social Science & Medicine, n.69, p.1080-1084, 2009.
8CHUNG, K.F.; CHEN, E.Y.H.; LIU,C.S.M. University students' attitudes towards mental patients and psychiatric treatment. Int. J. Soc. Psychiatry, v.47, n.2, p.63-72, 2001.